Sábado, 19 de abril de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1334

O verdadeiro segredo da longevidade: falhas nos registros civis

(Foto: Ciro Palomba/Pexels)

Não existem segredos milagrosos para viver mais. E o jornalismo precisa aprender a diferenciar a ciência do marketing de saúde.

Pessoas com mais de 100 anos de idade são queridinhas da mídia. Tomiko Itooka, Inah Canabarro Lucas e Elizabeth Francis já foram protagonistas de dezenas de entrevistas e reportagens. Não por terem obras extraordinárias no currículo, mas por terem atingido incríveis 116 anos de idade.

O interesse do público por essas figuras é justificável. Afinal, quem não quer saber o segredo para viver mais? Manchetes que associam certas comidas e estilos de vida a uma maior longevidade são garantia de cliques, e o jornalismo de saúde abusa de matérias sobre o tema.

No início dos anos 2000, o termo “zona azul” foi criado para designar regiões do planeta com supostamente maior concentração de supercentenários. Algumas delas são Okinawa, no Japão; a província de Nuoro, na Sardenha, na Itália; e a Península de Nicoya, na Costa Rica. Esses locais se tornaram exemplos positivos de dieta e estilo de vida na imprensa, rendendo títulos como “O segredo do ‘elixir da juventude’ das Ilhas Okinawa, no Japão” (Revista Veja, 2021); “Os segredos da região com uma das maiores longevidades do mundo” (BBC Travel, 2024); e “Zonas azuis: o segredo dos lugares com maior longevidade do mundo” (Forbes, 2022).

Não há nada de errado em divulgar o estilo de vida e as paisagens exuberantes desses locais. O problema é que muitas vezes essas matérias aparecem travestidas de textos de ciência e saúde, mas não apresentam dados e estudos consistentes para sustentar suas teses. No portal Science Based Medicine, a médica e editora Harriet Hall escreve que os “segredos das zonas azuis” são baseados em especulação, e não ciência.

O próprio termo “zona azul” é puro marketing. Ele foi patenteado pelo autor americano Dan Buettner, que fundou a empresa Blue Zones LLC e já escreveu oito livros sobre o tema. Aí estão incluídos livros de dicas, dietas das zonas azuis, hábitos adotados pelos habitantes e até um livro de receitas. No site da empresa, há outros produtos que supostamente promovem uma longevidade extraordinária, como congelados saudáveis, produtos para a pele, cafés e temperos superfaturados.

Recentemente, o pesquisador e demógrafo Saul Justin Newman recebeu o IgNobel (uma premiação para estudos inusitados) por demonstrar que as cidades com grande número de supercentenários têm grandes problemas com registros civis. O artigo Supercentenarian and remarkable age records exhibit patterns indicative of clerical errors and pension fraud ainda não foi revisado por pares, mas apresenta resultados interessantes sobre a demografia das supostas “zonas azuis”.

Newman rastreou 80% das pessoas com mais de 110 anos no mundo. Dessas, quase nenhuma tinha certidão de nascimento. Isso tira a confiança dos dados, visto que as informações não registradas se perdem e se transformam com o tempo. As pessoas erram, se confundem e mentem. É difícil justificar a fama das zonas azuis com a ausência de dados sólidos.

Há mais evidências de inconsistência nos dados de longevidade. Uma investigação conduzida pelo governo japonês em 2010 revelou que 82% das pessoas com mais de 100 anos do país estavam mortas. Segundo as estimativas de Newman, 72% dos centenários gregos também já faleceram.

Em países como Itália, França e Inglaterra, as regiões com o maior número de centenários são também as mais pobres, com maior índice de criminalidade, menor expectativa de vida e piores indicadores de saúde. No mínimo, contraditório. Newman argumenta que esses podem ser casos de fraude previdenciária.

Ao exaltar os segredos das “zonas azuis” e espetacularizar pessoas que (supostamente) passam dos cem anos de idade, o jornalismo repete o viés do sobrevivente. Isto é: focar nas pessoas que sobreviveram e fazer uma espécie de “engenharia reversa” para encontrar as causas do sucesso. Essa abordagem desconsidera as pessoas que adotaram estilos de vida semelhantes, mas não estão vivas para contar a história.

Um bom exemplo é o da francesa Jeanne Calment, a pessoa mais velha de que se tem registro na história. Ela morreu em 1997, com 122 anos e 164 dias de idade. Segundo essa lógica, seu estilo de vida seria a chave para a longevidade. A questão é que Jeanne fumou dos 21 aos 117 anos. E ninguém em sã consciência recomendaria esse hábito para quem quer viver mais.

O professor de Fisiologia Bradley Elliott, da Universidade de Westminster, resume bem a falácia do viés de sobrevivência no artigo “Por que você nunca deve seguir os conselhos nutricionais de um centenário”, publicado no portal The Conversation:

“Correlação não é igual a causalidade. Esse ponto é incansavelmente martelado para os alunos dos cursos de ciências. É assim que nosso cérebro funciona, vemos um padrão entre duas variáveis e presumimos que elas estão ligadas de alguma forma. Mas muitas vezes, como no caso do viés de sobrevivência, não estamos analisando todos os dados e, portanto, encontramos padrões onde não há nenhum”. 

No geral, as dicas para atingir os 100 anos são válidas: coma vegetais, pratique exercícios, tenha uma vida social que te satisfaça, encontre um propósito. Nada muito além do bom senso. O problema é quando o jornalismo (principalmente o de ciência) se mistura com o marketing, e passa a divulgar narrativas que atendem ao interesse de empresas como a Blue Zones LLC.

A busca por audiência nos sites e o interesse do público em temas de saúde acabam ofuscando o critério jornalístico na escolha de pautas de ciência. As empresas sabem trazer informações chamativas, e cabe ao jornalismo não cair nessas espetacularizações.

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Maria Clara Rossini Lima Costa é jornalista pela Universidade de São Paulo e foi aluna da especialização em Jornalismo Científico do Labjor. Este texto é parte das atividades da disciplina Oficina de Jornalismo Científico III, ministrada pelo professor Rafael Evangelista, na qual exercitou-se a crítica da mídia como gênero jornalístico.