Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Bacurau” e “Parasita”: alegorias políticas contemporâneas

(Foto: Reprodução)

O trecho da música de Geraldo Vandré – Réquiem para Matraga – condensa essa obra cinematográfica chamada Bacurau: você, que não entendeu, não perde por esperar.

A complexidade do filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles estimula interpretações sobre os tempos atuais. Entretanto, longe das análises, as simbologias também podem instigar sentimentos profundos, até mesmo aos que não a compreenderam.

Repleto de alegorias conectadas ao cenário político contemporâneo, esse é um trabalho marcante em todos os seus detalhes, como, por exemplo, na cena inicial de uma urna funerária que extravasa água como uma analogia que reverbera vida e morte.

Os americanos trazidos por um típico político abutre são carregados de arrogância, matam e ironizam como num jogo de paintball. Os dois forasteiros, vividos por Karine Teles e Antonio Saboia, configuram o recorrente preconceito regionalista no Brasil.

Os diretores desafiam a realidade ao inserir um ponto culminante quando os forasteiros dizem aos americanos: “Somos do Sudeste, somos diferentes… somos como vocês”. Contudo, antes de serem mortos, eles são ridicularizados diante de uma objeção: “Vocês parecem brancos, mas não são americanos”.

Veja-se o discurso dos que rechaçam as regiões Norte e Nordeste. Há uma visível pretensão Sul/Sudeste que, de modo subserviente, mimetiza o lado mais obscuro dos padrões americanos.

Há também um diálogo que oculta – ou evidencia – elementos fascistas no discurso político contemporâneo e, ao mesmo tempo, uma crítica sobre a fragilidade da resistência. Quando Michael, personagem de Udo Kier, é chamado de nazista, ele tem uma reação de fúria e diz que a maior parte de sua vida está nos EUA e categoriza como clichê esse tipo de insulto.

Sim, é essa fragilidade crítica que permite a evolução do atual cenário brasileiro. Observe a frequente utilização de “xingamentos” nas redes sociais que incentivam mais as emoções do que a razão. O pensamento contrário deve gerar reflexão, resistência e ação. Raiva por raiva, a política excludente vence… venceu…e vencerá.

Alguns pontos do filme devem ser expandidos: as imagens sobre a exclusão não estão apenas nas regiões mais pobres do Brasil, ou em muitos outros territórios no mundo, mas também nas áreas pobres localizadas nas regiões ricas. A pobreza é empurrada para as encostas e seu soterramento é assistido por duas classes de políticos: os que acreditam que a terra é plana e os que sustentam uma terraplanagem cognitiva.

Se um organismo vivo demanda por comunicação para existir, o corte da rede de internet e a retirada de Bacurau do mapa é metáfora da não-existência. Assim, as regiões mais ignoradas são as mais pobres. Sem esquecer que nós também ajudamos a matar quando desprezamos essa realidade.

No filme, a morte de muitos conduziu à resistência de Bacurau. Quando os moradores tomam uma pílula misteriosa, eles finalmente despertam. Mas não era a mesma pílula enviada pelos políticos e que levava ao abatimento. A geração de autoconsciência, propositalmente ou não, remete ao longa-metragem Matrix. Nesse filme, dirigido por Lana e Lilly Wachowski, o personagem Neo, vivido por Keanu Reeves, deve escolher entre uma pílula que mantém a realidade manipulada ou outra que o conduz ao mundo real, com todos os desafios a enfrentar.

Voltando a Bacurau, quando os habitantes se unem e lutam, muitos de seus opressores são decapitados; decapitar é uma clara representação da supressão do controle alienante.

Finalmente, e sem o desejo de esgotar os vínculos do filme, quero citar a cena em que Damiano, personagem de Carlos Francisco, pergunta: “Você quer viver ou morrer?” Por analogia, essa pergunta extrapola a obra cinematográfica. É para você, é para todos nós.

Parasita, o filme

A pobreza é apresentada tal qual um “esgoto”. Algo que os mais abastados não veem e, quando notam a presença, preferem pensar que não existe, mas o odor está ali instigando. Também em analogia, é nesse subterrâneo que a parte rica expele seus conteúdos sombrios. O cheiro parece ter sido um dos grandes protagonistas comunicacionais; em várias partes do filme, foi uma fonte de desprezo, e que se torna a raiva manifestada ao final.

A família rica que vive numa mansão imaginada por um arquiteto famoso. De traços precisos, almeja acomodar pessoas que correspondam a esse projeto: “a família perfeita”. A mansão como artefato quer simular seus habitantes. Um executivo que absorve o cartesianismo socialmente impregnado. Lá também vivem sua esposa, que conduz ao significado de “vazio”, um filho e uma filha. O garoto, um hiperativo que desenha conteúdos que esperneiam a própria vida. Os pais “perfeitos”, do ponto de vista da sociedade burguesa, não sabem ouvi-lo e tentam enquadrá-lo na retórica cotidiana. A menina, por seu lado, é incentivada a buscar o conhecimento, mas mantém-se represada em seus instintos. Os ricos, na obra de Bong Joon-ho, expectoram a “sombra” na governanta que alimenta um “parasita” no subsolo da mansão. O dejeto psíquico tem sempre um condutor.

A família pobre é a antítese dos que vivem na mansão. Igualmente possui dois filhos e sabe que, para sair da miséria, é preciso ascender. Longe de pleonasmos, essa ascensão está na metáfora: uma casa onde o teto está na altura da sarjeta, um limite social que espreita através das janelas que ameaçam cotidianamente empurrá-los às ruas.

O ritmo neurótico dos abastados preliminarmente é encontrado nas cenas que revelam as tarefas que oprimem: a insana necessidade de perfeição ao dobrar caixas de pizzas.

A simbologia do deslocamento para a parte alta da cidade exprime um espaço difícil de atingir. Assim, o primeiro a entrar na mansão é o filho excluído pelo sistema, mas valorizado por seu conhecimento. Algo como: conheça e será capaz de subir. O bairro demanda galgar ruas íngremes para chegar à mansão e o quarto da “aluna” está na parte mais elevada da residência. Contudo, o jovem que chegou lá pelo conhecimento é sugado pela intangível felicidade da família burguesa que compõe o filme: Parasita.

Muito possivelmente, a garota, interpretada por Jeong Ji-so, o vê refletindo a posição da mãe “vazia” e a volatilidade do pai. Quando a personagem vivida por Park So-dam entra nesse tortuoso território, ela é a única que parece entender o mundo do filho caçula do casal burguês.

O pai, o terceiro a entrar ou a vislumbrar a ascensão, parece carregar com mais intensidade o instinto primitivo, e então se torna um empregado dos ricos. Como ele é o motorista, poderíamos inverter alguns termos da frase anterior e construir algo como: os ricos são “conduzidos” pelo instinto primitivo.

Logo, a esposa do personagem de Song Kang-Ho surge como uma governanta que despreza o luxo e ao mesmo tempo reivindica-o. Uma das grandes provocações do filme: tornar-se aquilo que despreza.

A família que buscou a ascensão termina em tragédia, assim como nos mitos gregos. O filme, ganhador do Oscar em quatro categorias, não revelou apenas uma ficção concebida no mundo sul-coreano. Ele contou o sentimento social de todas as partes do planeta. Se transpusermos códigos, essa ação revela uma exclusão que também dizima a América Latina com palácios de toda natureza que propagam o desprezo aos mais pobres.

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Renato Dias Baptista é professor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp).