Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Bernardo Ajzenberg

‘Manchete da Folha de quinta-feira: ‘Paulistano mais teme que confia na PM’.

Título do texto interno, na edição nacional: ‘Aumenta confiança do paulistano na PM’. Na edição SP/DF: ‘Diminui desconfiança do paulistano na PM’.

A diferença entre esses enunciados, todos referentes à mesma pesquisa Datafolha -sobre a imagem da Polícia Militar entre a população de São Paulo-, levou um leitor de Lorena (SP) a escrever-me, sexta, o seguinte:

‘Não se deve examinar esse desencontro das manchetes do ponto de vista do mero erro. Na verdade, elas são exemplo claro de que manchetes variam em relação ao conteúdo da notícia, podendo ressaltar do seu aspecto mais negativo ao mais positivo, em função, por exemplo, de tendências editoriais, interesses políticos e conveniência de ‘espetacularização’ do fato’.

O raciocínio é perfeito, e diz muito a respeito da distorção efetuada pela Folha, a meu ver, na interpretação daquilo que de mais importante indicam os dados principais daquela pesquisa.

Quais eram esses dados? 54% dos paulistanos têm mais medo do que confiança na PM, ante 41% que expressam opinião contrária e 5% que ‘não sabem’.

Vistos de modo estático, como num retrato, os percentuais autorizam a formulação da manchete da Primeira Página (‘Paulistano mais teme…’).

Ocorre que essa pesquisa já foi feita pelo mesmo Datafolha, com idêntica metodologia, em outras três oportunidades. Na primeira, em 1995, ‘mais medo que confiança’ tinha 51%; em 1997, o item subiu para 74%; em 1999, caiu para 66%; e agora (nov/dez de 2003), está nos tais 54%.

Primeira conclusão: ‘sempre’ houve mais medo do que confiança. Segunda conclusão: de 1997 para cá, esse medo/desconfiança só fez diminuir, caindo 20 pontos percentuais.

Deixe-se de lado a diferença entre os títulos internos da edição nacional e da edição SP (parece claro que o segundo é conceitualmente mais preciso e que, por isso mesmo, foi introduzido, na edição mais tardia, no lugar do outro). Fiquemos, aqui, no essencial.

Qual é a informação jornalisticamente mais relevante? O retrato estático ou o movimento no sentido de uma redução da imagem negativa da PM?

Dinâmica

Questionada pelo ombudsman, a Secretaria de Redação do jornal enviou-me a seguinte avaliação:

‘Mesmo que venha caindo a desconfiança, o espantoso, por isso noticioso, é que o paulistano tenha mais medo que confiança na Polícia Militar. A PM existe para dar segurança aos cidadãos. Se, em vez disso, ela desperta medo e desconfiança, estamos diante de uma notícia.’

‘Justamente porque havia também a informação relevante de que essa desconfiança estava caindo ela foi destacada na linha fina da manchete e a editoria [Cotidiano] foi orientada a abrir o material dessa forma, complementando a manchete do jornal’, conclui a secretaria
Respeito o argumento, mas vejo, nele, uma inversão de pesos.

Na minha opinião, ante o calor do noticiário explosivo referente ao assassinato do inocente dentista Flávio Ferreira Sant’Ana por policiais-militares -de caráter obviamente negativo em relação à PM-, a Folha deixou-se levar por uma interpretação distorcida do essencial da pesquisa (feita dois meses antes do episódio) que lhe permitisse produzir uma manchete de Primeira Página ‘quente’, bombástica -além de corroborar a avaliação crítica que o jornal tem (e que é, claro, do seu direito ter) a respeito da política de Segurança do governo.

Ora, uma coisa é produzir editoriais incisivos e uma cobertura investigativa séria, profunda e crítica dos casos concretos que se apresentem e que, eventualmente, incriminem a polícia; isso o jornal costuma fazer, deve fazer.

Outra coisa, porém, como a meu ver ocorreu aqui, é explorar um caso atual para ‘bater’ na PM, quando o fato (a pesquisa) mostra, acima de tudo, goste-se ou não, uma melhora relativa da imagem dessa corporação.

Analogamente, seria como, ao longo de uma corrida eleitoral, sempre dar como manchete que o candidato X está na frente, até mesmo quando o seu adversário Y tenha denotado uma evidente evolução, já quase encostando no líder.

Haveria aí um erro factual? Não necessariamente. Mas, com certeza, o mais importante, em termos jornalísticos, seria destacar a dinâmica expressa pelos números.

Casos de ‘adaptação’ de fatos à ‘carta de intenções’ de um jornal -isso vale para toda a mídia- não ocorrem só em pesquisas. E, quando ganham a manchete da Primeira Página, então, adquirem uma gravidade ainda maior.

‘Uma parcela razoável das pessoas acredita estar informada apenas pela leitura das manchetes dos jornais expostos. Tais pessoas não só ficam muito mal-informadas como, não raro, desinformadas por essa manipulação das manchetes’, conclui, sabiamente, o leitor de Lorena.’

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‘Mais ‘Erramos’’, copyright Folha de S. Paulo, 15/2/04

‘A seção ‘Erramos’, da pág. A3, registrou em 2003 aumento de 15%, em relação a 2002, na média de correções por página de noticiário.

Foram 1.125 correções para 17.243 páginas, ante 1.039 correções para 18.375 páginas do ano anterior. Houve três correções por dia, ante 2,8 em 2002.

A pergunta é: o jornal está errando mais ou está reconhecendo mais os seus erros?

Na opinião do editor Rogério Ortega, responsável pelo Programa de Qualidade (PQ) da Redação, vale a segunda afirmação. ‘Há maior eficiência do PQ na detecção de incorreções e mais presteza e boa-vontade dos editores na hora de corrigi-las’.

O PQ checa diariamente as informações de cerca de 20 reportagens, com prioridade para as destacadas na Primeira Página.

Ortega lembra também que, ao contrário do que já existiu, ‘não há relação automática entre a publicação de uma nota em ‘Erramos’ e a avaliação dos profissionais’. Analisa-se caso a caso.

Após destacar a ação do PQ, a secretária de Redação Paula Cesarino Costa acrescenta:
‘Pode ser que a secretaria, por causa da cobrança do PQ e do ombudsman, esteja sendo mais insistente, mas é difícil precisar’.

De fato, é difícil chegar a uma conclusão precisa. Pode-se dizer, porém, que só a pressão constante pela qualidade será capaz, ao longo dos anos, de dar conta das duas coisas: reconhecimento máximo possível dos erros e, ao mesmo tempo, sua diminuição.’