Pela oportunidade, antes de mais nada, e pela qualidade do material publicado, os jornais deste fim de semana entregaram o que o leitor teria o direito de esperar sobre o julgamento no Supremo Tribunal Federal, marcado para quarta, 5, da ação que pede a proibição das pesquisas com células-tronco embrionárias para fins terapêuticos.
Liberadas, sob estritas condições, pela Lei de Biossegurança, de 2005, as pesquisas destruiriam vidas humanas, no entender do autor da ação, o ex-procurador-geral Claudio Fontelles. É o que sustenta a Igreja, na contramão da grande maioria dos cientistas – e da população, a julgar por uma sondagem divulgada pela Folha de hoje.
Três em cada cinco brasileiros – e 97% dos entrevistados com instrução superior – concordam com o enunciado de que “apoiar as pesquisas para uso de células-tronco embrionárias para o tratamento e recuperação de pessoas com doenças graves é uma atitude em defesa da vida”.
Além do noticiário, a Folha e o Globo defendem as pesquisas em editoriais, quanto mais não seja em nome do caráter laico do Estado brasileiro. E o Estadão abriu espaço a um persuasivo artigo, na mesma linha, dos ministros da Saúde, José Gomes Temporão, e de Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende.
A propósito da separação entre Igreja e Estado, muito feliz o registro da reportagem “Corte católica decidirá futuro da ciência’, de Silvana de Freitas e Johanna Nublat, na Folha de hoje:
“A decisão [do Supremo] será tomada em um plenário que ostenta na parede um crucifixo, polêmica tradição em órgãos públicos, dado que o Estado brasileiro é laico.”
A questão filosófica de fundo é se o blastocisto – o aglomerado de uma centena de células que se formam nos primeiros dias do desenvolvimento de um embrião – pode ser considerado “vida”. Esse é o material genético com que trabalham os cientistas para dele extrair as células-tronco.
Para a Igreja, a vida começa na concepção, uma crença a que ela e os seus seguidores têm pleno direito, mas não podem impôr a quem pense de outro modo.
Uma visão distinta dessa está no artigo “A vida humana segundo a razão”, do cientista político Giovanni Sartori, publicado originalmente no Corriere della Sera, de Roma, e transcrito no Estado há exatos três anos, quando da votação da Lei de Biossegurança.
Sartori [como registrei em nota para o Observatório da Imprensa, à época] distingue vida de vida humana. No limite, essa distinção está na auto-consciência.
Todos os seres dotados de sistema nervoso sofrem fisicamente. Mas o homem também sofre psicologicamente e espiritualmente.
“Digamos, então”, escreve Sartori, “que a vida humana começa a ser diferente, radicalmente diferente daquela de qualquer outro animal superior, quando o ser humano começa a ‘dar-se conta’”.
Por isso também se diz que a vida cessa quando cessa a atividade cerebral, mas a vida humana cessa quando o ser humano perde a consciência de si.
É um critério no mínimo tão bom como qualquer outro.
Lula fez “o que qualquer político faz”
O que faltou no noticiário de sábado sobre os ataques do presidente Lula ao presidente do TSE, Marco Aurélio Mello – ver a nota “O outro lado do vexame” – foi amplamente suprido no Estado de hoje na entrevista do jurista Luiz Flávio Gomes ao repórter Fausto Macedo, publicada com merecido destaque, sob um daqueles títulos da categoria Mais Direto, Impossível: “Juiz não pode falar fora dos autos”. As declarações do professor de Direito Penal repõem as coisas, como se diz, nos seus devidos lugares. Vale leitura.
“‘O juiz realmente não pode falar fora dos autos´, alerta Luiz Flávio Gomes, jurista e professor de Direito Penal, ao comentar o bate-boca entre o presidente Lula e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Marco Aurélio Mello. Segundo Gomes, está expresso na Lei Orgânica da Magistratura que juiz só deve se manifestar em processo sob sua responsabilidade.
Gomes, que foi juiz criminal por 15 anos, diz que a regra do silêncio vale para qualquer nível – juiz de primeiro grau, desembargador e ministros dos tribunais superiores. O embate entre Lula e Marco Aurélio ocorreu porque o DEM e o PSDB pediram no Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão do programa Territórios da Cidadania, lançado no início da semana, por considerá-lo eleitoreiro.
Na quinta-feira, em Aracaju, Lula disse que ´seria bom que o Poder Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas dele´, referindo-se, sem citar nomes, ao fato de que Marco Aurélio dois dias antes havia criticado o Territórios da Cidadania – para ele, um programa social em ano eleitoral, o que a lei proíbe – e afirmado que a oposição poderia contestá-lo na Justiça. Para o presidente, as declarações teriam sido a senha para a oposição recorrer.
Na sexta-feira, Marco Aurélio reagiu. ´Na nossa área jurídica há um fenômeno denominado o direito de espernear. Aqueles que se mostrem inconformados por isso ou aquilo têm o direito de reclamar. Eu só estranhei a acidez do presidente´, afirmou. ´Como ele estava no palanque, eu relevo. Ele estava num ambiente propenso e talvez tenha esquecido que não está em campanha.´
Para Gomes, essa troca de farpas causou perplexidade. Mas o jurista acredita que ´não existe uma crise institucional, isso é coisa boba´.
Juiz não pode falar?
Está na Lei Orgânica e todos os magistrados, sem exceção, a ela devem se submeter. Os juízes, de fato, devem ser mais cautelosos. A magnitude da função de ministro exige ponderação, equilíbrio.
Mas o presidente de um tribunal não tem o direito de falar?
O ministro Marco Aurélio não deveria ter declarado nada.
Por quê?
Porque ele vai participar desse julgamento. Ainda que não vote, é ele o presidente do tribunal eleitoral.
É ruim para o País um embate dessa natureza?
É ruim para a democracia, para o fortalecimento das instituições. Queremos instituições fortes, não queremos instituições fracas, vulneráveis, que não assegurem a continuidade democrática. Melhor para a democracia é que todos se respeitem e que não violem regras de ética da profissão.
Fora do Brasil não é comum esse desentendimento?
É muito comum a celeuma entre políticos, mas é muito raro ministro falar sobre qualquer assunto. Justamente para não criar polêmicas.
Ministro está impedido de se pronunciar mesmo quando não aborda o mérito de uma pendência?
Juridicamente, o magistrado não deve mesmo falar fora do processo. Prejudica o ambiente harmônico dos Poderes, traz desequilíbrio, prejudica até a economia em muitos casos. Sobretudo nesse caso, em que uma representação irá à corte, o ideal seria que o ministro não se pronunciasse.
Lula disse que o Judiciário não deve se meter em seus atos. Ele pode criticar e não ser criticado?
Quando diz que não se mete no Judiciário, quer dizer que não se intromete em decisões judiciais. Político está aí para isso. Temos que dar um desconto. Juiz é que não pode entrar
O presidente da República pode atacar um chefe do Judiciário?
Normalmente, o presidente, por ser político, acaba extrapolando. O presidente fez o que qualquer político faz. Como eles têm mais liberdade para falar, podem falar o que quiserem. O presidente está dentro da margem natural.
E o ministro não está?
Nesse episódio, o ministro não deveria ter dado início à polêmica. Isso não está dentro dessa margem das funções de ministro. Melhor mesmo é que um ministro não fale fora dos autos. É o melhor caminho.
Não seria mais sensato que o presidente também evitasse críticas?
Faz parte do bate-boca, é natural no mundo político dizer essas coisas. O que não é natural é o ministro falar. A Lei Orgânica impõe que o magistrado se manifeste apenas nos autos. Está expresso no texto.
Há uma crise entre os Poderes?
Não vejo isso como crise. Não chega a ser crise institucional, apenas um incidente corriqueiro, bobo, que não terá maiores repercussões. Segunda-feira os dois já estarão conversando normalmente. Não foi um incidente sério, mas fica como advertência para o ministro.”