Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

As moças do asfalto e os bandidos

De vez em quando, ao sabor de material oferecido pela polícia, a imprensa do Rio de Janeiro se escandaliza com casos de meninas ou moças de classe média que vão morar em favelas com traficantes.


O mote costuma ser “amor bandido”. Expressão infeliz, eu diria, por experiência própria. Voltarei oportunamente ao tema.


Agora há pouco (8/12/2005), no Jornal Hoje, da Globo, o título da reportagem foi… “Amor bandido”. Fazia algum tempo que o assunto não aparecia na mídia. Mas a polícia interceptou conversas telefônicas durante investigações e elas aparentemente foram o ponto de partida para localizar uma dessas jovens, agora com 21 anos.


O que interessa aqui é a retórica usada na reportagem.


“Uma rotina de risco, em meio à pobreza, e subordinada a regras estabelecidas por bandidos. Durante quase um ano é [foi] assim que essa jovem escolheu viver. Nesse período ela trocou o luxo da casa dos avós, que a criaram, por um quarto alugado numa favela do Rio. Foi para viver com um traficante por quem ela diz ter se apaixonado”.


A surpresa é uma demonstração de preconceito. Só para contrariar, perguntemos: e as pessoas que sofrem a tal rotina de risco sem poder escolher outra? Não mereceriam pelo menos uma reportagem equivalente? Se há no Rio cerca de 1,2 milhão de favelados, e as favelas onde não há bandidos são sobretudo as menores, deduz-se que essa rotina é simplesmente a da imensa legião dos moradores em favelas subordinadas a regras estabelecidas por bandidos. Não me consta que tenha sido feita uma reportagem indignada a respeito do namoro de uma favelada autêntica com um traficante.


Também seria curioso verificar uma recíproca: pessoas que decidissem trocar seu quarto alugado na favela por um quarto da casa luxuosa de alguém no asfalto. Daria uma bela reportagem. Mas é inexeqüível. Só poderia ocorrer como ficção.


Corta do off da repórter para uma silhueta da indigitada jovem. Dá depoimento com voz deformada. Passemos.


Entra novamente a voz da repórter em off: “No Juizado da Infância e Juventude do Rio há 5.054 casos de adolescentes envolvidos com o tráfico de drogas”. (Trata-se de todos os casos, não do número de moças do asfalto atraídas por bandidos do morro. O que esse número significa?) Em seguida, explica que o material resultou da gravação de conversas telefônicas. Uma delas é reproduzida.


E volta a repórter: “O que leva uma jovem a trocar o conforto e a segurança de casa por uma vida de risco na favela. Os especialistas explicam…” O resto é dispensável. Conflitos da adolescência, busca de identidade, conselhos aos pais, etc.


Volta a vozinha deformada. Fala um psiquiatra, na voz da repórter: “Muitas vezes, as jovens procuram esse tipo de relação pelo fascínio que o risco oferece, atraídas por uma falsa imagem de poder dos traficantes. Um desvio de comportamento que pode ser causado pela falta de carinho e proteção em casa, ou mesmo pelo excesso”. A vozinha da moça diz que ganhou carro novo quando fez 18 anos e agora, aos 21. “Foi muito fácil. Eu não preciso fazer nada para poder ter”.


Então, senhores pais, atenção para a dosagem certa de carinho que protegerá suas filhas de amores com delinqüentes em arriscadas favelas: se for de menos, ou de mais, pode causar esses desvios de comportamento.


Está prestado o serviço público da emissora.