Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Faltam pensatas sobre a crise

“Não faço a menor ideia.”


Assim começa a primeira resposta do respeitado historiador britânico Tony Judt, na entrevista à Folha de S.Paulo da segunda-feira, 2. O assunto da entrevista é a crise, e a questão sobre a qual o entrevistado, com desconcertante franqueza, disse não ter ideia era se a crise seria parte de um “ciclo natural” de desaceleração econômica.


Pode parecer que o entrevistador fez a pergunta certa ao entrevistado errado. Mas não se trata disso. O que essa crise tem de particularmente perturbador é a sua opacidade, para além das evidentes causas imediatas do colapso financeiro que mergulhou a economia global numa recessão atroz.


Ninguém, aparentemente, faz a menor ideia do tamanho do desastre em curso, nem da sua duração.


O projeto de Orçamento do presidente Obama, para citar um exemplo à mão, trabalha com a hipótese de que o PIB americano voltará a crescer uns 3% já em 2010. Reinhard Schmidt, professor alemão de política financeira, entrevistado no Globo de domingo, acha que o pior terá sido superado “daqui a cinco anos”. E por aí vai, ao (des)gosto do freguês.


Tampouco se tem ideia do que virá mais adiante. Isso que está aí pode ser apenas o princípio de alguma transformação de proporções históricas, uma ruptura de tal ordem que o sistema de mercado não voltará a ser o mesmo ou só se reconstituirá depois de décadas.


A enrascada não poupa o jornalismo. A imprensa – que faz a história do presente, ao contar e conectar as coisas, e o esboço do futuro, ao indicar os possíveis desdobramentos dos fatos apurados e interrelacionados – está tão perdida como a imensa maioria das fontes a que recorre para se calçar.


Numa recente entrevista ao El País, transcrita no Observatório da Imprensa, e resumida na Folha de domingo, o decano dos grandes jornalistas franceses, Jean Daniel, diretor da revista Le Nouvel Observateur, admitiu que “perdemos os instrumentos de previsão e nos faltam paradigmas”.


Ainda assim, a abordagem da crise não pode se resignar à cobertura de suas principais manifestações cotidianas e às decisões dos agentes econômicos e dos governos a seu respeito.


Se aqueles de quem se esperava que soubessem das coisas não fazem a menor ideia de tantas delas, trata-se então de fazê-los trabalhar, compartilhando as suas perplexidades com o grande público. O leitor tem o direito de saber ao menos que a crise estilhaçou dogmas neoliberais apresentados como “verdades científicas” nos últimos 30 anos, desencadeando um processo em que, no limite, tudo o que parecia sólido corre perigo de se desmanchar no ar, conforme a expressão clássica.


Além disso, mesmo quando, procurados pela imprensa, os sábios – ou os honestos entre eles – admitem que a crise está cobrando pesados tributos de sua sapiência, as suas elucubrações podem ser boas o bastante para dar sentido às perguntas que nós outros ou temos atravessadas na garganta ou nem sequer conseguimos formular com clareza.


Numa hora dessas, melhor a especulação minimamente fundamentada do que o silêncio aturdido. Uma prova disso foram as duas páginas do parisiense Le Monde do sábado, 28, sob o título geral “Psicanálise da crise”, com o sub “A convulsão atual não é só financeira e econômica, mas social e mental”.


A dupla é ocupada por quatro artigos, bastante desiguais entre si. Os melhores, dos sociólogos Robert Castel e Zygmunt Bauman, são amostras de um tipo de reflexão que a imprensa precisa oferecer, não de vez em quando, mas com frequência.


Para Castel, o desafio que a crise escancara não é a de encontrar alternativas ao capitalismo. “É preciso”, escreve, “ter a lucidez de reconhecer que estamos, e por muito tempo, numa sociedade capitalista e que o mercado é um componente essencial da modernidade.” O desafio consiste em “viver com o mercado sem ser devorado por ele”. A luta contra a precarização do trabalho e a degradação do emprego representa, segundo ele, “um terrreno estratégico para domesticar o mercado”.


Bauman, por sua vez, alerta para o risco de uma “volta à normalidade”, baseada na recapitalização dos bancos com dinheiro público, ou seja, a mobilização do Estado para tornar possível o retorno às “práticas nefastas” do consumismo e do endividamento forçado.


O fato de o Brasil não estar no olho do furacão da crise não exime a imprensa brasileira de transmitir as pensatas de gente séria sobre o problemaço. Fazem falta mais textos como a entrevista da Folha com o historiador Tony Judt – o que não tem “a menor ideia” se a crise está na lógica dos ciclos econômicos – mas, à parte isso, deixa no lucro quem o ler.