Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

O que pode trazer as favelas para a cidade, ou levar a cidade às favelas

Escrevi um tópico com título provocativo (“O Exército negociou, e daí?”) para contrariar o senso comum em meio ao qual muitas pessoas tomam posição a respeito da criminalidade e da segurança pública.


Vale esclarecer que tenho um desenho muito genérico para o tipo de ação que poderia, na minha opinião, sustentar uma ação de integração das favelas ou periferias pobres às cidades, ou seja, à cidadania, aos direitos humanos, à democracia, à economia formal. É uma resposta política bem convencional. Mais ou menos o óbvio, que muitas vezes é tão difícil de entender e traduzir na prática. Consiste em promover um “racha” entre moradores e traficantes dando aos moradores apoio para impor democraticamente sua vontade em seus locais de moradia.


É uma solução que foge ao antagonismo entre “ações sociais no morro”, como ilustrado ontem e anteontem pelo Jornal Nacional na seqüência da exibição do documentário Falcão – meninos do tráfico, e uma operação bélica de “aniquilamento” dos traficantes, cogitada na outra ponta do espectro.


Mas, como na jogada de Feola comentada por Garrincha, é preciso combinar com o beque russo. É preciso saber quem está interessado nisso. Vou listar, de memória, sem estudo, quem não está interessado em trazer a favela para a cidade, ou levar a cidade para a favela – que deixaria, portanto, de ser “favela”, no sentido dado pelo dicionário [Aurélio: “Conjunto de habitações populares toscamente construídas (por via de regra em morros) e com recursos higiênicos deficientes]. Como a lista ficou longa, vai em itens:


– Traficantes;


– Parentes de traficantes (não todos, certamente);


– Clientes de traficantes (leia-se os consumidores, por supuesto);


– Advogados de traficantes (não todos, provavelmente, mas incluídos muito especialmente os que fazem parte de quadrilhas);


– Birosqueiros que se beneficiam do movimento de consumidores;


– Dirigentes de associações de moradores manipuladas após a morte ou expulsão dos antigos dirigentes, que não tinham relação com traficantes (centenas, no Rio, nos últimos anos);


– Policiais que extorquem traficantes;


– Policiais que vivem de vender segurança privada contra traficantes e outros bandidos;


– Autoridades policiais que vivem de verdadeiras ou ilusórias respostas à sensação de insegurança da população;


– Políticos que subiram na favela após mostrar “firmeza” no trato dos problemas coletivos;


– Políticos que fazem aliança com esses políticos locais;


– Ongueiros que não conseguem traçar uma linha divisória entre crime e legalidade (ler Sorria, você está na Rocinha, de Júlio Ludemir);


– Funcionários públicos que usam a presença de traficantes como desculpa para sua incompetência, preguiça ou desídia.


Quem tiver contribuições ou reparos à lista, por favor faça-os. Quem tiver sugestões de políticas públicas que caminhem nessa direção, por favor faça-as. O Observatório da Imprensa não é um jornal propriamente dito. É um jornal de jornais. Faz reportagens ou comentários sobre reportagens ou comentários publicados na imprensa ou transmitidos pelo rádio e pela televisão. Mas às vezes ter uma visão crítica do trabalho da imprensa requer apurar fatos e recorrer a estudos.


Intervenções de leitores relativas ao tópico “O Exército negociou, e daí?” são um bom ponto de partida para precisar algumas algumas coisas e acrescentar elementos à conversa.


O leitor Fabio de Oliveira Ribeiro escreveu:


“Infelizmente o bloguista não percebeu o alcance de seu artigo. Ao considerar NORMAL a negociação entre o Exército e os traficantes, ele admitiu implicitamente que as favelas não são território brasileiro, mas território dos traficantes. Parece que o processo de favelização das cidades brasileiras não incomoda a alguns jornalistas tanto quanto o roubo de material bélico. (….) Uma pedra teria mais sensibilidade e racionalidade que o autor deste artigo. No dia em que a maioria dos favelados sucumbirem à criminalidade e descerem dos morros cariocas para saquear os bairros nobres do Rio de Janeiro terei a oportunidade de demonstrar o mesmo tipo de racionalidade. O que não me diz respeito não me causa nenhum horror.”


Não acho nada disso “normal”. Para começar, não me parece que o Exército deva ser empregado em ações de polícia, salvo em caso de completa falência da polícia propriamente dita (isto é, do governo estadual, situação em que cabe ao presidente da República decretar estado de defesa ou estado de sítio), ou para recolher soldados bêbados em cabarés, ou para resolver resolver crimes militares dentro de unidades militares, algo assim.


O que escrevi é que o Exército negociou por meio de uma Operação de Asfixia. Foi o nome oficial dado pelo próprio Exército. Foi o propósito proclamado desde o início e reiterado ontem em entrevista do assessor de imprensa do Comando Militar do Leste, coronel Fernando Lemos. Mesmo que tenha havido a outra negociação, a “sigilosa”, como escreveu o repórter Raphael Gomide, da Folha, ela se deu nos marcos da operação maior, em função dela. Ou será que o Exército, sem exercer pressão, receberia informações quentes a respeito do paradeiro das armas? A troco de quê?


Não depende de admissão minha que as favelas sejam ou não território brasileiro. No Rio de Janeiro, um grande número de favelas são dominadas ou pelo tráfico, ou por “milícias” formadas por matadores e ex-policiais (dezenas de favelas na Baixada de Jacarepaguá, entre elas a maior, Rio das Pedras). Nesses locais, ninguém, pessoa, empresa, imprensa, prefeitura, governo do estado, governo federal, ONG, faz nada sem pedir licença aos “donos”. Só a polícia, que é dividida. Uma parte combate, a outra vive da criminalidade. A polícia ou não negocia nada, entra chutando a porta, ou negocia “mineiras” e parcerias criminosas (caso em que não “entra”). Também as Forças Armadas, de tempos em tempos, não pedem licença para entrar. Mas nessa Operação Asfixia não “entraram”, cercaram.


Quanto à “descida dos favelados”, sempre foi temida por uns e vista como um mito por outros. Não acredito nisso. Acredito que pode haver algum tipo de “ideologização” da delinqüência. Mas isso não resultaria numa “descida” em massa. Resultaria em ações violentas organizadas, algo como “Avades” (Ações Violentas com Alvo Definido), no jargão da ultra-esquerda adepta da luta armada no tempo da ditadura.


Nelson Rodrigues Corrêa fez reparos ao título:



“(….) Ressalvo a necessidade de analisar adequadamente o título, pois em sua multiplicidade de entendimentos, pode dar margens a um entendimento contrário ao que prescreve de fato o texto. _ou seja a impressão que tive, foi de uma afronta a alguns sensacionalistas, porém não podemos nos rebaixar ao grau deles!”


O título é deliberadamente provocativo. Não creio que possa ser lido de forma literal, mas não dá para fazer título com instruções de leitura. O risco é a pessoa nem ler o texto e deduzir alguma coisa. Mas é um risco inerente ao formato ‘ensaio’.