Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Publicar primeiro, conferir depois

Se a jovem Neda Agha Soltan se tornou o símbolo mundial dos protestos contra os resultados da eleição presidencial iraniana do dia 12 – a sua morte, numa rua de Teerã, foi filmada por duas testemunhas munidas de celulares e divulgada no YouTube –, o símbolo da parceria entre a imprensa e os inumeráveis jornalistas improvisados que a abasteceram de informações sobre os acontecimentos no Irã é o blogueiro Nico Pitney, principal editor de notícias do site americano Huffington Post.


Nico foi convidado pela Casa Branca a participar de uma entrevista coletiva do presidente Barack Obama na semana passada. E teve a oportunidade de lhe fazer uma pergunta – por sinal, uma pergunta que ele disse ter recebido de um iraniano e que o presidente não respondeu direito.


[O episódio provocou uma saia-justa entre setores da mídia americana e a equipe de imprensa de Obama, acusada de transformar as coletivas dele num jogo de cartas marcadas. Mas, para que não se perca o fio da meada, essa história fica para outra vez.]


No dia seguinte à eleição, quando começaram as manifestações, Nico começou a “agregar”, como se diz na blogosfera, notícias sobre o Irã. Segundo o New York Times da segunda-feira, 29, o seu blog, atualizado diariamente várias vezes por hora, tinha recebido até a semana passada mais de 100 mil comentários e 5 milhões de visitas.


Claro que ele não está sozinho nesse tipo de empreitada. Entre os jornalistas ocidentais que vararam dias e noites recebendo notícias de fontes amadoras iranianas – via mensagens de texto, fotos e vídeos – a matéria destaca Matthew Weaver, que escreve na edição online do jornal londrino The Guardian, e Lila King, a editora do site iReport.com, da rede CNN, e Robert Mackey, editor do blog The Lede, do próprio NYTimes.


Os seus relatos e comentários compõem uma história fascinante. Pela primeira vez, jornalistas e o que se convenciou chamar “jornalistas-cidadãos” formaram uma sociedade em escala global para divulgar uma grande notícia contínua – a crise em curso no Irã –, especialmente depois que o governo fechou as portas do país à mídia estrangeira (recusando-se a prorrogar os vistos dos repórteres que vieram cobrir a eleição, proibindo os correspondentes regulares de ir às ruas, além de expulsar um deles, da BBC).


A história é fascinante não apenas por si mesma, mas por escancarar a discussão que já tardava sobre a credibilidade das informações que a imprensa recebe e divulga na web quando não pode se certificar de que são verdadeiras.


E a certificação da notícia talvez seja o aspecto singular mais importante do debate sobre o jornalismo-cidadão comparado ao jornalismo dito convencional, com os seus procedimentos estabelecidos de seleção, apuração, verificação e edição dos fatos – que a nova modalidade trata com espantosa ligeireza.


No caso do Irã, os jornalistas-blogueiros foram soterrados por uma massa de informações que não tinham condições de averiguar, ainda mais na alucinada corrida pelo furo. Prevaleceu o princípio de publicar primeiro e conferir depois.


O interessante é que nessa loucura toda não foi ao ar nenhuma barbaridade – embora ainda não estejam inteiramente claras, no episódio mais dramático, as circunstâncias da morte de Neda Soltan. O governo iraniano diz que vai investigar quem a baleou, como que absolvendo de antemão as forças de segurança e milícias do regime.


Na avaliação de Weawer, do Guardian, o que as pessoas informavam em dado momento acabava sendo confirmado horas depois por fontes “mais convencionais”. Ele provavelmente se refere a iranianos no exterior e a analistas de outras nacionalidades que falavam por telefone ou e-mail com conhecidos no país suficientemente corajosos para entrar nessa interlocução decerto vigiada.


A conduta da CNN é um bom exemplo. Em condições normais, a rede publica automaticamente as mensagens dirigidas ao iReport.com, mas só as transmite depois de entrar em contato com o remetente e de checá-las por conta própria.


A seleção ficou mais difícil quando passaram a chover textos e imagens do Irã. Ainda assim, de um total de 5.200, apenas 180 foram considerados seguros para serem exibidos no noticiário.


Entre os filtros a que a emissora recorria estavam conhecedores do idioma iraniano, o farsi, incumbidos de reconhecer a algaravia nos vídeos de protesto, identificar sotaques e traduzir inscrições e palavras de ordem gritadas.


Foi um marco, exultou a editora Lila King.


Foi também uma aposta arriscada. A praxe é o jornalista receber uma dica, ir atrás e publicar o resultado, se bater. Nesse caso, o processo ficou de ponta-cabeça, com a divulgação das “dicas” antes de sua averiguação.


Uma das sacadas dos jornalistas consistiu em divulgar e ao mesmo tempo pedir aos leitores que corroborassem ou desmentissem a notícia. O pior que parece ter acontecido foram as advertências de leitores de que essa ou aquela informação já tinha saído em outro blog e essa ou aquela imagem já estava no YouTube.


Outra boa nova foi o rápido aprendizado dos repórteres-voluntários. Eles passaram a dar mais detalhes das cenas que enviavam, filmando, por exemplo, placas de ruas e pontos conhecidos da paisagem urbana de Teerã.


À falta de uma coisa e de outra, os editores mandavam ver, ressalvando que não punham a mão no fogo pelo material – o que só é admissível, e olhe lá, em circunstâncias extremas como essa.


O NYT menciona o caso do âncora da Fox News que uma noite dessas, depois da exibição de um vídeo mostrando policiais à paisana batendo e arrastando pessoas, tratou de se resguardar: “Não sabemos de quando e onde é esse vídeo. Não sabemos nem se foi encenado, embora não tenhamos motivos para achar isso. Só sabemos que foi posto recentemente no YouTube.”


Tem um porém: mesmo na televisão, que dirá nos jornais e revistas, jornalismo não é só apresentar informações quentes, em que se possa confiar, mas, principalmente, cercar a informação primária de tantas outras quantas sejam necessárias para que o público a entenda e forme opinião a respeito.


Para isso, o jornalista não pode imaginar que basta recorrer ao suprassumo das novas tecnologias de comunicação e a tarefa estará cumprida.


Como alertou, na mosca, o observador Alberto Dines, não confundir a ferramenta com o ofício.


A batalha da informação


A crise iraniana não confrontou apenas jornalistas com o dilema de saber ou não saber. A informação, afinal, é também matéria-prima essencial para qualquer um tomar decisões sobre quaisquer assuntos – incluíndo a vida pública.


Sobre isso, o Estado teve a boa idéia de transcrever domingo, no caderno Aliás, um artigo de quase página inteira publicado no Washington Post, de autoria de três pesquisadores de um centro da Universidade Harvard que estuda internet e sociedade.


John Palfrey, Bruce Etling e Robert Faris chamam a atenção para o fato de que os governos antidemocráticos – eles citam, além do Irã, China, Mianmar, Rússia e Egito – não procuram apenas bloquear o acesso dos seus críticos à internet, mas cuidam de aprender a usá-la a seu favor.


Trechos:


Os 140 caracteres permitidos em um tweet não representam o fim da política como a conhecemos – e às vezes podem se revelar um instrumento útil para os regimes autoritários.


No Irã, como em qualquer parte do mundo, se uma verdadeira revolução se desencadear, terá de ser offline.


Paradoxalmente, a ‘liberdade de gritar’ online pode na verdade até mesmo ajudar os regimes autoritários, servindo de uma espécie de válvula de escape política. Quando a dissensão é canalizada no ciberespaço, pode manter os manifestantes longe das ruas e ajudar as forças de segurança do Estado a perseguir ativistas políticos e as novas vozes online.


[Além disso] a blogosfera não está limitada a ativistas jovens, liberais. Nossa pesquisa na blogosfera iraniana mostra que os conservadores políticos e religiosos estão tão em evidência quanto os críticos do regime.


Muito embora em geral os governos a reprimam, não podem manter a internet fechada por muito tempo sem uma forte reação dos cidadãos. As autoridades iranianas têm o poder de fechar a internet da mesma maneira como já fecharam os jornais reformistas, mas talvez estejam agora mais preocupados com a possibilidade de que qualquer ação empurre aqueles que estão apenas assistindo – ou blogando, ou twittando – para junto das multidões de manifestantes que já estão nas ruas.”