Saturday, 27 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Rede árabe de TV entra nos EUA e enfrenta guerra ideológica

O início, em agosto, das operações da rede televisão Al Jazeera nos Estados Unidos é muito mais do que um evento jornalístico. A emissora, criada em 1996 no Qatar, está no centro de uma polêmica ideológica, política, diplomática e comercial porque sua presença gera calafrios no americano médio que ainda mistura islamismo com terrorismo e cultura árabe.

O braço norte-americano da Al Jazeera vive um dilema crucial: manter o modelo de independência jornalística que a transformou num fenômeno mundial ou aceitar o padrão norte-americano de televisão para fugir dos estereótipos e de uma inevitável guerra comercial movida pelos grandes conglomerados da mídia dos Estados Unidos. 

Não é uma opção fácil e a definição já provocou violentos debates internos na emissora, conforme revelou Gleen Greenwald, do jornal britânico The Guardian. Para se ter uma idéia da intensidade da polêmica em torno da emissora árabe, o artigo de Greenwald recebeu 102 mil citações no Google só nos primeiros dois dias após a sua publicação.

A campanha contra a versão norte-americana da Al Jazeera começou em janeiro quando a rede árabe comprou a Current TV, um projeto inovador do ex-vice presidente Al Gore e que tentou ser a primeira televisão colaborativa do mundo. Gore foi acusado de traição e conduta anti-norte-americana pelos seus compatriotas conservadores.

O caso da Al Jazeera nos Estados Unidos é complexo porque a manutenção da independência editorial diante a monolítica linha editorial das grandes redes na questão do terrorismo pode lhe garantir audiência, mas poucos anunciantes, o que gera duas alternativas: dependência total de financiadores árabes, o que pode alimentar ainda mais a xenofobia norte-americana, ou uma sobrevida vegetativa que não lhe garante voos mais longos.

Coloca também as redes norte-americanas de TV e o próprio jornalismo do país diante da necessidade de manter ou revisar os padrões editoriais atuais fortemente influenciados pela guerra contra o terror iniciada em 2001, por ocasião dos atentados de 11 de setembro. O tema é extremamente sensível para os norte-americanos que em grande número ainda associam terror ao islamismo e à cultura árabe.

O modelo jornalístico da Al Jazeera, originalmente, se inspirou no serviço árabe da BBC inglesa, fechado por questões políticas com a Arábia Saudita, em 1996. Boa parte dos profissionais que trabalhavam para a rede britânica migraram para a emissora do Qatar, que ganhou visibilidade mundial ao transmitir vídeos de Osama Bin Laden no momento em que era mais intensa a caçada mundial ao homem acusado de comandar os atentados das Torres Gêmeas, em Nova  Iorque. 

Ficou conhecida também por ter aberto um escritório jornalístico em Cabul pouco antes do ataque norte-americano contra supostas bases terroristas de Bin Laden. A decisão custou caro à emissora porque seus escritórios foram bombardeados por forças norte-americanas, em 2001. Dois anos mais tarde, a sucursal de Bagdá foi igualmente atacada por um jato da USAF, matando um repórter da rede árabe.

A política de objetividade contextual, nome dado pelos seus dirigentes à linha editorial da emissora, também lhe valeu desafetos no mundo árabe. Em 1999, o governo da Argélia cortou a energia elétrica aos escritórios da Al Jazeera depois dela ter transmitido uma entrevista com líderes oposicionistas. Enfrentou também a hostilidade política da Arábia Saudita que, em represália à independência editorial, lançou uma rede árabe dissidente, a Al Arabiya.

A Al Jazeera não depende do governo do Qatar desde 2002, quando investidores privados árabes assumiram o controle acionário da emissora. Ela tem hoje 1.400 funcionários, dos quais 450 são jornalistas, distribuídos em 23 sucursais em todo o mundo, com 70 correspondentes estrangeiros. A emissora transmite via satélite em árabe e em inglês, no sistema 24 horas, e tem uma audiência global estimada em 45 milhões de pessoas.

O sucesso editorial da Al Jazeera já provocou inúmeros artigos acadêmicos em publicações norte-americanas que ressaltaram a objetividade contextual como uma possível chave para entender o comportamento da audiência. O conceito de objetividade contextual foi desenvolvido pelos pesquisadores  Adel  Iskandar  e Mohammed El-Nawawy [1] para reproduzir as várias percepções de um fato, dado ou evento, a partir de valores culturais e sentimentos do público alvo. O conceito deu certo no mundo árabe e agora vai passar por uma prova de fogo nos Estados Unidos.