Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

Privatizar as praias é inconstitucional, diz especialista

 

Litoral Norte de São Paulo (Foto: Daniela Zigante/Arquivo pessoal)

Continuamos nas águas. Depois das inundações no Rio Grande do Sul, agravadas pelo desrespeito do governo estadual às normas ambientais e pela anulação de leis reguladoras em caso de excesso de chuvas, para favorecer plantadores de soja, criadores de bovinos, madeireiros, construtores imobiliários, entre outros, agora é a vez das águas salinas do nosso litoral.

As costas brasileiras com a beleza de suas praias cantadas por músicos e poetas sempre chamaram a atenção de navegadores e turistas. E acabaram por despertar a atenção e a gula de alguns políticos, talvez impressionados com a gratuidade dessas áreas, verdadeiros lugares paradisíacos que, se bem administrados, poderiam render milhões aos seus proprietários.

Em síntese, foi assim o surgimento da Proposta de Emenda Constitucional PEC-39|2011, de autoria dos deputados Arnaldo Jordy (PPS-PA), José Chaves (PTB-PE) e Zoinho (PR-RJ). Essa proposta põe fim aos chamados terrenos de Marinha, extensões com 33 metros de largura a partir da maré alta nas praias ou ilhas e da cheia nas margens dos rios, que passariam a pertencer gratuitamente aos Estados ou municípios. Essa PEC já foi aprovada há dois anos pela Câmara dos Deputados e agora está no Senado, bem perto de se transformar em lei. Se houver veto do presidente Lula, mais do que provável, a PEC retornará ao Congresso e, se derrubado o veto, só deixará de ser lei caso haja recurso ao STF por inconstitucionalidade.

E qual o problema se essas áreas pertencentes à União, sujeitas a inundações, não são habitáveis? Ora, a imprensa em geral, os canais independentes e as redes sociais estão dando destaque porque, embora a justificativa da proposta da PEC-39|2011, agora PEC-3|2022 não diga, trata-se de uma artimanha para se chegar ao objetivo de se privatizar o litoral brasileiro e restringir seu acesso.

Em outras palavras, a proposta de emenda constitucional quer tirar do povo a utilização gratuita das praias, tornando-as pagas, tornando restrito ou pago o banho de sol à beira do mar, entrar na água e furar as ondas. Será o fim de um dos poucos prazeres gratuitos dos pobres, se bronzear e nadar numa bela praia. Os grandes empreendimentos hoteleiros, os Cancuns da vida, querem cercar as melhores praias, tornando-as privativas a seus hóspedes. Já houve no passado tentativas de condomínios de Paraty e da região de Laranjeiras de cercarem a área das praias, impedidas pela Justiça.

Mas não só os banhistas pobres de fim de semana que perderão o direito de jogar um futebol na areia, serão também proibidos os vendedores ambulantes e os donos de barracas com água, sucos e sanduíches. A privatização do litoral criará empecilhos aos pescadores, aos surfistas, impedirá o acesso às ilhas e estragará o domingo de muita gente. Impedirá também o controle ambiental de áreas litorâneas como mangues e pantanais.

O relator da PEC é o senador Flávio Bolsonaro, que nega haver a intenção deliberada de se privatizar as praias. Uma volta pelas redes sociais, exceto as bolsonaristas, mostra haver um clima de grande preocupação e a possibilidade de se mobilizar o povo contra a aprovação dessa PEC que, sem dúvida, levará ao absurdo de tornar as praias pagas. O Observatório do Clima qualifica essa PEC como Pacote da Destruição, no caso, destruição ambiental.

O ex-presidente Bolsonaro sempre apoiou essa PEC, pois um de seus sonhos privatistas era o de transformar a praia de Angra dos Reis numa Cancun brasileira. Ele queria atrair sheiks árabes, artistas, milionários, jogadores de futebol, empresários, que poderiam ter sua casa à beira do mar com praia privada protegida com muros ou cerca!

Como acentuou Leonardo Sakamoto, no UOL “a praia é um dos raros espaços democráticos do país, um espaço de entretenimento em que ricos e pobres compartilham o espaço, por mais que tenha rico com nojo de pobre e que adoraria ver isso fechado. A grande tentativa dessa história é a de se lotear as praias e conceder sua gestão para grupos privados. Se isso for aprovado pelo Senado será um retrocesso absurdo. Mas a tendência é ser aprovado, dado o tamanho interesse econômico nisso”.

De acordo com o advogado Thiago de Paula, doutor em Direito Constitucional, em entrevista ao portal Metrópoles, essa questão já foi tratada indiretamente pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o recurso extraordinário 636199, do qual foi relatora a ministra Rosa Weber, relacionado com a Emenda Constitucional 462005 e envolvendo ilhas de importância para o território brasileiro. No caso se considerou a regulação dessas propriedades da União como cláusulas pétreas da Constituição, que não poderiam ser modificadas.

Ou seja, se a questão das terras de Marinha for levada ao STF é certo que seus ministros considerarão a PEC como inconstitucional por ferir uma questão muito sensível do ponto de vista federativo relacionada com a segurança e a proteção ambiental das costas brasileiras.

Para obter mais informações:

Taísa Medeiros na CNN, https://www.youtube.com/watch?v=EvJaalW6dAg

Leonardo Sakamoto no UOL e Raquel Landim, https://www.youtube.com/watch?v=vxwqpfWiyMc

Dr.Thiago de Paula no Metrópoles, PEC propõe fim de taxa patrimonial da União e pode privatizar praias  https://www.youtube.com/watch?v=b0dW_CQf8io

O mar, de Dorival Caymmi – https://www.youtube.com/watch?v=5R24xVRhU4s

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.