Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Reforma da Previdência: o jornalismo de opinião entre falácias e manobras argumentativas

(Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

Não é incomum no meio jornalístico – teoricamente um dos mais aptos a desmontar tais expedientes, uma vez que lida com o factual das notícias – recorrer a argumentos falaciosos para criticar justamente o uso da falácia na sustentação de alguma ideia ou debate.

No caso do jornalismo opinativo, isso parece mais comum e, embora se possa imputar ao autor de uma matéria o erro ou fragilidade argumentativa, o meio não escapa (ou não deveria escapar) dos arranhões à sua credibilidade, bem porque, na maioria das vezes e não sem alguma tensão interna, o jornalista/empregado acaba reproduzindo o campo ideológico de visão de seu empregador.

As “paixões argumentativas” mobilizadas na cobertura da votação da reforma da Previdência, se não foram de todo falaciosas, não dispensaram certa ginástica ou veleidade nas justificativas, evidenciando o caráter apelativo da adesão hegemônica de grupos midiáticos a favor da aprovação das mudanças no sistema de seguridade social do país.

O rescaldo, por assim dizer, da aprovação da reforma em 1º turno de votação na Câmara dos Deputados ainda rende bom “combate” ideológico, com a pecha de derrota para as esquerdas – e houve quem entronasse a deputada Tabata Amaral como símbolo (não se sabe bem do quê) por rejeitar as “falácias da esquerda”, cuja lógica oposicionista, segundo o jornalista Helio Gurovitz, em seu blog, se reduz a fazer oposição polarizada com o único objetivo de assumir o poder.

Como não há “ingênuos” nem “estúpidos” senão “argumentos pedestres”, “absurdos lógicos” e “falácias” em jogo, sobrou a acachapante derrota para a oposição, embora o formato a que se chegou (aqui o jornalista admite, não sem ressalva, sobre perdas do “impacto fiscal almejado pelo governo”) incorpore diversas propostas da oposição (e mesmo de uma parte conservadora do Congresso), diga-se, atenuantes de medidas mais injustas, como a desconstitucionalização e as alterações que afetariam a aposentadoria rural e o BPC (Benefício de Prestação Continuada).

Gurovitz aponta duas principais “manobras argumentativas” da oposição, próximas da falácia. A primeira seria a que toma o todo pela parte (“falácia da composição”) sobre o impacto no cálculo dos milhões de beneficiários afetados, pois o que determinaria a justiça da reforma não é o custo coletivo para os mais pobres, mas “a comparação do impacto individual das mudanças para cada beneficiário”, seja o que recebe pelo INSS, o que se aposenta mais cedo ou o “privilegiado” funcionário público – tudo com estimativas do governo, claro.

Mas há estudos que apontam justamente o contrário, ou seja, um impacto maior sobre os mais pobres, com o consequente aumento da desigualdade (ver artigo A quem interessa aumentar a desigualdade?, de Thomas Piketty e outros, no Valor Econômico), uma vez que se alonga por mais sessenta meses o tempo de contribuição, mesmo que a alíquota mensal seja menor. Num cenário de precarização do trabalho, de instabilidade social, de déficit educacional e desemprego, serão poucos os que alcançarão os requisitos mínimos para a aposentadoria. E, se fosse mesmo para combater privilégios, o ideal seria apontar para o topo do funcionalismo.

A segunda manobra seria em relação à negação da necessidade da reforma nesse momento; uma falácia, já que não levaria em consideração a dramática situação fiscal do país, sendo que a previdência consome “seis de cada dez reais dos gastos públicos” (dessa vez, sem citar as fontes da “informação” estatística).

Com um mínimo de esforço, daria para constatar que há, sim, alternativas, a começar, por exemplo, com algumas das elencadas no referido artigo de Thomas Piketty, sem por em risco o financiamento tripartite da Previdência, sem o desvio das contribuições sociais da seguridade social para o Tesouro (por meio do mecanismo da Desvinculação de Receitas da União – DRU), com o combate ao déficit do sistema que é devido à crise econômica (e que a “falácia” da reforma trabalhista não conseguiu amenizar com a geração de empregos), enfrentando a sonegação fiscal e atrelando uma reforma tributária que corrija realmente inversões e injustiças nas tributações.

Isso sem citar a questão orçamentária em relação à dívida pública (nunca auditada), que consome mais de 42% do orçamento da União (dados de 2015) no pagamento de juros e amortizações, enquanto a Previdência está em pouco mais de 22%. Sem dizer (seria proibitivo?) que se trata de um endividamento por meio de uma operação (compromissada e duvidosa) do Banco Central para emitir títulos da dívida pública como garantia aos “investidores” (melhor seria dizer aplicadores, entenda-se, bancos & afins) do pagamento sobre esses “empréstimos” do governo, que não os “devolve” à economia, à sociedade, em forma (aí, sim!) de investimentos em educação, saúde, seguridade, segurança, infraestruturas etc. Tampouco o governo atua com uma política eficaz para diminuir os juros, consequentemente aquecer a economia, combatendo a desindustrialização, gerando empregos ou equilibrando as contas com o incremento das atividades econômicas.

Mas parece que tocar nesse assunto causaria mal-estar no “mercado”, na sua vertente financeirizada, desestabilizaria as Bolsas, não atrairia os “investidores” estrangeiros nem agradaria o senhorio local (grupos midiáticos incluídos) – próceres do ideário neoliberal (à la Thatcher e Reagan), só que ainda mais asselvajado por essas plagas, na manutenção de um rentismo em benefício de uns poucos (agraciados financistas) no topo dessa estratificação social.

Ainda assim o jornalista Gurovitz é capaz de expressar (sem corar) que a oposição, por ser contrária à reforma, age como mantenedora do status quo – do que se poderia acusar, então, os apoiadores dessa reforma? E seus arautos midiáticos?

Esse debate certamente se mantém aberto e merece uma cobertura jornalística com menos servilismo, livre de argumentos “falaciosos” e com menos ideologização ou falsa polarização, a fim de que prevaleçam os princípios democráticos e a política como estratégia, representatividade e equilíbrio de forças na sociedade brasileira (ainda muito desigual).

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Afonso Caramano é escritor, autor do livro de contos Ao contrário, um caminho (11 Editora, Jaú/SP – 2015).