Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A construção de inimigos

Os discursos do presidente eleito Jair Bolsonaro no dia de sua posse trouxeram alguns elementos importantes para compreendermos sua retórica. O primeiro discurso, no Congresso, foi lido pelos analistas como mais moderado. O segundo, no Palácio do Planalto, mais confrontador. Independentemente se as duas manifestações serão refletidas em políticas públicas ou mudanças legais, é importante percebermos as linhas mestras da construção da comunicação do presidente. Somados, os discursos trazem diretrizes importantes sobre a maneira como a política é representada. Argumento nesse artigo que a demonização da política e a construção de inimigos internos deve ser relacionada à táticas utilizadas por líderes tendencialmente não democráticos, especialmente Donald Trump, presidente dos estados Unidos, e Viktor Orbán, presidente da Hungria. Ao final, esboço algumas reflexões sobre a resposta política à retórica do confronto.

O tom dos dois discursos de Bolsonaro é a da polarização, do combate à elementos perniciosos. Junto com a oposição à corrupção, surge como inimigo a “submissão ideológica”. São nove menções a ideologia que envolve combate à “ideologia de gênero”, “amarras ideológicas”, economia sem “viés ideológico”, “ideologias nefastas” que dividem brasileiros e destroem valores e tradições. Os sentidos dados à ideologia variam, em determinados momentos parece designar o oposto de eficácia, embora na maior parte dos usos parece descrever posições que dividem “os brasileiros, desprezando suas tradições”. Erigir ideologia como inimigo é tão vazio quanto eficaz. Qualquer concepção política da qual se discorda pode ser tachada de ideologia que divide os brasileiros. É, também, absolutamente antidemocrático, pois o segundo sentido expressa a defesa do majoritarianismo puro e simples, ou seja, quaisquer visões minoritárias sobre o bem viver são desprezadas e apontadas como a causa dos problemas do país. Logo, a divergência deve ser apagada. Em suma, recorrer à ideologia como algo que deve ser combatido é essencialmente ideológico.

Apesar de ser mencionada apenas uma vez, teve impacto a afirmação de que afirma que sua posse sinaliza a libertação do politicamente correto. A expressão parece à primeira vista como mau uso, um desconhecimento sobre seu sentido, o típico uso sem saber exatamente o que designa. Não é. Em 2016 foi publicado artigo comparando o uso do termo por dois governantes, ambos notórios pelos ataques às instituições e enfraquecimento das regras constitucionais. Os dois foram pródigos em usar a expressão “politicamente correto” com diversos sentidos, mas tendo em comum a não resposta às questões colocadas, a simplificação de problemas complexos e a autorização para que se ofendam determinados grupos. Em suma, ao confrontar o politicamente correto os dois presidentes citados conseguem ao mesmo tempo expressar repúdio às regras, em nome de uma suposta nova maneira de fazer a política. Maneira esta que expressaria os anseios do “homem comum”, aquele que não se sente representado na política. Lembremos que um dos apelos do presidente brasileiro é justamente que “ele fala o que pensa”.

Considerando as semelhanças da campanha do presidente Bolsonaro com a de Trump, é de supor que o uso que a retórica do presidente norte-americano seja conhecida pelo presidente brasileiro. E por que isso é importante? Porque saber que a retórica utilizada foi calculada para falar para os seus apoiadores, ao mesmo tempo em que visivelmente impacta seus opositores, exige uma resposta política coerente, e não arroubos momentâneos que propagam ainda mais seu discurso. É de pouca eficácia o uso da ironia para desqualificar suas afirmações, principalmente porque pressupõem que os interlocutores compartilham o sentido dos termos usados, o que claramente é falso. Demonstrar o vazio discursivo é muito mais eficaz do que propagar frases calculadas ao extremo para produzir entusiasmo em seus apoiadores e propagação espontânea entre seus opositores. Com isso mantem-se justamente a oposição, que será vista justamente como o que o governante pretende combater.

Os próximos anos não serão fáceis ou tranquilos. O Brasil e o mundo tem passado por desafios democráticos de grande envergadura. Mas justamente por ser um fenômeno global deveríamos conhecer as táticas utilizadas em outros países para sabermos como combater o coquetel de desinformação que tem sido criado.

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Heloisa Fernandes Câmara é Doutora em Direito, professora de Teoria do Estado e Ciência Política na UFPR, e Direito Constitucional e Direitos Humanos no Unicuritiba.