Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O paradoxo jornalístico na “guerra dos dados” da Covid-19

(Foto: Unsplash)

Depois de ideologizar a questão das fake news (notícias falsas), o presidente Jair Bolsonaro resolveu partir também para a “guerra dos dados”, uma modalidade de estratégia política preocupada em disseminar a insegurança informativa e a desorientação política. É o jornalismo vivendo o aprofundamento do chamado “paradoxo dos dados”.

Ao alterar o sistema de cômputo e divulgação dos dados sobre a epidemia de Coronavírus, o governo tenta complicar o trabalho dos jornalistas e embaralhar o tipo de informação que é transmitida ao público. É um recurso muito usado por grupos políticos quando a realidade contradiz seus projetos e atitudes.

Mas embora a estratégia do caos noticioso provocado já seja antiga, ela ganhou atualmente uma importância transcendental por conta das inseguranças provocadas pela Covid-19, uma pandemia ainda sem cura, de origem desconhecida e de alto poder de contágio. Estes três fatores somados já seriam suficientes para aumentar a dependência das pessoas em relação à informação jornalística.

Por tudo isto, a guerra de dados sobre a Covid-19 no Brasil, irresponsavelmente agravada pelo governo federal, coloca os jornalistas diante de dilemas cruciais. Dilemas que têm a ver com o exercício da própria atividade, com a relação dos profissionais com o público e também com as fontes de informação, tanto na administração pública como no setor privado e nas organizações da sociedade civil.

A guerrilha noticiosa promovida pelo governo contra a imprensa aumenta a importância da conscientização, pelos profissionais da comunicação, do fato de que a avalanche de dados gerada pela internet é um fenômeno de alta complexidade que não tem soluções rápidas e muito menos fáceis. Ainda mais numa conjuntura em que a sociedade cobra respostas confiáveis para as incertezas da pandemia.

A avalanche informativa ampliou extraordinariamente a diversidade de dados, fatos e eventos sobre um mesmo problema, onde muitas versões contraditórias, inclusive as falsas, favorecem o surgimento de dúvidas e insegurança entre as pessoas. O jornalista não pode certificar de forma absoluta a veracidade ou não de todos os dados e fatos que circulam pela internet, porque a análise de cada um deles tende a se tornar cada vez mais complicada diante da sofisticação crescente dos métodos e ferramentas de desinformação e falsificação das notícias.

Como lidar com a desinformação

Isso coloca o jornalismo contemporâneo diante de dois grandes desafios:

a) O desenvolvimento de novos processos e métodos internos de investigação jornalística sobre a confiabilidade de notícias.

b) O desenvolvimento de novas estratégias de relacionamento com o público baseadas na incorporação de rotinas de checagem de dados e de contextualização de fatos.

No que se refere aos processos internos, a serem desenvolvidos em redações e grupos de trabalho em projetos jornalísticos, as opções mais comuns são o criticismo de fontes, checagem da exatidão de fatos em temas de grande repercussão (por meio do chamado jornalismo de precisão), a “autópsia” digital ( identificação da origem, fluxo, compartilhamento e edições sofridas pelo material inserido em redes sociais),  identificação de robôs informativos (postagens noticiosas automatizadas por algoritmos, geralmente intencionais) e principalmente a preocupação em relativizar a abordagem jornalística da realidade, evitando posturas tipo bom ou mau, certo ou errado, justo ou injusto. Cada uma destas opções mereceria um detalhamento específico, o que poderá ser feito em textos futuros.

Já no relacionamento com as pessoas, o grande desafio dos jornalistas é promover o desenvolvimento de uma nova cultura informativa entre leitores, ouvintes e telespectadores para neutralizar o emaranhado de versões e contraversões disseminadas por governantes, lobistas e formadores de opiniões. Por cultura informativa (literacia ou letramento no jargão acadêmico), entendemos o conjunto de rotinas, convicções e valores assumidos por cada um de nós e que serve para nos orientar na seleção, consumo e disseminação de notícias.

Estamos acostumados com a ideia de que os dados são quase um sinônimo de precisão e de certeza, mas na era digital tudo isso está mudando. Estamos diante da perplexidade de um paradoxo inédito:  quanto mais dados chegam ao nosso conhecimento, maiores as nossas incertezas e dúvidas. É uma reviravolta radical em nossa cultura informativa que exige uma revisão profunda de nossas atitudes diante da notícia. Em plena era dos dados, passamos a ter que, ironicamente, valorizar a complexidade e a relativização. Lidar com este paradoxo passa a ser um desafio que vai definir o futuro do jornalismo e especialmente a sua inserção na cada vez mais complexa arena da informação pública.

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Carlos Castilho
é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.