Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os 50 tons de realidade nas notícias sobre a Covid 19

(Foto: Geralt/Pixabay)

Estamos, é claro, parafraseando o título do badalado filme Os 50 tons de cinza. Só que o dilema não é como encarar o sadomasoquismo numa relação amorosa, mas como o jornalismo ignora a complexidade da pandemia na cobertura em jornais, redes sociais e telejornais.
Seguindo uma rotina secular, o jornalismo reduz a verdade a apenas duas caras de uma mesma moeda. Isto ficou especialmente evidente agora na Covid 19, quando a imprensa criou uma sequência de falsas dicotomias a pretexto de simplificar questões complexas para facilitar a compreensão pelo público.

Assim na cobertura da pandemia, foram criadas as categorias grave ou suave no grau de contaminação pelo Coronavírus; enfermo versus recuperado para diferenciar os internados e os liberados entre pessoas atendidas em hospitais; salvar pessoas ou salvar a economia na hora de estabelecer prioridades no combate à Covid; e lockdown ou relaxamento como estratégias para lidar com as incertezas da população. [1]

Ver o mundo em preto ou branco é bem mais fácil e simples do que levar em conta as dezenas de situações intermediárias entre dois extremos, principalmente quando estamos diante de problemas envolvendo seres humanos. Até a chegada da internet, as dicotomias (abordagem de um problema a partir de apenas duas visões) eram um recurso usual no jornalismo porque as pessoas não tinham acesso a fontes diversificadas de informação.

Mas, com a avalanche informativa na Web, e especialmente depois da globalização das redes sociais virtuais, aumentou exponencialmente a possibilidade de as pessoas tomarem conhecimento de outras versões sobre um mesmo dado numérico, fato, evento ou ideia. No caso do noticiário sobre a Covid surgiu a expressão infodemia para caracterizar o enorme fluxo de informações sobre a doença. Com isto, o jornalismo sofreu um choque de realidade que o obriga a rever todo um conjunto de rotinas, regras e valores consagrados na maioria dos manuais de redação.

A obsolescência do modelo preto/branco no jornalismo não é mais questionada no terreno teórico pela maioria dos profissionais, mas no dia a dia velhos comportamentos resistem de forma persistente ao impacto da modernidade digital. O problema é que não se trata mais de manter ou não um procedimento editorial que funcionou no passado, mas de endossar distorções na representação da realidade em notícias, reportagens e entrevistas.

A cumplicidade com a polarização ideológica

Ao simplificar problemas complexos como o da Covid, o jornalismo em cumplicidade com as elites políticas e empresariais acabaram reduzindo a questão a apenas duas alternativas, o que acabou contribuindo decisivamente para o surgimento da polarização político/ideológica. O reducionismo na abordagem das causas, tratamentos e consequências da pandemia não consegue justificar plenamente nem um lado e nem o outro. Ambos são contaminados pela insegurança e inevitavelmente acabam transformando percepções diferentes em atitudes messiânicas para ocultar dúvidas.

Esta radicalização gerou condutas paradoxais, em vários países, como a de proibir o acesso a hospitais superlotados de doentes que não se vacinaram. É compreensível a reação que equivale a um castigo a negacionistas, mas a generalização dividiu a classe médica. Pior do que isto, reforçou a tendência a posturas dicotômicas ao considerar a não vacinação como única regra para admitir ou não a internação em UTIs superlotadas.

Outro desdobramento da polarização de posições na abordagem da pandemia é a sua transformação em questão eleitoral, em países como Estados Unidos e Brasil, onde a dicotomia vacinação versus cloroquina foi incorporada ao bate boca político-ideológico, e se estendeu até o terreno religioso.

O enigma do novo normal

É claro que não se pode culpar o jornalismo e nem a imprensa pela radicalização e ideologização de posicionamentos, mas ao ignorar a complexidade da pandemia, a imprensa privou a opinião pública de dados e fatos capazes de contextualizar as causas e consequências da Covid-19 e com isto reduzir a tentação de cair no sectarismo médico e político.

A Omicron reforçou a maior de todas as dicotomias surgidas a partir do coronavírus: a pandemia vai acabar brevemente e voltaremos à vida normal de 2019 ou vamos conviver com ela por um tempo indefinido num novo e desconhecido normal? Caso o problema acabe reduzido a somente estas duas opções, provavelmente nunca chegaremos a um consenso, porque o controle das pandemias depende mais de decisões sociais coletivas do que de um remédio específico.

A vacinação é uma decisão coletiva que implica novos hábitos e atitudes das pessoas. São mudanças que não acontecem da noite para o dia porque envolvem muitos outros fatores como religião, política, hábitos, tradições que se situam fora do âmbito da medicina.

O combate coletivo à Covid implica a eliminação das imensas desigualdades na vacinação. Enquanto existirem comunidades pobres ou países com alto índice de não vacinados, haverá sempre a iminência de um novo surto, como ocorreu no caso da variante Omicron, porque o vírus encontrará muitos hospedeiros para se reproduzir e recombinar. Esta constatação torna necessário um enorme esforço mundial para reduzir drasticamente a pobreza como condição para a sobrevivência da parte rica da humanidade.

Revisar os comportamentos e normas simplificadoras da realidade é uma tarefa urgente e complicada, porque vai exigir do jornalismo uma mudança rápida, em boa parte de suas rotinas profissionais. Para fugir das dicotomias fáceis, será necessário levar em conta a complexidade da pandemia, o que implica conviver com um mar de dúvidas, com a desinformação e fake news. É um desafio gigantesco para o jornalismo, porque a profissão já enfrentava, mesmo antes do surgimento da Covid-19, o dilema de ver os tons cinza da complexa realidade contemporânea.

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[1] Para mais detalhes sobre o tema consultar os trabalhos, em inglês: COVID-19 false dichotomies and a comprehensive review of the evidence regarding public health e Omicron, false dichotomies, and the ‘new normal’