
(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Após 20 anos de trabalho, um grupo de aproximadamente 50 pessoas vinculadas ao universo das reflexões e das práticas culturais, de distintas nacionalidades, institucionalmente baseadas e suportadas pela Universidade de Friburgo, na Suíça, em 2007, legou ao mundo um documento que até então reunia os direitos culturais dispersos em muitas normativas da ONU e de suas agências, como a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto Internacional pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além de Declarações e Convenções sobre patrimônio e diversidade cultural.
Quase duas décadas depois da presença da Declaração de Friburgo para os Direitos Culturais nas cenas cultural e jurídica, e diante de novos documentos, valores, problemas e interpretações sobre os direitos culturais, o Grupo de Friburgo, mais experiente e mais ampliado, reabriu o debate sobre seu documento original, a partir de uma série de eventos, coordenados pelo Professor Patrice Meyer-Bisch, para os quais fui honrado com a deferência de participar, virtual e presencialmente (em Villeurbanne, uma cidade conurbada com Lion, na França), nos quais se desenvolvem importantes debates para construção de uma nova Declaração de Direitos Culturais [1], que eventualmente substituirá o prestigioso documento de 2007.
A proposta apresenta como novidades a atualização de entendimentos relativamente à primeira Declaração, bem como a incorporação dos aspectos culturais dos outros direitos humanos, ideia esta que, por sua largueza, de pronto me provocou estranhamento, dada a grande quantidade de direitos humanos reconhecidos e a minha compreensão linguística de que se almejava trabalhar o aspecto cultural de todos eles.
Esse entendimento acionou em mim as lembranças da Teoria Geral do Direito [2], segundo a qual todas as normas do universo jurídico têm uma emanação da cultura de onde são geradas [3], o que fez com que a proposta me parecesse em certa medida desnecessária, e noutra, impossível, porque a vinculação cultural já é imanente a todos os direitos, e querer evidenciá-la em cada caso seria equivalente a percorrer um caminho infinito.
Essa compreensão, todavia, foi alterada quando revendo meu livro “Teoria dos Direitos Culturais: Fundamentos e Finalidades”, com o objetivo de prepará-lo para a terceira edição, deparei-me com a seguinte passagem:
“Quanto aos direitos sociais e econômicos, na sua operacionalização mais usual, têm ligações eminentemente presenciais, uma vez que são utilizados como instrumentos para solução dos problemas enfrentados na atualidade, o que, com frequência, leva seus operadores a negligenciarem o passado e o futuro, mesmo que os resultados sejam desastrosos a curto, médio ou longo prazo. Quando tais direitos se referenciam nas experiências e têm cautelas para com os efeitos gerados, não se transmudam necessariamente em culturais, mas deles ficam imantados. Esse fenômeno de imantação de outros campos do direito é mais um elemento caracterizador dos direitos culturais, que com grande frequência aparecem nas relações sociojurídicas como coadjuvantes, mas de tão elevada importância a ponto de os direitos-protagonistas não cumprirem seus objetivos de forma satisfatória se forem suprimidos. Portanto, nos campos que lhes são próprios, os direitos culturais desempenham papel principal; nos demais, são acessórios, porém, indispensáveis” [4].
Esse achado, na minha própria obra, me fez perceber que a divergência com os colegas de Friburgo era substancialmente aparente e muito mais semântica que linguística, girando em torno do significado das palavras no universo cultural, a começar pela dificuldade no entendimento do que seja cultura, expressão com milhares de significados que, quando unida a outros campos valorizadores dos embates hermenêuticos (os da interpretação), como é o Direito, o desafio comunicacional se eleva à enésima potência.
Com esse autoesclarecimento, apesar de sua “nova análise do caráter fundamental da dimensão cultural de todos os direitos humanos” [5], percebi que o Grupo de Friburgo, ao centrar esforços não em todos, mas em selecionados temas de direitos humanos umbilicalmente vinculados com os direitos culturais, como trabalho (enfatizando o trabalho artístico-cultural, por exemplo), alimentação (destacando os aspectos ritualísticos e culinários), moradia (jogando luz sobre as relações culturais privadas), espaço público (sublinhando as relações culturais no ambiente social) e informática (como novo instrumental de construção e difusão de saberes), estudados com afinco e profundidade por equipes multidisciplinares, cujos componentes têm em comum a paixão e o exercício de atividades no universo cultural, faz um recorte factível e operacional para a proposta que deseja concretizar.
Assim, embora os debates ainda continuem (haverá nova rodada em abril de 2025), é muito provável que tenhamos em breve o aprimoramento da Declaração de Friburgo para os Direitos Culturais que, nascida na academia, merecidamente ganhou espaço em todos os ambientes em que se discutem e disputam os direitos culturais, desta feita com a perspectiva de que ainda se comunica melhor com os interessados, pois discutida com muitas pessoas de diversas partes do mundo, que podem contribuir com suas linguagem e seus valores, permitindo que a nova Declaração espelhe a diversidade humana, e não apenas a de uma específica dimensão geopolítica do globo terrestre.
Notas
1 MEYER-BISCH, Patrice; Bidault, Mylène; Baccouche, Taïeb; Borghi, Marco; Bourke-Martignoni, Joanna; Dalbera, Claude; Decaux, Emmanuel; Donders, Yvonne; Fernandez, Alfred; Imbert, Pierre; Marie, Jean-Bernard; Meuter, Sacha; Sow, Abdoulaye. Afirmar os Direitos Culturais: Comentário à Declaração de Friburgo (Coleção Os Livros do Observatório) (Portuguese Edition). Itaú Cultural. Edição do Kindle.
2 REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000. Idem. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 1994.
3 HÄBERLE, Peter. Le libertà fandamentali nello stato constituzionale. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1993.
4 CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Teoria dos direitos culturais: Fundamentos e finalidades (Portuguese Edition) (p. 23). Edições Sesc SP. Edição do Kindle.
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Humberto Cunha Filho, Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades” (Edições SESC-SP).