Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Dois brasileiros entre o drama e a intolerância no Curdistão iraquiano

(Foto: anncapictures/ Pixabay)

Dois brasileiros apresentam filmes rodados no Curdistão iraquiano na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e no 9º Panorama do Cinema Suiço Contemporâneo. O diretor Sergio Tréffaut está na Mostra e a atriz Tuna Dwek no Panorama.

Sergio Tréffaut nasceu em São Paulo. Estava há mais de 40 anos fora do Brasil. A família fugiu para a França desde que seu irmão 10 anos mais velho foi torturado e quase assassinado pelos militares brasileiros. Voltou a morar no Rio de Janeiro para buscar os encantos de sua infância e adolescência. Mas apaixonou-se pelo tema das mulheres europeias que se casam com idealistas também europeus. Eles se integram ao Estado Islâmico, a organização jihadista criada após a invasão do Iraque, e lutam pelos seus princípios contra atrocidades, no caso da guerra civil síria, do exército de Bashar al-Assad. Tréffaut também tem outras nacionalidades por parte da mãe francesa e do pai alentejano e, sensibilizado pelas 16 portuguesas viúvas de jihadistas julgadas em Portugal, partiu há dois anos de Santa Tereza onde mora para o Curdistão iraquiano. 

“A Noiva” deixa subentendido a paixão de uma garota de 20 e poucos anos pelo marido, o primeiro, um francês mártir da guerra que deixa Bárbara só com seus dois filhos europeus, e é então obrigada a se tornar “noiva” do Jihad. O filme começa pela execução desse “noivo” jihadista, apanhado pelo Exército sírio e metralhado junto com outros prisioneiros. Bárbara, igualmente prisioneira e grávida desse “noivo” que lhe foi imposto, não demonstra nenhum afeto e assiste à execução com frieza. Ele tem 25 anos.

O foco do filme e da preocupação de Tréffaut está nos pais e avós desses jovens europeus atraídos ao Jihad. Que em seguida visitam Bárbara no acampamento onde está aprisionada, acompanhada de outras mulheres, um matriarcado de apoio. A mãe francesa do primeiro marido de Bárbara, revoltada com o que vê, deixa claro sua oposição à escolha do filho pela luta no Jihad, morto antes de completar 25 anos. Ela pergunta pelos netos, mas não se dispõe a vê-los ou abraçá-los. Apenas entrega algum dinheiro à Bárbara e vai embora. Ela simboliza o misto de revolta, culpa e dor das mães europeias que perdem seus filhos sem terem conseguido demovê-los de partir, lutar uma luta que não é a sua, e morrer.

O pai de Bárbara também está presente para assistir ao seu julgamento, que pode levá-la à morte ou torná-la prisioneira perpétua ou por décadas. Bárbara é portuguesa, viveu na Holanda e apaixonou-se pelo francês idealista a ponto de acompanhá-lo até a morte. Uma garota como as outras, que se vestia como todas, jeans rasgados, e gostava de Amy Winehouse, música que o pai toca para ela antes do veredito. Ouve calada insultos dos generais contra o Estado Islâmico e sabe que sua situação será difícil: se for liberada os países europeus não querem esses terroristas de volta, não querem a repatriação, lavam as mãos – as leis deixam claro.

O filme deixa em suspense o futuro desta “noiva”.

Tréffaut conta na entrevista que França, Suécia e Portugal resgataram alguns dos seus, as mulheres europeias de jihadistas. Porque ao contrário dos maridos ou “noivos”, as mulheres europeias não são executadas, pegam alguns anos de prisão e aguardam a resolução dos países de origem. Que podem ou não trazê-las de volta. Tréffaut tem um olhar ficcional em filmes de reflexo documental, real. Criou sua própria produtora em 2002, Faux, e já realizou uma dúzia de filmes (Florette, Lisboetas, Treblinka, Raiva…). O último, “Paraíso”, um belo tributo à MPB, tomando como fio condutor os senhores e senhoras que se reuniam antes da pandemia para cantar nos jardins do Palácio do Catete. Antes, já tinha filmado este comovente “A Noiva” em 81 minutos. A ver no circuito comercial.

 

VIZINHOS

Filmado no mesmo Curdistão, “Vizinhos” retrata uma comunidade curda na fronteira da Síria com a Turquia. Ao contrário de “A Noiva”, “Vizinhos” remonta aos anos 80, mas os problemas na região permanecem os mesmos. Muda apenas o ditador sírio, que na época era Hafez- al-Assad, pai de Bashar. O que acontece com cristãos e judeus que coabitam o local até então sem nenhuma discordância?

A história é vista pelos olhos do menino Sero, de seis anos. A mãe de Sero está numa atividade cotidiana lavando roupas no rio quando é atingida por um tiro. É morta sem nenhum motivo por um guarda que aperta o gatilho às cegas, a arma apontada ao grupo. O irmão, tio de Sero, se revolta, e ao reagir acaba preso. Volta arrebentado e tenta escapar novamente a cavalo. Mas o cavalo retorna sozinho.

Sero, que só falava a língua curda, sofre palmatórias e vexames diante no novo professor enviado por Damasco para defender a religião cristã e a língua árabe. Dali em diante todos só poderiam ter uma religião e falar uma única língua, o árabe.

É chocante a dissolução, violência e corrida ao exílio de uma comunidade que vivia em paz. Tuna vive a mãe judia que fala três línguas, hebraico, curdo e árabe. De religião judaica, Tuna conheceu o diretor curdo-suíço Mano Khalil no Brasil durante um Festival de cinema quando ele preparava o elenco para “Vizinhos”. Contratou Tuna ali mesmo, que faz um papel marcante e tenta convencer o pai de Sero a entregar o passaporte da mulher morta à sua filha. A jovem, se não escapar do inferno, vai acabar morta. O ditador sírio resolveu tornar o Curdistão sob seu domínio um país árabe, todos deveriam falar apenas esta língua e odiar Israel.

“Vizinhos” retrata o mundo de intolerância que vivemos hoje. Na sessão de abertura do filme, Tuna leu a mensagem do diretor Mano Khalil sobre o mundo pacífico em que a comunidade vivia até então. “As ditaduras do Irã, da Síria, do Iraque, da Turquia não permitem que os curdos sejam independentes”, diz, e reafirma que seu filme é um libelo pela tolerância e o respeito ao povo curdo.

Tuna é filha de imigrantes sírios de religião judaica. Cientista social brasileira, tradutora e intérprete, a atriz trabalha com a mesma intensidade em drama e comédia. Fala cinco línguas e já trabalhou em 19 novelas (Ciranda de Pedra, O Astro …), 43 filmes (Marighela, Cidadão Boilensen, Boleiros, Meu Amigo Hindu…) e mais 25 peças teatrais, acumulando diversos prêmios.

Na sessão de abertura do filme, Tuna faz um discurso deixando claro que “Vizinhos” é ficção, mas ninguém se engane, o diretor vive exilado em Berna na Suíça; o professor que no filme foi enviado por Damasco escapou dos sírios e vive na Bélgica, e vários atores do filme estão expatriados em Paris, Los Angeles, pelo mundo. Além de repressão, drama e despotismo, “Vizinhos” exalta a solidariedade e também o amor. Ganhou prêmios em festivais árabes e judaicos em Dubai e Moscou.

***

Norma Couri é jornalista e diretora de Inclusão Social, Mulher e Diversidade da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).