Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Como vacinas, ataques de Bolsonaro à democracia treinaram a reação ao 8 de janeiro

Quebra-quebra em Brasília era para ter sido o estopim do golpe de estado (Foto: EBC) 

“Foi como uma vacina que ensina às defesas imunológicas do corpo a reconhecer o inimigo. É isso?” Foi assim que um amigo médico resumiu, em uma conversa de quase duas horas, regada a cerveja, os fatos que lhe contei sobre os bastidores da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas radicalizados quebraram tudo que encontraram pela frente nos prédios do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso, na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). Respondi à pergunta: “Confesso que nunca tinha pensado em tal comparação com a vacina. Creio que podemos dizer que foi assim”.

Vou contar os motivos pelos quais acredito que a comparação feita pelo meu amigo médico se encaixa na história do 8 de janeiro. Antes é preciso contextualizar os fatos para facilitar o entendimento, como manda o manual da reportagem. Comecei a trabalhar em redação em 1979. Mas convivia com jornalistas desde o final dos anos 60, quando passei a frequentar os botecos do bairro Bom Fim e arredores, na época uma zona boêmia de Porto Alegre (RS). Foi lá que ouvia a choradeira dos repórteres sobre a censura nas redações e a grande dificuldade de ter acesso a informações do governo, por mais simples que fossem. Sempre tinha um tranca-ruas para complicar a vida. Havia dois assuntos sobre os quais se falava muito nas mesas dos botecos. O AI-5, ou Ato Institucional número 5, decretado pelo governo militar em 1968, que entrou para a história como o “golpe dentro do golpe”, uma expressão criada para explicar que os militares linha dura haviam tomado o poder dos seus colegas de farda que em 1964 tinham derrubado o presidente João Goulart, o Jango, do antigo PTB. E o assassinato, em 1975, do jornalista Vladimir Herzog, 38 anos na época, nas dependências do DOI–Codi, um dos órgãos da repressão política que funcionava dentro da sede do 2º Exército, em São Paulo – há matérias na internet. Quando comecei a exercer a profissão de repórter, em 1979, entrou em vigor, em agosto, a Lei da Anistia, que permitiu a volta ao país dos refugiados políticos e abriu caminho para o perdão aos torturadores e autores de outros crimes cometidos pela ditadura. Mas ainda existia a censura, especialmente a respeito de notícias sobre o ressurgimento dos movimentos sociais, entre eles a questão da reforma agrária, tema no qual tinha me especializado. Portanto, estava atolado até o pescoço com o assunto. Tive problemas. Mas nada comparado com os enfrentados pelos meus colegas na época do AI-5. Em 1985, os militares deixaram o poder e os civis assumiram. Em 1988, foi publicada uma nova Constituição, garantindo os direitos fundamentais dos brasileiros, como a liberdade de imprensa.

Encerrada a contextualização do nosso assunto, vamos deslanchar a história. Com o término do regime militar houve mudanças nas redações. Desapareceram da maioria dos jornais os comentaristas políticos especializados em assuntos militares, promoções de oficiais e outras notícias que poderiam indicar quem seria o próximo general a presidir o país. Os poucos comentaristas desses temas que restaram nas redações receberam o apelido carinhoso de “entulho autoritário”. A questão agrária ficou nas manchetes na década de 90 e depois desceu para o pé da página. Foi quando acrescentei ao meu currículo as especializações em crime organizado nas fronteiras e migrações internas. Durante muitas décadas se questionou tudo no Brasil. Menos a democracia, especialmente a liberdade de imprensa. Inclusive, durante a campanha eleitoral para presidente da República em 2018, apesar do fato do então candidato Jair Bolsonaro (PL) ser capitão reformado do Exército, figurinha carimbada da extrema direita e defensor dos torturadores do regime militar de 1964, não se cogitou que, caso fosse eleito, tentaria um golpe de estado. Começou a articular o golpe no minuto seguinte ao início do seu mandato, em janeiro de 2019. No princípio, a maioria dos jornalistas acreditava que se tratava de bravatas. Afinal, durante as três décadas em que foi deputado federal pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro conseguia espaço nos jornais falando bobagens. Com o passar do tempo a coisa foi ficando séria, porque ele atacava a imprensa e os ministros do STF. Ainda mais: transformou em política de governo o seu negacionismo em relação ao poder do vírus da Covid-19, que instalou a pandemia no mundo em 2020. Os ministros do STF agiram e enquadraram Bolsonaro, que foi obrigado a comprar as vacinas e tomar outros procedimentos para proteger a população da doença. Toda essa história é contada nas 1,3 mil páginas do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado da Covid-19 (CPI da Covid), que colocou as digitais do governo Bolsonaro nas 700 mil mortes de brasileiros pela doença – há matérias na internet.

Durante a pandemia todos os defensores da jovem democracia brasileira começaram a tomar consciência que ela tinha um inimigo e que este ocupava o mais alto posto da República: a Presidência da República. Nas redações dos jornais houve a consciência que não se estava lidando com um bravateiro. Mas com uma pessoa que havia se cercado de um contingente de mais de 6 mil militares (ativa, reserva e reformados) de várias patentes, incluindo generais, na máquina administrativa federal. E havia colocado gente alinhada com a ideia de golpe de estado nos principais postos da União. Eles não estavam ali por simpatia política com os bolsonaristas. Mas pelo dinheiro extra que ganhavam exercendo funções civis na administração. Durante os quatro anos do seu mandato, as ações tomadas por Bolsonaro em favor do golpe de estado treinaram as defesas da democracia brasileira para agirem. Elas agiram e mais de 1,9 mil pessoas foram presas no quebra-quebra de Brasília. Bolsonaro foi tornado inelegível por oito anos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e responde a dezenas de processos e inquéritos policiais. E nós jornalistas aprendemos uma grande lição: a liberdade de imprensa é um direito que reafirmamos a cada linha que escrevemos em nossas matérias. Os ataques constantes do ex-presidente contra as instituições nacionais treinaram o aparato que defende a democracia a identificar o seu inimigo e agir.

Publicado originalmente em “Histórias Mal Contadas”.

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.