Friday, 26 de July de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1298

A falsa (e perigosa) inocência das teorias da conspiração

Foto: Arquivo pessoal

Foto: Arquivo pessoal

Em um primeiro momento as teorias da conspiração podem parecer inocentes e inofensivas, algo bobo, feito para pessoas paranoicas com seus chapéus de papel-alumínio. Mas o que se viu no enfrentamento da Covid-19 foi algo muito diferente.

Algumas teorias da conspiração relacionadas à vacina, como a de que esta possuía microchips, levaram à hesitação vacinal e à discriminação sofrida por asiáticos por causa da história de que a China teria criado o vírus; estes são alguns dos exemplos dos danos que as teorias da conspiração propiciaram. E o que se viu é que, mesmo sem qualquer evidência e respaldo científico, as teorias continuam se espalhando. 

As redes sociais e a internet amplificam os adeptos e os efeitos dessas teorias. Uma das mais recentes, que se espalhou na rede, foi a da existência de Ratanabá, suposta cidade perdida na Amazônia que teria sido capital do mundo há 450 milhões de anos e que teria muitas riquezas e tecnologias avançadas desses povos ancestrais. Numa dessas teorias, as ONGs internacionais em defesa da Amazônia e direitos dos povos indígenas seriam de fachada: seriam os estrangeiros querendo roubar as riquezas desta ‘‘cidade ancestral’’. Esse tipo de alegação é nociva, uma vez que afasta o real debate necessário sobre o desmatamento e as queimadas devido ao garimpo ilegal e à grilagem.

Em entrevista ao Observatório da Imprensa, Carlos Orsi explica o funcionamento das teorias da conspiração e comenta sobre os riscos que esses tipos de narrativas trazem. Orsi é jornalista e escritor, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e fundador do Instituto Questão de Ciência. 

Nicole De March – Qual o padrão encontrado nas teorias da conspiração? 

Carlos Orsi – Quando falamos sobre teoria da conspiração pressupomos que são teorias infundadas, mas não podemos esquecer que conspirações existem e acontecem, como no caso da destruição das torres gêmeas, que foi uma conspiração terrorista. Porém, uma teoria da conspiração, no mau sentido, é aquela que atribui eventos complexos de múltiplas causas a um grupo visto como beneficiário desses eventos. Um exemplo foi a teoria da conspiração de que a pandemia foi causada pela indústria farmacêutica porque ela queria vender vacinas. 

As alegações desses tipos de teoria são sem evidência e não falsificáveis. Seria como dizer que a falta de provas da veracidade da teoria da conspiração se deve ao fato dos conspiradores serem tão bons que destruíram todas as provas; ou seja, não ter provas é uma prova.

Outro fator que alimenta uma teoria da conspiração são as coincidências. Por exemplo, a de que a pandemia de Covid surgiu no momento em que a rede de telefonia 5G começava a se expandir. Decorrente disso, na Inglaterra, surgiram aquelas teorias de que na verdade o vírus tinha sido causado pela radiação destas antenas de 5G e de que isso tinha provocado mutações nas pessoas. Isso é chamado de viés de proporcionalidade, que é uma tendência que os seres humanos em geral têm de achar que grandes eventos têm de ter grandes causas. Então, uma pandemia que paralisa o mundo não pode ter sido causada por algo tão banal quanto um animal que foi vendido num mercado na China. Se o efeito é gigante, a causa tem que ser gigante, como a de que, na pandemia estaria a indústria farmacêutica querendo ganhar milhões, ou a instalação das antenas de 5G. 

Outra característica, além da atenção exacerbada a coincidências e o viés de proporcionalidade, é de que por trás de uma grande teoria da conspiração há uma teoria antissemita. Isso provavelmente vem da época da Idade Média quando se tinha as calúnias de sangue, quando se espalharam boatos de que os judeus estavam matando crianças cristãs. Eu acredito que existe esta predisposição cultural no ocidente europeu de desconfiar do povo judeu e isso é incorporado nas teorias da conspiração seguidamente ao longo do século.

N.D.M – Por que as pessoas aderem a estas teorias?

C.O. – Porque elas oferecem explicações simples para fenômenos complexos, fazendo com se tenha a ilusão de entendimento do fenômeno; essa ilusão de compreensão gera uma ilusão de poder, de controle. Isso é tranquilizante, reduz a ansiedade. 

N.D.M – As teorias da conspiração podem ser classificadas como desinformação?

C.O – Algumas teorias da conspiração são desinformação, no sentido bem clássico, que são construídas por gente que sabe que elas são falsas para atingir um determinado fim político, econômico etc. Um exemplo é a obra Os Protocolos dos Sábios de Sião, que foi criada na Rússia. Mas algumas teorias da conspiração não são assim; surgem de uma forma mais ou menos espontânea, ou são apenas a tentativa de encontrar uma ligação entre dois acontecimentos e acabam se espalhando simplesmente porque têm alguma propriedade de viralização memética. Ou seja, existem teorias da conspiração que são desinformação, no sentido de serem maliciosas e mal intencionadas ,e existem conspirações que são tentativas sinceras de entender o mundo, mas que estão erradas; nem por isso são menos perigosas.

N.D.M – Quais são as ameaças que as teorias de conspiração representam?

C.O – A ameaça principal é tornar o grupo acusado de ser o conspirador alvo de ódio social. A história mostra que quando uma minoria, um pequeno grupo, é transformada em receptáculo do ódio da sociedade, pode resultar em problemas, como foi com o antissemitismo.

Em segundo lugar, ela desvia a atenção e recursos das verdadeiras causas dos problemas. Às vezes das pessoas estarem tratando os problemas como complexos e multifatoriais que são, tratam-nos como se fossem simples e causados unicamente pelos conspiradores que supostamente se beneficiam com isso. 

Além disso, essas teorias podem criar pânico social, um estado em que a sociedade fica extremamente preocupada com um problema que na verdade não é tão grave assim.

Um exemplo disso foi o que tivemos recentemente com a história da baleia azul e da Momo, que seriam responsáveis por mensagens suicidas transmitidas para as crianças via redes sociais. Isso requer recursos de atenção, tempo das pessoas e se foca em um problema que ou não existe ou existe, mas não precisa de um tratamento tão concentrado, tão histérico assim.

O pensamento conspiracionista prejudica a capacidade das pessoas de traçar relações válidas de causa e efeito. Cria-se o vício de ficar procurando relações, com pensamentos do tipo ‘‘se isso aconteceu é porque alguém queria que acontecesse’’, ou seja, pensar em quem queria, em quem ganhou dinheiro com o ocorrido. Embora isso possa ser uma via de investigação válida, nem sempre é e não é a única; existem outros tipos de coisas envolvidas em relações de causa e efeito. Isso envenena o debate político, já que transforma o que deveria ser um debate sobre políticas públicas, sobre o que é melhor para a sociedade, numa troca de acusações: cada lado acha que o outro é o grande culpado ou o grande conspirador e isso desumaniza o adversário. Em vez de o ver como adversário, passa-se a vê-lo como inimigo, como se ele estivesse manipulando a sociedade para destruir valores que você acha importantes -e o adversário olha para você e vê a mesma coisa, transformando o debate político em uma guerra .

Por mais que precisemos criticar as autoridades e ser céticos em relação aos discursos que os políticos fazem, quando o ceticismo e a crítica se tornam absolutos e as pessoas realmente não confiam em mais nada do que as figuras em posição de autoridade dizem, sugerem, pedem etc., o tecido social é destruído. Corrói-se a confiança mínima necessária para a sociedade funcionar. Ou seja, a teoria da conspiração estimula o ódio, corrói a coesão social, acabando com a confiança mínima. Vimos isso no Brasil durante a crise da Covid-19, em que as autoridades começaram a lutar entre si. Autoridades científicas dizendo uma coisa, autoridades políticas dizendo o contrário, em qual delas a população vai confiar?

N.D.M – Você poderia citar um tipo de conspiração com viés político? 

C.O – A grande conspiração brasileira do momento é a de que existe uma armação dentro dos tribunais eleitorais para roubar a eleição. Ninguém disse isso, Bolsonaro não diz que existe uma conspiração no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral para que as urnas eletrônicas façam algo contra ele, porém é o que ele está insinuando e deixando seus apoiadores acreditarem. Bolsonaro está construindo um clima cultural no qual, caso ele perca as eleições, existam explicações alternativas para esse resultado, além do fato de as pessoas não terem votado nele. Essas explicações alternativas seriam que ocorreu fraude nas eleições, de que as urnas eletrônicas foram hackeadas e assim por diante. Isso seria insinuar uma teoria da conspiração.

N.D.M – Como este tipo de teoria da conspiração pode atuar nas eleições? 

C.O – Na verdade isso torna as eleições, no limite, inúteis. Essa narrativa de que, se o Bolsonaro ganha as eleições é porque as forças do bem venceram a conspiração e de que se ele perdeu é porque a conspiração venceu e ele foi roubado, faz você não precisar de eleições. Para quem acredita nessa conspiração, a questão já está resolvida: Bolsonaro é o candidato favorito e se as urnas não mostrarem isso ou é porque elas têm defeito ou porque os ‘‘malvados’’ as manipularam.

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Nicole De March é mestre e doutora em Física (UFRGS). Pós-doutoranda do LABTTS (DPCT-IG/Unicamp) e membro do Grupo de Estudos de Desinformação em Redes Sociais (EDReS).