Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O fact checking local e a “gosma rosada”

Foto: Syda Productions/Adobe Stock

A checagem da veracidade de dados, fatos e eventos está se tornando um item crucial no espaço público municipal por conta de uma nova estratégia de desinformação que foi testada nas eleições norte-americanas de 2020 e que agora está sendo replicada em vários outros países, inclusive aqui no Brasil.

A nova estratégia, que nos Estados Unidos, foi rotulada de pink slime, em português gosma rosada, usa intensivamente robôs eletrônicos para disseminar mensagens políticas destinadas a pessoas que vivem em pequenas cidades ou em bairros periféricos das grandes metrópoles. Os robôs incorporam dados e fatos capazes de distorcer o significado da informação , que serve de isca para os usuários de redes sociais.

Pink slime é a pasta rosada resultante da moagem de refugos da carne animal junto com aditivos químicos e que é usada para engrossar hamburguers, salsichas e patês industrializados. O uso do produto é considerado nos Estados Unidos como uma tentativa de enganar os consumidores ao levá-los a comprar sobras de frigoríficos junto com produtos industrializados de carne.

A verificação de informações no âmbito local é a mais complexa entre todas as variantes do chamado fact checking, checagem de dados, fatos e eventos. A causa está nas características especiais do jornalismo praticado em pequenas cidades ou bairros periféricos em cidades médias ou grandes. Nestes ambientes, o número de profissionais é reduzido e, além disso, eles enfrentam pressões e a intimidação de políticos e empresários municipais pouco afeitos ao exercício de um jornalismo independente.

A experiência prática tem mostrado que há sempre uma forte resistência da fonte responsável pela informação sob suspeita a uma checagem. A tentativa da verificação é sempre associada pela fonte da notícia em investigação como um ato hostil e não uma preocupação com a qualidade da informação. O jornalista é tratado como um bisbilhoteiro em vez de um profissional interessado em ajudar as pessoas a tomarem decisões adequadas aos seus desejos e necessidades.

A proliferação da pink slime

Além disso, a maior parte das informações está concentrada em poucas fontes que têm contratos de publicidade com veículos de comunicação como blogs, páginas notícias na web, programas radiofônicos e jornais impressos. A dependência financeira em relação às fontes informativas reduz enormemente a autonomia destes veículos na hora de checar informações ou colaborar com verificadores independentes.

Este é o ambiente favorável à multiplicação de uma modalidade informativa que a prestigiada revista acadêmica Columbia Journalism Review rotulou como “pink slime journalism” (jornalismo gosma rosada). O estudo feito pelo pesquisador da Columbia, Priyanjana Bengani, apontou um vertiginoso crescimento de 250% no número de sites locais supostamente informativos e abastecidos por robôs eletrônicos, semelhantes aos usados pelo Gabinete do Ódio, em Brasília. Em 2018, Bengani identificou 400 sites de “jornalismo pink slime”, em 2020, o número disparou para perto de dois mil, só nos Estados Unidos.

Aqui no Brasil, o site Safernet, citado pela revista IHU, da Unisinos, afirmou que o número de publicações online com conteúdo ultraconservador saltou de 28 em 2018 para 204 páginas no final de 2020. E a tendência é que, como os conservadores brasileiros seguem a linha geral dos seus congêneres norte-americanos, é esperado um crescimento ainda maior no número de sites que usam fake news para promover causas ideológicas e políticas de tendência conservadora e ultraconservadora. Isto inevitavelmente provocará uma sobrecarga de trabalho para as quase três dezenas de projetos de verificação de credibilidade existentes atualmente no Brasil.

Como a estratégia dos grupos políticos de tendência conservadora é apostar no eleitorado das pequenas cidades como foco irradiador de movimentos ideológicos, surge o grave risco de uma contaminação massiva dos fluxos informativos locais com material contendo notícias distorcidas, fora de contexto ou simplesmente falsas.

Uma missão quase impossível

Levando em conta que cerca de 18 milhões de brasileiros postam diariamente mensagens no Facebook, cada uma das 10 maiores organizações de fact checking deveria checar 1,8 milhões de notícias a cada 24 horas, o que é uma meta materialmente inviável. Usamos este exemplo extremo para mostrar a impossibilidade de uma certificação de 100% dos dados, fatos e eventos publicados só no Facebook.

Para se ter uma ideia da enorme diferença entre a teoria e a realidade, o Projeto Comprova, que reúne 28 organizações brasileiras e mobilizou 78 jornalistas, conseguiu completar a verificação de 283 notícias ao longo de seis meses, até fevereiro de 2021. O desnível não é só no Brasil. Na Austrália, 8,3 milhões de pessoas se informam diariamente através do Facebook, que publica em média quase um milhão de mensagens a cada 24 horas, checadas por sete sobrecarregados verificadores profissionais, pertencentes a duas organizações jornalísticas.

Todos estes dados e indicadores mostram a dimensão do problema a ser enfrentado daqui até as eleições do ano que vem pelos moradores das cidades com menos de 100 mil habitantes e que formam 97,6% dos municípios brasileiros. Estes milhões de eleitores estarão expostos à desinformação com mínimas possibilidades de encontrar versões alternativas para dados, fatos e eventos que lhes chegam por redes sociais, hoje responsáveis pelo cardápio informativo de quase 70% da informação consumida pelo público em geral.

Esta realidade indica a importância da ideia levantada pela professora e jornalista britânica Emily Bell para quem a alternativa para a missão impossível dos checadores de informações é a formação de comunidades de leitores que complementariam a verificação de credibilidade das notícias publicadas em redes sociais através de consultas mútuas. Emily Bell é mais uma das já numerosas vozes que surgem no meio jornalístico contemporâneo para destacar o papel fundamental que as notícias locais passam a ter no contexto social.

A complexidade dos interesses políticos e empresariais envolvidos nos fluxos noticiosos municipais faz com que os moradores locais sejam as pessoas com mais condições de identificar a “gosma rosada” e as notícias falsas que lhes são fornecidas através das redes sociais. Emily Bell tocou num ponto nevrálgico, pois ação conjunta das comunidades de checagem e as organizações de fact checking são a única forma de garantir um mínimo de confiabilidade informativa no noticiário local.

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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.