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Em uma era de abundância informacional, o paradoxo contemporâneo é a ascensão da desinformação. Enquanto a internet e as mídias sociais democratizaram o acesso ao conhecimento, também criaram um ambiente fértil para a disseminação de falsas narrativas e teorias da conspiração. Casos emblemáticos, como a negação do pouso do homem na Lua, ilustram como explicações simplistas e emocionalmente apelativas conseguem sobrepor-se à evidência científica. Essa realidade revela um problema mais profundo do que a mera circulação de notícias falsas, pois se trata da fragilidade do pensamento crítico e da crescente incapacidade de interpretar a complexidade dos fatos. O fenômeno da desinformação emerge, portanto, da confluência de três fatores centrais: o analfabetismo funcional, os vieses cognitivos e o ecossistema informativo digital.
No contexto brasileiro, o desafio se agrava. Apesar do avanço na alfabetização básica, uma parcela expressiva da população continua sem domínio do letramento funcional, o que limita sua capacidade de compreender, relacionar e questionar informações. Ao mesmo tempo, mecanismos psicológicos, como a busca por controle e previsibilidade, tornam o indivíduo mais suscetível a narrativas conspiratórias que oferecem explicações simples para fenômenos complexos. Para piorar a situação, a dinâmica acelerada e desregulada das mídias sociais amplifica o alcance da desinformação, transformando-a em um problema estrutural da esfera pública. Diante desse cenário, compreender como o analfabetismo funcional alimenta as teorias da conspiração é essencial para delinear estratégias eficazes de enfrentamento. Mais do que combater mentiras pontuais, é preciso restaurar o elo perdido da crítica, fortalecendo o letramento midiático, o pensamento analítico e a valorização da informação de qualidade como pilares de uma sociedade verdadeiramente esclarecida.
O debate sobre as teorias da conspiração, como a que nega o pouso do homem na Lua, revela uma problemática social e cognitiva profunda. Em um vídeo que se tornou viral, Sérgio Sacani demonstrou a estratégia central dessas narrativas como pegar fatos inegáveis (o lançamento do foguete, a existência da Lua) e, por meio de uma lógica simplista, conectar esses pontos a uma conclusão absurda (a simulação em um estúdio de TV). A facilidade com que essas explicações falsas vingam, mesmo na era da informação, não é um acidente, mas um sintoma da erosão da capacidade de análise crítica na sociedade contemporânea. Essa problemática reside na intersecção de três fatores cruciais: o analfabetismo funcional, os vieses cognitivos e a qualidade do ecossistema informativo. Para além da mera disseminação de conteúdo falso, a vulnerabilidade social às fake news e às teorias da conspiração é um fenômeno complexo, cujas causas são investigadas por diversas áreas do conhecimento. A análise do problema exige uma abordagem que cruza a Comunicação, a Psicologia, a Sociologia e a Educação.
A essência da atração pelas teorias da conspiração, como observado por Sacani, é que elas oferecem uma resposta fácil para perguntas difíceis. Quando um tema exige conhecimento aprofundado – seja física de propulsão lunar, mecânica de sombras em diferentes fontes de luz, ou ciência política – a maioria das pessoas tende a rejeitar a complexidade. A mente humana, segundo a psicologia cognitiva, busca ativamente por padrões e certezas, especialmente em momentos de incerteza e ansiedade. Nesse vácuo analítico, entra a narrativa conspiratória, já que em vez de aceitar uma longa e tediosa explicação científica, é muito mais sedutor e emocionalmente satisfatório culpar um grupo secreto poderoso. O conspiracionista não só obtém uma resposta imediata, mas também a sensação de pertencer a um grupo que detém a verdade oculta.
A psicologia explica o “porquê” as pessoas escolhem acreditar no complô, já que as teorias da conspiração prosperam porque atendem a necessidades psicológicas básicas, agindo como um mecanismo de defesa contra o caos e a incerteza do mundo. A pesquisadora inglesa Karen Douglas demonstra que a crença em conspirações está ligada à necessidade psicológica de ter controle e certeza. Em um mundo caótico, é mais reconfortante acreditar que existe um grupo controlando os eventos (mesmo que mal-intencionado) do que aceitar que o caos é aleatório. Os estudos sobre os vieses cognitivos indicam que a baixa capacidade de pensamento analítico (raciocínio lógico e deliberado) aumenta a aceitação de narrativas conspiratórias.
Esses vieses são padrões de desvio do pensamento racional que levam a julgamentos distorcidos, decisões ilógicas e interpretações equivocadas da realidade. São atalhos mentais (heurísticas) que o cérebro usa para tomar decisões de forma mais rápida, economizando energia, mas que podem resultar em erros sistemáticos. Essa constatação casa perfeitamente com a análise de Sacani, pois quando a explicação científica é complexa, a mente prefere a versão simplificada do complô. O filósofo Karl Popper cunhou o termo “teoria da conspiração da sociedade” para criticar a visão de que todos os males sociais são produto de um complô de um grupo malévolo. Ele argumenta que essa visão ignora a complexidade e a imprevisibilidade dos processos sociais.
No Brasil, apesar dos avanços na alfabetização básica, uma parcela significativa da população possui dificuldade em interpretar textos longos, inferir significados, relacionar informações de diferentes fontes ou identificar a necessidade de pesquisar a fundo. Para o indivíduo com baixo letramento crítico a informação que chega com apelo emocional, urgência e em linguagem simplificada (características das fake news) é aceita sem a devida checagem. Assim, onde a educação formal falha em munir o cidadão com ferramentas para ler o mundo criticamente, ele se torna refém da desinformação. Não é apenas a falta de acesso à informação correta, mas a incapacidade de processá-la e de distinguir a fonte confiável da fonte falaciosa.
Sendo assim, a aceitação de narrativas falsas e simplistas é um sintoma direto da deficiência no letramento crítico. Embora não tenha abordado diretamente as fakenews, a pedagogia de Paulo Freire é fundamental, pois seu conceito de “ler o mundo” e não apenas a “palavra” exige do indivíduo a capacidade de analisar criticamente o contexto social e político da informação que recebe, uma habilidade essencial para desarmar a desinformação. Pesquisas baseadas em dados do Indicador de Analfabetismo Funcional (INAF) evidenciam a correlação direta entre o baixo nível de letramento funcional e a vulnerabilidade às notícias falsas. O estudo mais recente do indicador, publicado em maio de 2025, mostrou que 29% da população brasileira entre 15 e 64 anos é considerada analfabeta funcional, um índice que se manteve no mesmo patamar desde 2018. A situação piorou entre os jovens de 15 a 29 anos, com o índice de analfabetismo funcional subindo de 14% para 16% em seis anos. Pela primeira vez, a pesquisa incluiu a avaliação de habilidades em contexto digital, reforçando a importância da educação para que as pessoas possam participar plenamente da sociedade e do mundo digital. Deve-se ponderar, portanto, que pessoas que não conseguem interpretar textos complexos ou identificar a necessidade de checagem tendem a aceitar a primeira versão simples e emocionalmente carregada que lhes é apresentada.
Por conseguinte, a forma como a informação é produzida e distribuída potencializa a desordem, explorando as vulnerabilidades cognitivas e educacionais. A pesquisadora Claire Wardle popularizou o conceito “desordem informacional”, distinguindo entre erro não intencional e informação deliberadamente falsa. A desordem informacional é uma forma mais precisa e abrangente de descrever o problema da informação falsa e enganosa. Esse conceito transcende a ideia simplista de fake news e se baseia na intenção e no tipo de informação envolvida. Ele se divide em três categorias principais:
- Disinformation: informação falsa criada e compartilhada com a intenção deliberada de causar dano. Um exemplo é a disseminação de informações falsas durante campanhas eleitorais para prejudicar candidatos.
- Malinformation: informação genuína que é compartilhada para causar dano. Isso pode incluir a divulgação de dados pessoais ou conteúdo privado, como e-mails vazados, para manipular o público.
- Misinformation: informação falsa que é compartilhada sem a intenção de causar dano. A pessoa que a compartilha acredita que a informação é verdadeira, mas na realidade ela é incorreta.
Wardle argumenta que fake news é um termo problemático e impreciso que foi politizado e usado para descredibilizar a mídia profissional, além de não distinguir entre os diferentes tipos de conteúdo enganoso e as intenções por trás de sua criação e compartilhamento.
O trabalho de Wardle, realizado por meio de organizações como a First Draft (que ela cofundou), ajudou a moldar a forma como jornalistas, pesquisadores e formuladores de políticas públicas entendem e abordam a desinformação. A abordagem da desordem informacional enfatiza a importância de analisar: os atores (quem está criando e disseminando a informação); a mensagem (qual é o tipo de informação); a plataforma (onde a informação está sendo compartilhada). Seu trabalho também ressalta a necessidade de estratégias mais abrangentes para combater o problema, incluindo a educação midiática e a compreensão do ecossistema de informações, em vez de focar apenas na verificação de fatos individualmente.
Essa distinção é vital para entender que o problema não é apenas o erro, mas a produção intencional de conteúdo para manipular o debate público. A desinformação se aproveita da velocidade das mídias sociais para se espalhar 70% mais rápido do que a verdade. A baixa qualidade informativa ganha audiência porque usa táticas de enquadramento (títulos sensacionalistas, apelo à raiva ou ao medo) que ignoram os padrões de apuração e checagem do jornalismo profissional.
O desafio, portanto, não é apenas combater o conteúdo falso pontualmente, mas sim fortalecer o pensamento analítico – é a única forma de fazer o indivíduo exigir a complexidade e suspeitar da simplicidade; investir em letramento midiático e digital – ensinar a população a navegar no ambiente digital com crítica, reconhecendo vieses e verificando fontes; restaurar a confiança na informação de qualidade – o jornalismo e a ciência precisam reafirmar seu papel como referências confiáveis, combatendo a polarização que tenta desqualificar a expertise em favor da opinião não informada.
O estudo sobre a “pós-verdade”, de Lee McIntyre, diz respeito à análise da erosão da confiança nos fatos e a manipulação intencional da verdade, destacando-se a perversão do debate, onde a emoção e a crença pessoal superam a evidência. No Brasil, Yurij Castelfranchi, Marcos Schneider e Taís Seibt investigam a dinâmica tóxica da desinformação, o papel central de aplicativos de mensagens (como o WhatsApp) e a urgência de políticas de educação midiática (media literacy) para proteger a esfera pública.
Em vista disso, a desordem informacional prospera na zona de intersecção onde a baixa capacidade de análise crítica encontra uma necessidade psicológica de respostas simples, sendo acelerada por um ecossistema midiático propenso à manipulação intencional. O avanço das teorias da conspiração e da desinformação não é apenas um sintoma da era digital, mas um reflexo da crise mais ampla do pensamento crítico. Quando a sociedade perde a capacidade de questionar, interpretar e contextualizar as informações que consome, ela se torna vulnerável a narrativas que oferecem conforto em vez de verdade. O analfabetismo funcional, ao limitar a compreensão e a análise, cria o terreno fértil para que a simplicidade enganosa das falsas explicações substitua a complexidade da realidade.
A psicologia cognitiva demonstra que essa atração por respostas fáceis não decorre apenas da ignorância, mas de uma necessidade emocional de controle e pertencimento. A desinformação, por sua vez, aproveita-se desse impulso humano, valendo-se das dinâmicas virais das mídias sociais para se espalhar com velocidade e impacto. O resultado é um círculo vicioso em que a fragilidade educacional e emocional é explorada por um ecossistema informativo cada vez mais voltado à emoção e ao engajamento, e menos ao esclarecimento.
Romper esse ciclo exige mais do que corrigir erros factuais, exige reconstruir a base da criticidade. Investir em letramento crítico e midiático, fortalecer o ensino voltado ao pensamento analítico e restaurar a confiança nas instituições de conhecimento são passos fundamentais. A alfabetização, no século XXI, não pode se limitar à decodificação de palavras, mas deve incluir a capacidade de interpretar o mundo. Enquanto a sociedade não recuperar o elo perdido da crítica, continuará oscilando entre o ceticismo cego e a crença irracional.
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Ramsés Albertoni é Professor, Pós-doutorando em Artes (PPGCA-UFF), Doutor em Artes (PPGACL-UFJF), Pesquisador dos Grupos de Pesquisa Arte & Democracia e Comcime.
