Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

40 anos de jornalismo ‘bandido’

No começo dos anos 1970, uma reportagem feita por um jornalista norte-americano teve a intenção de desenvolver um jornalismo autoral que soasse como uma ruptura do new journalism, sendo contrário ao ofício praticado por jornais e revistas tradicionais. Assim nascia o jornalismo gonzo, um estilo próprio de jornalismo literário que fez 40 anos em 2010.

Hunter S. Thompson (1939-2005) tornou-se célebre ao criar técnicas que deturpavam os principais conceitos que separam o jornalismo da ficção. A principal característica contestada foi a obrigatoriedade de descrever um fato, ou aspectos de uma situação relatada, de forma que o sentido de veracidade fosse intrínseco ao material produzido. O gonzo pegava as mesmas influências literárias dos autores do new journalism e as vinculava com experiências textuais regadas as digressões etílicas e alucinógenas dos poetas e escritores da geração beatnik dos anos 50, que por sua vez eram a principal influência para a contracultura americana da década de 60. Czarnobai (2005) comenta que o gênero criado por Thompson ‘[…] tinha sua força baseada na desobediência de padrões e no desrespeito das normas estabelecidas’, nada mais contracultural de fato (Czarnobai, 2005, p.4).

No gonzo, o envolvimento profundo e pessoal do jornalista é passo primordial para a elaboração da reportagem. Thompson publicou algumas reportagens em jornais e revistas menores nos EUA até obter destaque, na segunda metade da década de 60, quando escreveu um artigo sobre a gangue de motociclistas Hell´s Angels. O texto virou livro pela editora Ramdom House em 1967 sob o título Hell’s Angels: The Strange and Terrible Saga of the Califórnia Motorcicle Gang. O livro aborda a convivência do jornalista por 18 meses com a gangue de motoqueiros que nos anos 60 estava em evidência no país, devido aos diversos relatos de brigas, assaltos e até assassinatos. A experiência antropológica de Thompson com os motoqueiros fez com que ele participasse de todas as atividades do grupo, inclusive as ilegais. Nesse trabalho, considerado por especialistas uma reportagem com influências textuais do new journalism, ele descreve a rotina da gangue que incluía o uso rotineiro de entorpecentes, principalmente o LSD. Em uma linguagem sem moralismos ou absolvições de conduta, temos apenas a transcrição detalhada da experiência de um jornalista inserido entre os motociclistas, de forma que pudesse questionar todos os exageros e sensacionalismos cometidos pela imprensa americana, deixando julgamentos morais aos leitores da publicação.

Mas qual era a pauta? Ninguém se dignou a dizer

Anos depois, Thompson publicaria o artigo ‘The Kentucky Derby is Decadent and Depraved’ na edição de junho de 1970 na Scanlan´s Monthly. O artigo tinha o intuito de abordar o maior evento esportivo da cidade de Louisville, a tradicional corrida de turfe. Porém, o que seria apenas uma reportagem esportiva, virou um registro polêmico e crítico do cotidiano de uma sociedade. No texto, estão algumas das características do gonzo que passariam a ser uma marca de Thompson: a escrita em primeira pessoa, tornando o jornalista (Thompson) mais importante que o fato a ser noticiado; digressões estilísticas com forte apelo literário, onde a própria noção do real e da veracidade são ‘eliminados’ em relatos que despertam a noção de fantasia; o uso de palavrões; a descrição detalhada das drogas utilizadas, bem como de todo o cenário que cerca a ação, além da ironia e do sarcasmo para denunciar a hipocrisia e a decadência da sociedade americana. É nesse contexto em que Thompson deixa de ser um mero narrador do que observa para tornar-se personagem do que descreve. Um exemplo é quando ele chama a atenção do cartunista Ralph Steadman – que o acompanha pela primeira vez em uma matéria – sobre os cuidados que deveriam tomar durante a corrida. As observações de Thompson ao colega são no mínimo ousadas e hilárias em termos de jornalismo:

‘[…] Só é bom tomar cuidado para não pisar na barriga de alguém e provocar uma briga. Milhares de bêbados cambaleantes e com a boca espumando vão ficar cada vez mais putos com o dinheiro que estão perdendo. No meio da tarde vão estar engolindo batida de menta e vomitando uns nos outros. Bêbados vão estar mijando nas filas de apostas, com o dinheiro caindo das mãos, se espalhando pelo chão, e fazendo o maior esforço para poder pegar de volta. Ele parecia estar tão nervoso que dei risada. `Não se preocupe. Ao primeiro sinal de encrenca eu jogo este spray de pimenta em quem estiver por perto´, falei’ (Thompson, 2000, p. 86)

O artigo causou furor, pois Thompson confessava não saber quem era o vencedor da prova, contudo, o jornalista havia produzido um texto crítico sobre o sul dos EUA tomado de interferências que infringia a objetividade jornalística. Ele adota o estilo de fazer reportagens ‘alternativas’ e já na cobertura da corrida de motos no deserto de Nevada, a Mint 400 para a revista Sports Illustrated ele mergulha de forma profunda em uma análise do idealismo do american dream e da própria contracultura, popularizando o jornalismo gonzo.

O que seria uma reportagem sobre a tradicional corrida de motos em Nevada, virou um detalhado e delirante retrato sobre a decadência dos ideais da contracultura, bem como da própria sociedade americana. Thompson, acompanhado de um amigo advogado e com drogas de todos os tipos no porta malas de um conversível vermelho, parte rumo aos cassinos de Las Vegas e escreve um texto ainda mais delirante e caótico do que o artigo ‘The Kentucky…’

‘[…] Senti que a única maneira de ficar pronto para uma viagem como aquela era me vestir como um pavão humano, enlouquecer, cantar pneu pelo deserto e, no fim das contas, cobrir a matéria. Nunca se esqueça da sua responsabilidade principal. Mas qual era a pauta, exatamente? Ninguém se dignou a dizer. Teríamos que descobrir sozinhos. Livre iniciativa. O Sonho Americano Horatio Alger destruído pelas drogas em Las Vegas. Fazer tudo na hora: puro jornalismo gonzo’ (Thompson, 2005, p. 18).

Novas experimentações culturais

O sarcasmo, o humor negro e a utilização de aspectos de ficção – onde o leitor não tem noção do que realmente é verdade (ou a descrição das alucinações de Thompson) – cativaram o leitor para uma escrita no mínimo alternativa ao jornalismo rotineiro. Fear and loathing… soa como um atestado da derrocada das liberdades conquistadas pela geração dos anos 60 e que agora com a derrocada da utopia do flower power tornava-se um escape para dependência com as drogas e a alienação completa.

Recusado pela revista Sports Illustrated, o artigo foi publicado em duas edições na revista que era a verdadeira ‘bíblia’ da contracultura americana: a Rolling Stone. A reportagem rapidamente fez sucesso e transformou em mito o jornalista. Logo, o artigo seria publicado em formato do livro Fear and Loathing in Las Vegas: A Savage Journey to the Heart of the American Dream (Medo e Delírio em Las Vegas: Uma jornada selvagem ao coração do sonho americano). A obra ganhou a aura de publicação cult com o passar dos anos chegando até mesmo a uma versão cinematográfica [o livro de Hunter S. Thompson ganhou uma versão cinematográfica do ex-Monty Python Terry Gilliam, em 1998. Quem personificou Thompson foi o ator norte-americano Johnny Depp]. Em seguida, Thompson passa a publicar em revistas como a Rolling Stone, San Francisco Chronicle, Vanity Fair, Esquire e a Playboy (Alvares, 2004).

Sob o pseudônimo de Raoul Duke, Thompson criou uma personalidade irônica que sustentava toda a matéria em sua persona contracultural criando um novo gênero jornalístico que estará ligado não apenas à cultura pop – por ser publicado e reverenciado em uma revista de expressão no cenário musical como a Rolling Stone – mas cada vez mais interligado a novas experimentações culturais, tanto em literatura como no próprio oficio jornalístico.

‘Personificar o objeto da reportagem’

Em um primeiro momento, o que causa certa similaridade aos dois gêneros (gonzo e new journalism) é que ambos são influenciados pelo jornalismo literário que têm regras específicas como a imersão do jornalista no contexto do que irá abordar em sua matéria. Conforme Álvares (2004) é tradição dos jornalistas literários acompanhar as fontes por tempo indeterminado a fim de garantir a ‘[…] compreensão do tema de maneira que mostre níveis diferentes das pessoas em suas rotinas’ (Giannetti, apud Álvares, 2004).

A imersão proporciona ao jornalista, através do processo efetivo de levantamento de dados, que possa contar com uma base de informações afim de construir situações ou personagens ficcionais, mas com características que resultem numa veracidade para o leitor, que acredita no que está lendo como verdade absoluta. Álvares (2004) entende que Hunter S. Thompson, com seu estilo de escrever, de caráter confessional e também com uma linguagem clara e direta, faz com que os fatos expostos nos artigos passem uma ideia de inacreditável. Contudo, como salienta o estudioso da obra do criador do Gonzo, Thompson era notório como figura fanfarrona e exagerada o que conferia um aspecto de ‘legitimidade’ aos seus relatos. A habilidade de causar espanto com as descrições precisas de personagens e acontecimentos bizarros despertou o interesse dos leitores. Se Thompson descrevia com tamanha precisão relatos ‘alucinados’ era evidente que estava também ‘alucinado’ ao produzir tal material.

A diferença é que a imersão no new journalism proporcionava ao texto, elementos ficcionais, mas no caso do gonzo a técnica chega ao extremo: o jornalista produzi um discurso extremamente pessoal. Ele está inserido no contexto e o envolvimento é ainda mais profundo, ação essa que nas palavras de Czarnobai (2003) ganha a denominação de osmose, termo útil para exemplificar a relação do jornalista como um investigador que se mescla ao que é investigado. Dessa forma, Czarnobai compara essa ação ao fenômeno quando um movimento entre dois fluídos da água se mistura gradualmente através de uma membrana porosa.

‘[…] Fazendo uma comparação, o primeiro fluído é o gonzo jornalista e o segundo é o objeto de sua investigação. A membrana porosa é o ato da reportagem em si, pois é através dela que os dois mundos interferem um no outro. Dessa forma é correto dizer que o repórter gonzo altera o objeto de sua reportagem da mesma forma que o objeto altera o próprio repórter. É quase como se o jornalista precisasse personificar o objeto de sua reportagem, o que remete ao preceito da `coragem de um ator´ necessário para o bom gonzo jornalista, segundo Thompson’ (Czarnobai, 2003).

Um mito norte-americano do século 20

O ato da presença no contexto do que aborda, de tal forma a interferir na sequência dos acontecimentos, traduz uma procura em romper com os cânones e preceitos do jornalismo que atestam ao repórter o simples papel de observador. Thompson, segundo Wolfe (apud CZARNOBAI, 2003), assim como outros jornalistas como George Plimpton e Jonh Sack, já realizava, desde meados de 1966, textos com técnicas diferentes do New Journalism. Essas técnicas seriam aprimoradas e ressaltadas por Wolfe pela grande diferença entre os dois gêneros: a captação de dados. Enquanto, Wolfe, Capote, Mailer, entre outros, preferiam ser muitas vezes testemunhas da ação, Thompson almejava participar dela, o que faz com que a captação de dados seja uma conseqüência da imersão, como vimos anteriormente. Ao estar inserido no universo que pretende descrever, o repórter torna-se parte da reportagem, mudando muitas vezes o curso da história.

Hunter S. Thompson tornou-se um ícone da contracultura americana e publicou diversos livros até os primeiros anos da década de 2000. Sua imagem no imaginário pop ficou imortalizada como a de um astro do cinema ou do rock, celebridades que ele mesmo mantinha amizade. O fato de popularizar o jornalismo gonzo nas páginas de revistas como Rolling Stone e Playboy conferiu ainda mais ‘status’ de jornalista rebelde. Imagem que ele mesmo fez questão de manter até sua morte em 2005, quando cometeu suicídio com um tiro na cabeça.

De representante de uma era revolucionária e criador de um jornalismo – que cada vez mais ganha espaço em publicações alternativas e na internet – Thompson passou a ser aquilo que mais adorava ‘criticar’: um mito norte-americano do século 20.

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Jornalista