Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A construção de um discurso não-sensacionalista

A revista Veja é a publicação semanal de maior circulação no país e possui um caráter de legitimidade e veracidade. Em seu discurso, porém, encontram-se fatores considerados jornalismo sensacionalista. No entanto, Veja não se assume como tal e, para isso, constrói suas reportagens sob as prescrições jornalísticas. O artigo pretende revelar pontos sensacionalistas encontrados no discurso de Veja e, como a mesma se posiciona no jornalismo brasileiro como publicação séria, verdadeira e confiável, analisar uma reportagem sobre o caso Isabella Nardoni.

O conceito de sensacionalismo pode ser definido como:

‘Modo de produção discursivo da informação da atualidade processado por critérios de intensificação e exagero gráfico, temático, lingüístico e semântico, contendo em si valores e elementos desproporcionais, destacados, acrescentados ou subtraídos no contexto de representação ou reprodução de real social’ (Pedroso apud Angrimani, 1995: 14).

O termo vem de ‘provocar sensação’ através da abordagem do tema, seja pelo texto, pelas fotos, ou pelas ilustrações. Logo, a mesma notícia pode ser sensacionalista ou não, dependendo do modo de produção e veículo que a publica. Marcondes Filho descreve a prática sensacionalista como:

‘O grau mais radical da mercantilização da informação: tudo o que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a informação interna não irá desenvolver melhor do que a manchete. (…) O jornalismo sensacionalista extrai do fato, da notícia, a sua carga emotiva e apelativa e a enaltece. Fabrica uma nova notícia que, a partir daí, passa a se vender por si mesma’ (Marcondes Filho apud Angrimani, 1995: 15).

Suspeitos são condenados; BO’s são sentenças

Um dos pontos altos do discurso sensacionalista é a sua narrativa. O relato transporta o leitor; é como ‘se ele estivesse lá, junto ao estuprador, ao assassino, ao macumbeiro, ao seqüestrador, sentindo as mesmas emoções’ (Pedroso apud Angrimani, 1995). É preciso narrar a notícia em tom dramático, dar detalhes, voz à testemunha e principalmente à vítima ou parente desta. A linguagem utilizada não admite neutralidade ou distanciamento. É uma linguagem mais coloquial, clichê, que faz com que o leitor se entregue às emoções. A linguagem editorial precisa ser chocante e causar impacto. O sensacionalismo não admite moderação’ (Angrimani, 1995: 40).

A violência é um tema recorrente, tanto em jornais considerados sérios quanto nos sensacionalistas. A reportagem estudada traz morte e violência, assuntos comuns em veículos sensacionalistas. Estes temas atraem leitores independentemente do nível cultural ou econômico (Angrimani, 1995). O que difere os jornais sensacionalistas é a valorização do assunto, já que o veículo sensacionalista coloca uma ‘lente de aumento’ sobre o fato (Angrimani, 1995).

A cobertura da violência na mídia nacional apresenta problemas de informação ao tratar suspeitos como condenados e apresentar boletins de ocorrências como sentenças judiciais (Agência de Notícias dos Direitos da Infância, 2001). O atual jornalismo não contextualiza, não explica; limita-se a entrevistar testemunhas e narrar os atos de violência (ANDI, 2001).

‘Foram eles’

Luís Nassif escreveu sobre o problema do timing ao entrar e sair de assuntos polêmicos:

‘O primeiro a avançar um pouco mais, mesmo que não haja elementos consistentes para comprovar a acusação, faz o alarde para firmar a posição de pioneirismo, caso as acusações tenham fundamento. Depois, quando as acusações começam a se dissolver, há uma resistência em se render aos fatos’ (Nassif apud Benette, 2002: 71).

Angrimani (1995) descreve que o sensacionalismo pode ser visto como uma forma diferente de passar informação, como uma opção de estratégia usada pelos meios de comunicação. Assim, mesmo veículos não considerados sensacionalistas podem ter algumas vezes na sua produção momentos sensacionalistas.

Os veículos tentam se afastar dessa denominação pelo fato de que os leitores associam o termo a fatores como erro de apuração, distorção, deturpação, editorial agressivo, entre outros que, para Angrimani, são acontecimentos isolados que podem ocorrer também dentro de jornais informativos comuns. Por causa dessa associação, a publicação considerada sensacionalista é coloca à margem, afastada da mídia ‘séria’ (Angrimani, 1995).

Em 23 de abril de 2008, Veja publicou uma reportagem especial de capa sobre a morte de Isabella Nardoni, ocorrida três semanas antes. Naquela semana, o pai e a madrasta da menina haviam sido indiciados. Na capa, foi publicada uma foto do casal na qual apenas parte dos rostos aparece em meio ao escuro, foto comum tirada de criminosos dentro do carro de polícia. Para completar o ar de bandidos, a manchete é dada em fonte chamativa: ‘Foram eles’. A revista coloca uma linha fina em cima da manchete, em letras amarelas, em uma fonte muito menor: ‘Para a polícia, não há mais dúvidas sobre a morte de Isabella.’

Dar a ‘última verdade’

A reportagem especial, de oito páginas, recebe como título dois adjetivos nada imparciais: ‘Frios e Dissimulados’. Dessa vez, a conclusão é a opinião clara da revista. O texto traz informações sobre acontecimentos na família horas antes do crime. É seguido de um relato sobre a vida do pai e da madrasta, bem como sua relação, fazendo juízo de valor dos dois personagens através da voz de amigos e parentes não identificados no texto. A reportagem aborda ainda a avó materna e a mãe da menina, através de relatos de amigos também não identificados, narrados com forte teor sentimental, além de fotos e uma ilustração dos fatos descritos naquela noite. Apenas no último parágrafo a reportagem explica que agora a polícia pode pedir a prisão preventiva e que o casal deverá ser julgado.

Ao contrário de veículos vistos como sensacionalistas, a revista apresenta alguns pontos em sua linha editorial que a caracterizam como fonte fiel à verdade, mesmo que a revista assuma sua linha opinativa. Para isso, a revista de maior circulação nacional se mostra como ‘uma instituição que está autorizada a falar porque é detentora de um poder legitimado pelo seu status‘ (Augusti, 2005: 80). Nilton Hernandes afirma que Veja tem uma ideologia e ‘vai construir o real em função dessa ideologia, e não o contrário’. O dono da revista, Roberto Civita, assume a publicação como aquela que dá a verdade última sobre tudo. Hernandes afirma que Veja transforma o problema de ser a última mídia a noticiar a seu favor, já que assim pode dar a última verdade, julgando o que é verdade e o que é mentira.

‘Frieza e dissimulação’

E de onde vem essa legitimidade atribuída a Veja? Uma das estratégias é o uso de fontes oficiais para justificar as suas teses. A impressão com que o leitor fica é que a revista ouviu tantas pessoas, e dessas, tantos especialistas, que o que ela diz só pode ser verdade. Muitos leitores não percebem que, muitas vezes, as fontes defendem o mesmo ponto de vista, por mais numerosas que sejam.

Na reportagem analisada, a tese é de que o pai e a madrasta mataram Isabella – mesmo antes de isso ser julgado pela Justiça. Para isso, a repórter coloca na boca de policiais os fatos afirmados como verdades finais. ‘A polícia está convencida de que Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá combinaram jogar Isabella pela janela…’ Outro fator que dá credibilidade ao discurso da revista é o caráter explicativo que o veículo possui em seus textos, como se estes não fossem abertos à discussão ou interpretação.

O texto analisado traz a linguagem de um jornal sensacionalista. As frases e termos são recheados de adjetivos, figuras de linguagem e outros elementos que ‘mostram, a todo o momento, a opinião do jornalista’ (Augusti, 2005). A narrativa procura envolver o leitor, levá-lo ao crime num tom dramático e assume um tom sentimental ao tratar da mãe e avó da vítima. O título da matéria traz apenas dois adjetivos: ‘Frios e Dissimulados’. A linha-fina confirma a tese a ser defendida: ‘Pai e madrasta mataram Isabella, numa seqüência de agressões que começou ainda no carro, conclui a polícia’. Ao longo do texto são constatados termos como ‘tranqüilos, filhinho de papai, esquentada, relação tumultuada, família harmoniosa, provavelmente aterrorizadas’, ‘espetáculo de frieza e dissimulação’ etc.

Conclusão de algo que não é real

A publicação utiliza-se de formas opinativas, mas apresenta-se sob as prescrições jornalísticas (Nascimento, 2002). Para isso, usa a impessoalidade da terceira pessoa (‘Não se sabe ainda o que motivou o crime…’); fontes oficiais (‘Pai e madrasta mataram Isabella, numa seqüência de agressões que começou ainda no carro, conclui a polícia‘); e coloca as acusações na boca das fontes na narrativa (‘Em determinado momento, como disseram à polícia testemunhas presentes à festa, a menina fez algo que enfureceu o pai’).

Apenas no último parágrafo da reportagem, Veja esclarece que os suspeitos ainda não foram condenados: ‘A polícia tenciona pedir a prisão preventiva de Nardoni e Anna Carolina. Se condenados ao final do processo…’

Faz parte da tradição das revistas nacionais terminar suas reportagens com a opinião do jornalista (Augusti, 2005). Logo, o texto transcorre entre informações concretas e teses defendidas pela revista. ‘Nessa transposição de linguagem é que pode ocorrer o sensacionalismo’ (Angrimani, 1995: 41). O leitor precisa ter espírito crítico para saber quando se passa da linguagem objetiva para a sensacionalista, devendo estar atento às intenções discursivas presentes na notícia.

Veja é fonte de diversas pesquisas e ataques críticos. Encaixada dentro dos conceitos jornalísticos, ela se mostra verdadeira ao leitor ‘formador de opinião’ do país. Foi aqui mostrado que, para repercutir do jeito que o faz, a publicação faz uso de diversos elementos presentes no jornalismo sensacionalista.

O erro do sensacionalismo é o exagero e a condução do leitor à conclusão de algo que não é real. Na reportagem analisada, recursos sensacionalistas fazem o leitor concluir a tese defendida por Veja: o pai e a madrasta da menina são culpados, mesmo antes de um julgamento.

Bibliografia

Agência de Notícias dos Direitos da Infância. Balas perdidas: um olhar sobre o comportamento da imprensa brasileira quando a criança e o adolescente estão na pauta da violência. Brasília: ANDI, 2001.

ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995.

AUGUSTI, Alexandre. Jornalismo e comportamento: os valores presentes no discurso da revista Veja. Dissertação – UFRGS – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação. Porto Alegre, 2005.

BENETTE, Djalma Luiz. Em branco não sai: um olhar semiótico sobre o jornal impresso diário. São Paulo: Códex, 2002

BUENO, Marina. LEITURAS DE VEJA. Observatório de Imprensa, Seção Aspas. Disponível em http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/news/showNews/asp080520026.htm. Acesso em 07/07/2008.

CASTILHO, Carlos. ‘Quem tem medo da leitura crítica?’ Observatório de Imprensa, seção Código Aberto. Disponível em: http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/blogs.asp?id_blog=2&id={04164B36-5C80-4F4C-A1F5-612EC37BAB95}&data=200701. Acesso em 07/07/2008.

LINHARES, Juliana. ‘Frios e Dissimulados’, Veja, São Paulo: Abril, ano 41, nº 2057, p. 84-91, 23 de abril, 2008.

NASCIMENTO, Patrícia Ceolin. Jornalismo em revistas no Brasil: um estudo das construções discursivas em Veja e Manchete. São Paulo: Annablume, 2002

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Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina