Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A crítica da TV e a TV crítica

Os fenômenos comunicacionais próprios da revolução tecnológica conferiram aos meios de comunicação (jornais, revistas e, principalmente, a televisão) um papel de registro e de difusão das coisas da realidade social. Mais do que isso, é importante que se perceba, também, que esse trabalho vem se modificando, na medida em que o processo de democratização do conhecimento e das informações sobre a realidade se intensifica no dia-a-dia do cidadão comum.

Contudo, o próprio trabalho de investigação das coisas sociais através da televisão perdeu seu sentido maior na medida em que a imprensa perdeu espaço para a chamada ‘programação de lazer’. Mais do que isso, parte dessa nova estrutura televisiva subverte a realidade social e transforma-se em poderoso agente de alienação social. Nesse contexto, profissionais e teóricos da comunicação questionam a importância da crítica enquanto agente conscientizador sobre o papel da televisão nas sociedades e como instrumento regulador da qualidade da programação. Em verdade, já se percebe de uma forma muito latente o caráter ambíguo com que a televisão trata a realidade social.

Mesmo o cidadão comum já consegue discernir por mecanismos muito sutis o que pode se aproveitar na TV ou não. Em suma, o telespectador sabe o que ele deve considerar artisticamente palpável. Usa-se a expressão ‘artisticamente palpável’ numa referência básica às idéias de Adorno, quando diz que somente a arte tem os instrumentos necessários para que se promova um trabalho de reflexão sobre a realidade.

O ex-senador Artur da Távola (como é conhecido o advogado, jornalista, radialista, escritor e professor Paulo Alberto Monteiro de Barros), por exemplo, no artigo intitulado ‘Existe mesmo a crítica de TV?’, de 1976, expõe uma série de idéias que revigoram a discussão sobre o trabalho da crítica televisiva. Segundo ele, já não se pode falar na existência de uma ‘crítica da televisão’ no sentido puro do termo. Para esse tipo de trabalho, prefere usar a expressão ‘crônica aplicada’, que traduziria melhor a análise da programação atual da TV. A diferença básica entre a ‘crítica de TV’ e a ‘crônica aplicada’ seria justamente a forma com que cada uma dessas áreas de investigação lida com o público.

Ao contrário da crítica, o profissional que trabalha com crônica aplicada se aproxima mais do espaço da realidade social porque intensifica suas opiniões numa aproximação direta com o telespectador, às vezes reproduzindo efetivamente as impressões dele em relação a determinado programa. Mais do que isso, ele acredita ser esse um trabalho importante, principalmente pela capacidade de interação com a programação de cada emissora de TV. O crítico, quando expõe sua opinião sobre determinada obra, satisfaz-se tão somente em emitir opinião, não interferindo no resultado final da obra, até porque essa crítica só se efetiva quando a obra se mostra pronta e acabada. É o caso de um livro, uma peça de teatro ou a produção de um filme. Em se tratando de televisão, em que os programas são modificados de acordo com a aceitação do público, pode-se perceber mais claramente a interferência do trabalho de uma crônica aplicada na forma como um programa é produzido.

‘Advogado do telespectador’

Artur da Távola manifesta ainda que quando surgiu a televisão a crítica perdeu seu sentido maior, que era o de servir como intersecção entre obra e público. Ele salienta que, nesse aspecto, pouquíssimas obras atenderam aos anseios da crítica, que servia, antes, como um agente de interpretação de trabalhos artísticos. Em televisão, esse trabalho perderia sua função principalmente pelo processo de densa popularização da TV. O que se produz na TV, na realidade, são produtos de uma indústria cultural voltados tão somente para um público direcionado e para o consumo previsto. A crônica aplicada ganha ainda uma função extremamente interessante em relação aos diagnósticos que consegue desenvolver sobre a televisão:

A crítica da televisão é bem mais intranscendente; mas é bem mais influente. Ela é parte integrante do sistema que mantém a Indústria Cultural, por mais que se coloque na posição de permanente contestação. Ela contesta dentro do sistema. E é isso o que fez muita gente torcer o nariz à crítica de televisão. Ou o crítico sentir-se culturalmente pouco `importante´ por exercê-la, daí ser impiedoso com a TV.

Para Artur da Távola, a crônica aplicada une-se ao processo de recodificação do trabalho televisivo, principalmente em relação à imprensa jornalística. Ele defende a idéia de que cabe à crônica aplicada o trabalho de promoção de um auto-reconhecimento sobre o seu papel no momento em que uma programação de TV é levada ao ar. Sob esse aspecto, somente a crônica aplicada pode desvencilhar a TV da alienação, pois participa diretamente do processo de produção, por isso é tão importante quanto o do próprio diretor de TV. A crônica aplicada exerce, hoje, a função de ‘advogado do telespectador’.

Por outro lado, se a crônica aplicada surge como instrumento de interação televisiva no sentido de se assegurar sua qualidade, perde-se no vazio da ineficiência. O telespectador já consegue discernir mais claramente o processo de manipulação que a TV impõe a seu olhar. E o próprio telespectador busca instrumentos ainda mais seguros sobre a forma como concebe o trabalho da TV, a forma como ela interfere nos acontecimentos políticos e sociais da um determinado país.

Agente de transformação

O jornalista Luciano Martins Costa aborda essa interferência no artigo ‘Para escancarar os podres poderes‘. A ‘visão tacanha’ que a mídia oferece da crise política atual e as respostas que o público traz ao trabalho dessa mídia evidenciam a imaturidade do país no processo de modificação da realidade, segundo ele porque todas as instituições falharam no papel de preparar o cidadão comum para um momento como este.

Para Newton Cannito, diretor do Instituto de Estudos de Televisão, responsável pela realização do 2º Encontro Internacional de Televisão, em São Paulo, a democratização do trabalho da televisão no Brasil e no mundo passa pela compreensão do que seja ‘diversificação televisiva’, que se confunde com a ‘salada’ que cada emissora produz.

‘Muitos ainda confundem a diversificação com a variedade de gêneros televisivos. No entanto, a diversidade não significa mera alternância entre programas de auditório, programas de entrevista e telenovelas. A única forma de promover a real diversidade da programação é assegurar a multiplicação dos grupos produtores e dos modos de produção, promovendo a programação regional, os canais alternativos, as televisões locais, os canais comunitários e a produção independente.’

O consumidor de mídia é o principal agente de transformação da TV – e da sociedade. É importante que nunca se perca essa visão: a de que, apesar de não participar diretamente do processo de produção, o telespectador é a razão maior da existência de uma emissora de TV e, mais do que um crítico, mais do que um profissional da crônica aplicada, muito mais que as elites dominantes de um país ou a imprensa, o telespectador deve usar e abusar do seu direito de mudar de canal. Popularização não significa postura passiva diante da realidade social e televisiva. Se apenas a obra de arte produz reflexão, mas é um produto cultural elitizado, é importante repensar o trabalho da mídia e perceber que a televisão brasileira conta com grande quantidade de boas produções, que revigoram as manifestações culturais do país, essas sim capazes de modificar o pensamento e promover o progresso da nação.

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Estudante do 2º semestre do Curso de Comunicação Social com Habilitação em Rádio e TV da Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus, BA), autor do artigo ‘A revolução tecnológica e seus reflexos: a relação do homem com ele mesmo, com o outro, com o mundo e com as novas tecnologias’, a ser apresentado no dia 9 de setembro de 2005 no 18º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro