Monday, 14 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

A crítica de mídia como atividade pedagógica

A crítica de mídia chegou no Brasil como atividade sistemática em 1975, quando Alberto Dines produz a coluna “Jornal dos Jornais”, na Folha de S.Paulo. A coluna dura até a crise de 1977, mas teve uma influência marcante inquestionável. Tanto que, em 1989, doze anos depois do seu fim, quando a Folha cria a figura do ombudsman, a sua coluna dominical aparece e se mantém até hoje com a mesma apresentação e com a mesma localização no primeiro caderno do jornal. De 1977 até 1996, quando o Observatório da Imprensa é inaugurado na internet, Alberto Dines fez colunas de crítica de mídia no Pasquim e na revista Imprensa, em outros veículos.


Em 1998, nos primórdios do Observatório, do qual tive a honra de ser quase um fundador, lancei, estimulado vivamente por Alberto Dines, a proposta da Rede Nacional de Observatórios de Imprensa, logo apelidada de Renoi. O texto foi para a edição de 5 de julho de 1998, mas só foi dar frutos quase dez anos depois.


O que teria motivado tanta dificuldade?


Em dado momento, afirmo:




“A iniciativa agora proposta tem o inegável mérito de romper com os impasses que até hoje vinham se cristalizando na relação entre a Universidade e o mercado de trabalho. Todas as iniciativas anteriores ou ignoravam o mercado (quando muito tratando-o pejorativamente), ou reproduziam-no acriticamente e de forma caudatária.”


É provável que a realidade de 1998 ainda não estivesse madura para produzir este rompimento. É interessante observar que a produção de estudos, pesquisas sobre o jornalismo, em especial sobre o jornalismo brasileiro, seus vícios e suas virtudes, vem crescendo de forma gradual mas constante nestes últimos anos. Quando eu me referia a impasses que até então vinham se cristalizando, imaginava uma situação pronta para a mudança, mas na verdade tal cristalização ainda era marcadamente forte. Até hoje, a formação de professores de jornalismo enfrenta dificuldades pela pequena quantidade de cursos de mestrado com linhas de pesquisa específicas em Jornalismo. As pesquisas eram numerosas, mas em sua maioria adaptavam-se a linhas de pesquisa de outros paradigmas e referenciais teóricos.


A rigor, até mesmo as reflexões teóricas sobre jornalismo praticamente não tinham bibliografia consistente em 1998. Ainda temos pouco; mas, comparado com aquele período, houve um avanço significativo.


Obra fundamental


O debate das diretrizes curriculares só esquentaria (e esquentou para valer) a partir de 1999. Quando a proposta foi lançada, portanto, muitos tinham clareza do anacronismo do chamado currículo mínimo de 1984, mas as alternativas para alterá-lo ainda não estavam no horizonte.


Assim, a dualidade apresentada em 1998 ainda perduraria alguns anos até começar a mover-se. A esquizofrenia dos cursos continuava marcante. O aluno passava dois anos estudando Teoria da Comunicação, Sociologia, Antropologia, Economia, Psicologia etc. e apenas mais tarde ingressaria na fase de domínio das técnicas profissionais do jornalismo.


O ensino profissional, assim, ainda era essencialmente reprodutor das formas tradicionais de ensino de jornalismo, praticamente sem qualquer visão crítica.


O jornalismo ainda não estava acostumado a conviver com a crítica. E o ensino de jornalismo igualmente tinha dificuldades de ousar, de tentar caminhos diferentes, de experimentar. E quando o fazia, a tendência a cair no experimentalismo vazio era enorme.


Em certo sentido, a própria concepção de jornalismo ainda era essencialmente simplificadora. Usava-se os velhos manuais norte-americanos ou obras que com maior ou menor originalidade tentava abrasileirá-los. Mas jornalismo era um processo de produção de informação para a sociedade.


Foi com a criação do Observatório da Imprensa e com a contundente afirmação de que jornalismo é serviço público – que marca o OI até agora – que as coisas começaram a ser vistas de forma mais clara. Até porque as explicações ideológicas para o comportamento dos jornais se bastavam. Ora, os jornais eram avaliados in totum como produto ideológico e não havia quem se preocupasse em compreender os processos de produção da notícia, por exemplo.


As exceções não passavam disso mesmo: exceções!


Quem viveu aquele período mais intensamente certamente se recorda do silêncio da academia diante da ousada obra de Adelmo Genro Filho, O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Hoje, é uma obra fundamental, seu autor dá nome ao prêmio de pesquisa da nossa recém-criada Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), mas, na época, praticamente ninguém na academia se dignou a criticá-lo. Fizeram muito pior: ignoraram-no.


Experiência acumulada


Era inconcebível pensar em teoria do jornalismo. E os jornais-laboratórios eram tanto melhores quanto mais reproduziam, de forma acrítica, o jornalismo que se praticava no país.


Não que tivéssemos um mau jornalismo. Mas se o jornalismo de hoje ainda é extremamente resistente às críticas, antes da consolidação do Observatório da Imprensa tal circunstância era extremamente marcante.


Num outro momento do texto em que lancei a Renoi, em julho de 1998, escrevi:




“A experiência de levar o olhar crítico de alunos e professores para o jornalismo efetivamente praticado em cada região traz uma dupla vantagem:


** não desvia o olhar do mercado;


** não abandona a indispensável função crítica da universidade – sem a qual os cursos se transformam em meros escolões de terceiro grau.


A criação da Renoi, no mesmo ano de 1998 em que os cursos de jornalismo passaram a ser avaliados pelo Exame Nacional de Cursos do MEC, inicia uma verdadeira nova etapa no ensino de jornalismo no Brasil.


Ao estimular a produção de crítica de mídia nas escolas, o Observatório da Imprensa avança em seus objetivos de permitir à sociedade civil um ‘controle do Quarto Poder’. Escolas, professores e estudantes de jornalismo cumprirão, assim, uma ativa função cívica perante a sociedade civil.”



A existência da Rede Nacional de Observatório de Imprensa hoje é um dado incontestável. Segundo levantamento feito em 21 de maio de 2006, chegou-se a dados inimagináveis há poucos anos:


** a Renoi está em nove estados e em todas as regiões brasileiras (SP, PR, SC, DF, ES, MG, PA, PB, SE);


** são 12 instituições superiores de ensino participantes da rede, sendo quatro públicas (UFES, UFSE, UnB, UEPG) e oito particulares (Estácio de Sá-BH, Univali, Unasp, USC, Unitau, Unama, Unilinhares, Unitri), mais o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), uma ONG;


** são 31 professores e pesquisadores envolvidos e mais de 220 alunos (bolsistas ou não);


** são 15 nós da rede;


** a Renoi conta com sete observatórios consolidados (Monitor de Mídia, Análise de Mídia, Midia e Política, SOS Imprensa, Canal da Imprensa, Observatório da Imprensa, Agência Unama), seis em fase de consolidação (Estudos de Jornalismo Brasileiro, Grupecj, Laboratório de Estudos de Jornalismo, MonitorES Unilinhares, Renoi – Vale do Paraíba, Renoi – Uberlândia) e outros tantos sendo gerados nos próximos meses.


Há ainda muita desigualdade, em boa medida refletindo a desigualdade da própria imprensa brasileira; há ainda locais importantes para uma articulação mais consistente. Mas o fato é que agora o movimento parece irreversível. O ensino de jornalismo saiu do debate ideológico para refletir sobre a realidade concreta do jornalismo efetivamente praticado, sem perder o espírito crítico.


Nada mau para uma proposta que hibernou por alguns anos, mas, com a consolidação dos núcleos e GTs de Jornalismo, na Intercom e na Compós, com o crescimento e consolidação do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo e com a criação da SBPJor, agora pode manifestar-se claramente. Daqui para a frente a única alternativa é o crescimento, a consolidação, a troca de experiências.


Todos vamos tomar lições da experiência que acumularmos. Os jornais vão ter que aprender a tomar lições de estudantes.

******

Jornalista, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, autor de Democracia de massas: jornalismo e cidadania (Editora Universitária da PUC-RS, 2005)