Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A estrutura da notícia desde
a invenção da escrita

Até Gutenberg, a publicação poética significava a leitura ou o canto dos próprios poemas para uma pequena platéia. Quando a poesia começou a existir na página impressa, no século dezessete, ocorreu o que Marshal McLuhan, no texto ‘Visão, Som e Fúria’, em Teoria da Cultura de Massa (1990, p. 145) chamou de ‘estranha mistura de visão e som, mais tarde conhecida como ‘poesia metafísica’ que tem tanto em comum com a poesia moderna’. A colonização americana começou quando a única cultura ao alcance da maioria dos homens era o livro impresso. Os novos meios da visão e do som obtiveram maior impacto popular na América do Norte nos anos sessenta e setenta. Então McLuhan questionava:

‘Será precisamente devido ao fato de estabelecermos a mais ampla separação entre cultura e os novos meios como cultura séria? Será que quatro séculos de cultura de livro nos hipnotizaram numa tal concentração sobre o conteúdo dos livros e dos novos meios que não podemos reconhecer que a própria forma de qualquer meio de comunicação é tão importante quanto qualquer coisa que ele transmita?’ (McLuhan, 1990, p.147).

Inicialmente a página impressa constituiu em si mesma uma forma especializada e espacializada de comunicação. Para McLuhan, o livro impresso acabou com dois mil anos de cultura manuscrita. Criou o estudante solitário, estabeleceu o predomínio da interpretação particular sobre o debate público. Criou uma cultura abstrata, pois era uma forma mecanizada. ‘Atualmente, quando o poderio tecnológico tomou conta do ambiente global a fim de ser manipulado como o material da arte, a natureza desapareceu como natureza-poesia’ (McLuhan, 1990, p.147).

Consciência analítica

Ele fala também de uma época de transição da era comercial, quando era a produção e distribuição de utilidades que absorvia o engenho dos homens.

‘Passamos da produção de mercadorias empacotadas para o empacotamento da informação. Anteriormente, invadíamos os mercados estrangeiros com utilidades. Hoje invadimos culturas inteiras com informação acondicionada, diversão e idéias. Em vista do alcance global instantâneo dos novos meios de visão e som, até mesmo o jornal é vagaroso. Entretanto a imprensa sobrepujou o livro no século dezenove, porque o livro chegava tarde demais. A página do jornal não era uma mera ampliação da página do livro. Era, como o cinema, uma nova forma de arte coletiva’. (McLuhan, 1990, p.147).

Quanto ao formato, a imprensa foi caracterizada como um corte transversal diário do globo que constituía um espelho dos instrumentos tecnológicos de comunicação.

‘É o livro popular diário, o grande poema coletivo, a diversão universal da nossa era. Como tal modificou técnicas poéticas e por seu turno foi modificada pelos novos meios do cinema, rádio e televisão. Estes últimos representam revoluções na comunicação tão radicais como a própria imprensa. Constituem, de fato, ‘mágicos balões abrindo-se frente à espuma de mares perigosos’, nos quais poucos dentre nós se aventuraram em pensamento, arte ou vivência’. (McLuhan, 1990, p.149).

McLuhan, em 1990, já dizia que o filme assemelhava-se ao processo cognitivo, ‘já que o mundo à luz do dia que a câmara enrola no carretel é invertido e projetado a fim de se tornar o mágico mundo de sonhos da platéia’ (p.150). Mas todos os meios de comunicação de alguma forma compartilham desse caráter cognitivo a que somente uma visão tomista da existência e do conhecimento ousa fazer justiça.

‘A televisão, por exemplo, difere do cinema, quanto à imediação com que capta e transmite o visível. A câmera de TV é como o microfone em relação à voz. O filme não possui tal imediação de captação e transmissão. À medida que começamos a examinar o caráter inevitavelmente cognitivo dos vários meios, logo superamos as perturbações advinhas da preocupação exclusiva com qualquer forma de comunicação’. (McLuhan, 1990, p.151).

Em a ‘Indústria Cultural: o Iluminismo como Mistificação de Massas’ (no mesmo livro, Teoria da Cultura de Massa) Max Horkheimer e Theodor W. Adorno (1990, p. 159), viam um ar de semelhança em toda a civilização. Segundo eles, filmes, rádio e semanários constituíam um sistema. Cada setor se harmoniza em si e todos entre si. Já McLuhan termina o texto ‘Visão, Som e Fúria’ dizendo:

‘O que temos de defender hoje não são os valores desenvolvidos em qualquer cultura especial ou por qualquer modo de comunicação. A tecnologia moderna pretende tentar uma transformação total do homem e do seu meio, o que por seu turno exige a inspeção e defesa de todos os valores humanos. E pelo que respeita ao mero auxílio humano, a cidadela desta defesa deve estar localizada na consciência analítica da natureza do processo criador envolvido no conhecimento humano. Pois é nessa cidadela que a ciência e a tecnologia já se estabeleceram, quanto à sua manipulação dos novos meios’.

Curiosidade desvairada

As alterações na forma de coletar e arquivar informações vêm sendo freqüentemente percebidas em termos de uma ameaça ao impresso, aparentemente em vias de desaparecer, segundo alguns autores, como Pierre Levy e Jean Baudrillard, diante das possibilidades oferecidas pelo meio eletrônico. Enfrenta-se a ameaça ora em termos de glorificação, ora do exorcismo do computador, normalmente expressos sem a preocupação com um questionamento mais rigoroso do clássico postulado apocalíptico expresso na fórmula ceci tuera cela. Trata-se, em Notre-Dame de Paris, da frase pronunciada por um clérigo que, ao abrir a janela de seu claustro, volta os olhos para a catedral parisiense e, logo a seguir, para o livro aberto sobre a mesa, e lamenta: isto destruirá aquilo. A frase retorna insistentemente em discussões sobre as possíveis conseqüências do advento do texto eletrônico para o texto impresso.

Na sua teoria do Filme, Bela Balaz, citada por McLuhan (1990), assinala como:

‘A descoberta da imprensa tornou gradualmente ilegíveis os rostos dos homens. Tanto poderia ser lido do papel, que o método de emprestar significado através da expressão facial caiu em desuso. Victor Hugo escreveu certa vez que o livro impresso assumiu o papel desempenhado pela catedral da Idade Média e tornou-se o correio espírito do povo. Mas os milhares de livros esfrangalharam o espírito único… em milhares de opiniões…esfrangalharam a igreja em milhares de livros. O espírito visível transformou-se assim num espírito legível e a cultura visual numa cultura de conceitos (McLuhan, 1990, p.151)

Como a ação do romance ocorre no século XV, logo após a invenção da imprensa, o significado do lamento é claro: refere-se não apenas à perda da autoridade da Igreja como resultado da divulgação do livro, mas, também e principalmente, à possível perda do sentido da catedral enquanto texto cultural a ser utilizado para a transmissão do conhecimento religioso para o povo do medievo. Na época, a catedral funcionava também como biblioteca a ser lida pelo cristão comum que, não tendo acesso aos manuscritos manuseados apenas pelas elites letradas, olhava para os vitrais e deles absorvia as mensagens contidas em relatos bíblicos, os ensinamentos de vícios e virtudes, as visões do céu e da terra, os princípios morais do catolicismo, e até mesmo conhecimentos de geografia. Como explica Umberto Eco, em comentário sobre o ceci tuera cela no romance de Hugo, a catedral-biblioteca do medievo era uma espécie de:

‘Programa de televisão imutável e permanente, planejado para proporcionar ao povo tudo o que fosse indispensável tanto para o seu cotidiano como para a salvação eterna. O livro [por outro lado] desviaria a atenção das pessoas dos valores mais importantes e abriria caminho para informações não relevantes (no que diz respeito à interpretação livre das escrituras) e para uma curiosidade desvairada’. (Eco, 1996, p. 2).

Imersão e meditação

Eco lembra oportunamente que o ceci tuera cela representa uma resposta cultural típica de momentos históricos em que uma nova tecnologia começa a competir com as anteriores. O célebre texto platônico que descreve a invenção da escrita é o mais conhecido precedente do texto de Hugo. Quando Hermes apresenta a invenção da escrita ao faraó Tamus, este revela sua suspeita de que a nova invenção contribuiria para o enfraquecimento da memória dos homens, já que, com a possibilidade de se fixar o conhecimento em um objeto externo, tornar-se-ia desnecessário o esforço mental interno para lembrá-lo (Platão, Fedro, 1975, 274-7). No Fedro, Platão objetou que o aparecimento recente da escrita iria revolucionar a cultura para pior. Disse que ela iria trazer a reminiscência no lugar do pensamento e o aprendizado mecânico ao invés da dialética verdadeira da indagação viva da verdade através do discurso e da conversação. Mas, para McLuhan, a grande virtude da escrita era o poder de deter o processo do pensamento para a contemplação e análise constantes. Para ele, a escrita era a tradução do audível para o visual. Ou seja, constituía espacialização do pensamento.

‘No entanto, a escrita no papiro e no pergaminho promoveu uma organização muito diferente de hábitos mentais daqueles que estão ligados à impressão e aos livros. Em primeiro lugar, a leitura silenciosa era desconhecida até o surgimento das superfícies macadamizadas e aerodinâmicas da página impressa, que permitiam a passagem veloz do olho apenas. Em segundo lugar, a dificuldade de acesso aos manuscritos obrigou os estudantes a memorizar tanto quanto possível tudo o que liam’. (McLuhan, 1990, p.147).

No romance de Hugo, ocorre uma suspeita análoga à do faraó: imagina-se que a nova tecnologia do livro escrito destruiria inevitavelmente formas culturais anteriores. No momento contemporâneo, a fobia expressa pelo clérigo de Hugo aparece novamente, agora motivada pelo advento do computador e do texto eletrônico. Mas aparecem, também, posturas otimistas em relação à nova tecnologia, ou seja, posturas que repetem o otimismo e o entusiasmo de Hermes ao oferecer a nova tecnologia ao faraó. São, nos dois casos, posturas passionais de rejeição ou aceitação do novo, que é visto ora como ameaça, como no caso de Sven Birkerts, ora como inovação benéfica, como no caso do romancista Robert Coover.

‘De forma simplificada, a experiência interior, que inclui experiências estéticas de qualquer espécie, acontece em uma forma de temporalidade; a comunicação eletrônica, por sua própria natureza, depende de e institui, de fato, uma outra. O tempo do ser é o tempo profundo, tempo da duração, tempo que é essencialmente marcado pelo fato de que perdemos consciência dele. Na medida em que nos entregamos à experiência de imersão em um livro, ouvimos música, ou nos entregamos ao universo visual da pintura, somos possuídos pela perda de consciência do presente enquanto força norteadora de uma rede de direções possíveis. Abandonamos a estrutura dominante do agora, substituindo-a por sentidos, sentimentos e absorção. Todas as comunicações eletrônicas, por outro lado, estão fundamentadas no princípio do imediato. Para usá-las, para interagir com elas, torna-se necessário entrarmos em uma espécie de agora virtual: o presente perpétuo do impulso, do beep, do brilho intermitente do cursor. Fala-se comumente em ciberespaço, termo que designa aquele estranho não-lugar de armazenamento e fluxo de dados, o espaço em que vivemos quando estamos conectados à rede. Proponho que comecemos a usar também o neologismo análogo, cibertempo, para designar o limbo em que ficamos suspensos enquanto atuamos no ciberespaço’ (Birkerts, 1994, p. 193).

Existe, para Birkerts, um tempo concreto, humano e profundo de meditação e reflexão que nos permite sair do presente cronológico e experimentar um tempo paradoxalmente fora do tempo, radicalmente diverso daquele tempo de eterno presente e de simultaneidade total de coisas e eventos que experimentamos diante da tela do computador. Trata-se aqui de um tempo subordinado à dimensão espacial que distribui momentaneamente objetos em um campo visual luminoso. Ler um jornal na Web, por exemplo, ainda que ele seja apenas transposto para o meio digital e apresentado na tela, é, para Birkerts, algo diferente de ter em mãos um jornal papel a ser folheado página após página, ora mais rapidamente, ora mais lentamente, com pausas para meditar sobre o que foi lido, retornando a páginas anteriores para reler certas matérias. Neste último caso, o que ocorre na leitura é a oportunidade que tem o indivíduo de constituir-se como sujeito pensante, no ato de imersão e meditação.

A lista de perdas

Em 1950, uma família típica estadunidense teria basicamente um rádio e um telefone de disco ou, talvez, em alguns casos, um televisor preto e branco. Birkerts constata a saturação eletrônica de uma moradia comum em 1990: vários televisores a cores, com capacidade para jogos nintendo e com aparelhos de videocassete, computadores pessoais, modems, aparelhos de fax, telefones celulares, secretárias eletrônicas, telefones para automóveis, camcorders, cd-players… (Birkerts, 1994, p. 195).

E conclui:

‘Em menos de cinqüenta anos, avançamos de uma condição de isolamento essencial para uma de mediações intensas e quase incessantes. Um tecido de filamentos eletrônicos coloca-se agora entre nós e o chamado mundo exterior. A idéia da passar não uma semana, mas até mesmo um dia, longe dessa aparelhagem parece ousada, até mesmo arriscada’ (Birkerts, 1994, p. 195).

E o novo homem despersonalizado, agora inseparável da parafernália eletrônica, não estaria, como pensam alguns, expandindo seus poderes tecnológicos para participar mais intensamente em uma grande comunidade democrática virtual. Estaria, antes, ajustando-se eletronicamente (wiring himself) a uma gigantesca colméia na qual a vida acontece em meio a um burburinho de sinais eletrônicos que é, ao mesmo tempo, excitante, desvairado e profundamente dispersivo:

Quando todos estiverem online, quando os circuitos eletromagnéticos estalarem por todos os lados, os impulsos voando em todas as direções, como pensamentos em um cérebro enlouquecido, teremos que repensar nossa definição de individualidade e nossos ideais tradicionais de subjetividade personalizada. E, também, os ideais de vida privada que sempre dela fizeram parte (Birkerts, 1994, p. 219-220).

Não é difícil perceber, em tais observações, o intelectual representante de um humanismo moderno, deslocado na dispersão pós-moderna. Na verdade, o próprio Birkerts, ao apresentar esquematicamente um balanço das perdas e ganhos do pós-modernismo eletrônico, acaba por percebê-lo mais como decadência do que como progresso e, implicitamente, alinha-se com ideais do modernismo logocêntrico e humanista. Feita a contabilidade, as vantagens do pós-moderno são a melhor compreensão da perspectiva globalizante e da complexidade de inter-relacionamentos no momento contemporâneo; a expansão da capacidade neurológica para receber simultaneamente um conjunto maior de estímulos; o questionamento de absolutos e aceitação do relativo, freqüentemente expresso em termos de tolerância; e, finalmente, uma predisposição para enfrentar novas situações. A lista de perdas, mais longa e substancial, sugere que o que desapareceu foi o conjunto de valores éticos e estéticos vigentes na civilização ocidental antes do momento pós-moderno:

‘A percepção fragmentada do tempo e a perda da chamada experiência do tempo-duração, esse fenômeno de profundidade normalmente associado ao devaneio; a redução da capacidade de concentrar a atenção e a impaciência geral com o raciocínio constante e rigoroso; a perda da confiança nas instituições e em narrativas interpretativas que, tradicionalmente, tornavam significativa a experiência individual; a ruptura com o passado, com o sentido vital da história enquanto processo orgânico e cumulativo; a alienação do espaço geográfico e da comunidade; a ausência de qualquer visão segura de um futuro pessoal ou coletivo’ (Birkerts, 1994, p. 27).

A verdadeira liberdade

Estamos aqui diante de uma das muitas avaliações pessimistas dos meios eletrônicos pós-modernos, que têm como contrapartida outras tantas avaliações otimistas. É certamente uma dessas perspectivas mais otimistas aquela proposta pelo romancista Robert Coover. Em importante ensaio publicado em 1992, significativamente intitulado ‘The End of Books’, Coover começa por afirmar que,

‘no mundo real dos dias de hoje, vale dizer, no mundo das transmissões de vídeo, telefones celulares, aparelhos de fax e, particularmente, nos ambientes digitais em que se ouve o zumbir dos computadores operados por hackers e fanáticos do ciberespaço, ouve-se dizer com freqüência que o meio impresso é obsoleto e está fadado a desaparecer…. Isto significaria também, evidentemente, que o romance, como o conhecemos hoje, desapareceria’ (Coover, 1992, p.1).

Trata-se, aqui, do mundo real sendo paradoxalmente definido justamente por seu excesso de irrealidade, já que é constituído pela saturação de linguagens, sinais e imagens que, como afirmou Birkerts, formam um tecido de filamentos colocados entre nós e o chamado ‘mundo exterior’. Separado do mundo pela presença crescente de mediações eletrônicas, a subjetividade humana já não pode permanecer a mesma e começa a ser percebida, dependendo da perspectiva teórica mais ou menos pessimista, ora em termos de uma alienação do ser individual, ora em termos de uma nova forma de humanidade (ou desumanidade) moldada pelas novas tecnologias, ou melhor, nem tão novas assim. Birkerts, como se viu, prefere entender essa nova subjetividade de forma negativa e em termos de perda.

Ocorre a percepção de uma decadência cultural, produzida como resultado de uma tecnologia pós-moderna que, redefinindo o tempo como cibertempo em um espaço de dispersão de sentidos, acaba por produzir efeitos negativos na subjetividade humana, que se vê agora destituída da capacidade perceptiva do ser profundo, da possibilidade de formação de uma ética pessoal, e da capacidade de fazer sentido da história. Coover, por outro lado, entende a nova subjetividade pós-moderna e o novo leitor de textos virtuais como diferentes em relação ao passado, mas não necessariamente como decadentes ou piores. O texto impresso, ao imprimir e comprimir o sentido em uma lógica de linearidade, acaba por tornar-se também uma forma de oprimir. Impressão e imprensa significam, também e necessariamente, opressão. É por esse motivo que, como explica Coover: (1992, p. 1).

‘No decorrer de toda a história da imprensa, apareceram inúmeras estratégias opostas ao poder da linha, desde a marginalia e a nota de rodapé, até as propostas inovadoras de romancistas como Laurence Sterne, James Joyce, Raymond Queneu, Julio Cortazar, Italo Calvino e Milorad Pavic, para não falar do pai fundador do gênero, o próprio Cervantes’.

Todas essas tentativas de criar uma narrativa não linear, contudo, não chegaram a abalar seriamente a tradição de linearidade do jornal, porque tentaram questioná-la sem dispor, para tanto, de outro meio ou de outra tecnologia textual que não a do próprio impresso. Para Coover (1992, p.1), com o advento do computador e do hipertexto, torna-se possível, pela primeira vez desde Gutenberg, questionar a linearidade do texto impresso, utilizando uma tecnologia alternativa de produção textual: ‘A verdadeira liberdade de escapar da tirania da linha pode ser vista como sendo agora realmente possível, graças ao advento do hipertexto, escrito e lido no computador, no qual a linha na verdade não existe, a não ser que alguém a invente e implante no texto’.

Virtualização do real

Como explica George P. Landow, os escritos medievais, por razões econômicas e de escassez de papel, eliminavam os intervalos entre as palavras, o que tornava a leitura um verdadeiro ato de decifração. Quando o barateamento de custos de produção textual, por volta do ano 1000, tornou exeqüível a utilização de espaço entre palavras, tornou-se possível, também, a leitura silenciosa que, por sua vez, torna possível o conceito moderno de um ser individual interior e privado (Landow 1996, p. 217).

Para Landow, essa transformação do texto real em texto virtual constitui a mudança tecnológica fundamental que explica todas as diferenças percebidas entre a leitura da página escrita e a leitura virtual na tela. Trata-se da mudança da página para a tela que, alterando as formas de fluxo e recepção do conhecimento, coloca em xeque valores perenes da civilização ocidental, como a capacidade humana para produzir e absorver discursos complexos, a possibilidade de formação do indivíduo e de uma ética individual, e a capacidade de entendimento histórico. Nas palavras de Landow: (1994, p.20),

‘[o computador] nos proporciona não um texto material, mas um texto eletrônico, e essa metamorfose do código escrito para o código eletrônico – o que Jean Baudrillard chama de mudança do tátil para o digital – produz uma tecnologia de informação que combina simultaneamente estabilidade e flexibilidade, ordem e acessibilidade. Mas há um preço a pagar. Como o processador de texto eletrônico depende sempre da manipulação de códigos no computador, todos os textos exibidos na tela são virtuais. Utilizando uma analogia emprestada da ótica, técnicos em computação falam em máquinas virtuais, criadas por um sistema operatório (operating system), que torna possível a usuários terem a sensação de utilizar suas máquinas individuais quando, na realidade, estão partilhando um mesmo sistema com centenas de outros operadores. De forma análoga, todos os textos que o leitor e o escritor encontram na tela do computador existem enquanto versões criadas especificamente para eles. A versão eletrônica primária, contudo, está na memória do computador. [Ao utilizar um processador de textos,] o leitor e o escritor utilizam uma cópia eletrônica até o momento em que as duas versões convergem, ou seja, quando se dá ao computador o comando de salvar a versão visível, colocando-a na memória. Nesse momento, o texto na tela e o texto na memória coincidem brevemente, mas o leitor está sempre diante de uma imagem virtual do texto disponível na memória, e nunca diante da versão original’.

Embora Landow recorra a exemplos específicos da passagem do real ao virtual, principalmente em termos de processadores de textos e de hipertextos, a virtualização do real ocorre em qualquer circunstância em que se leia ou se escreva um texto no computador: o tátil torna-se digital, o concreto torna-se abstrato.

Mídia tradicional, presente e diferente

A história conta que as civilizações nunca voltaram para trás, que as descobertas e inventos são acumulados e servem de background para outros inventos. E como decorrência, a vida vem se transformando, com uma série de tecnologias que amplificam nossos sentidos e nossa capacidade de processar informações. Jornais, livros, rádio, indústria cinematográfica, televisão, além de outros veículos mais antigos, estão sendo desafiados pelas tecnologias digitais, que vêm oferecendo um leque mais amplo de serviços de informação e entretenimento. Uma nova mídia não é apenas uma extensão linear da antiga. O velho e o novo oferecem recursos de informação e entretenimento para grandes públicos, de maneira convincente e a preços competitivos. O que muda é a expansão de recursos.

O fato é que a mídia tradicional ainda estará presente por muito tempo. Mas ela será sempre diferente. ‘Remediada’. Em conferência apresentada em 1996, e posteriormente divulgada na Internet, Umberto Eco recomendava uma certa cautela no tratamento do tema do desaparecimento do texto impresso. É que o jornal impresso, pelo menos no momento atual, atende a necessidades culturais, pessoais e sociais que não podem ser satisfeitas com o auxílio do computador. É o caso da necessidade da leitura reflexiva, marcada pela cuidadosa atenção e pela postura meditativa, ao invés da leitura meramente voltada para a necessidade de informação imediata.

Acredito, diz Eco, ‘que os computadores estão difundindo una nova forma de leitura e aprendizado, mas são ainda incapazes de satisfazer todas as necessidades intelectuais que provocam… Em meus momentos de otimismo, imagino uma nova geração da era do computador que, obrigada a ler telas de monitores, aprende uma certa forma de leitura, mas sente-se por vezes insatisfeita, e volta-se para um outro tipo de leitura, menos tenso e com objetivos diversos’. (Eco, 1996b, p. 2-3).

Não há dúvida de que alguns jornais são melhores esteticamente quando apresentados no formato eletrônico e em hipertexto. Com as possibilidades oferecidas pela tecnologia digital é possível disponibilizar recursos diferenciados, como por exemplo, imagem, som e movimento em tempo real, banco de dados online, entre outros. Mesmo assim, não se pode afirmar, apressadamente, que uma tecnologia eliminará a outra, mas antes de pensar a coexistência das duas, com funções diferenciadas e especializadas. É isso, de resto, que ocorreu freqüentemente com tecnologias anteriores: a fotografia alterou o sentido da pintura, mas não a substituiu; a televisão ocupou certos espaços do cinema, mas não todos; o correio eletrônico criou uma nova forma de comunicação, mas as agências de correios e telégrafos continuam operando. O jornal, em outras palavras, não precisa necessariamente desaparecer diante da presença do computador porque é uma tecnologia suficientemente flexível para adaptar-se aos novos tempos. Como explica Rosenthal, é ilusório pensar que uma tecnologia automaticamente elimina a tecnologia anterior, como se o ato de escrever fosse semelhante a um estacionamento com lugar para um carro só. É que, quando uma tecnologia permanece mais adequadamente funcional do que qualquer alternativa, não há razão para abandoná-la, a despeito da sua antigüidade. É esse o motivo porque, 500 anos após Gutenberg, continuamos a ser uma cultura de textos manuscritos: usamos o lápis e a caneta para anotações e mensagens telefônicas, para notas ao pé da página, e para dialogar conosco mesmos em nossos diários (Rosenthal, 1998, p. 2-3).

Mais realista, mais transparente

O trauma cultural causado pela possibilidade do fim do jornal impresso pode bem ser o resultado de uma percepção equivocada do significado histórico do jornal enquanto tecnologia adaptável e resistente a mudanças, inclusive às gigantescas mudanças motivadas pela presença do computador. Se essa hipótese estiver correta, faz menos sentido, hoje, lamentar ou celebrar o fim do jornal do que tentar entender a sua transformação em algo diverso.

Em certo sentido, o argumento de Coover a respeito da tirania da linha abre caminho para uma reflexão não apenas sobre o fim, vale dizer, a morte do impresso, mas sobre a sua transformação em jornal sem fim. É nesse contexto que é preciso entender a palavra fim também como objetivo: o fim do impresso será talvez a sua transformação no impresso sem fim, a ser realizada principalmente na dispersão multilinear do hipertexto. É o que sugere o trabalho recente de David Bolter e Richard Grusin, (1999) teóricos que tentaram pensar sistematicamente essa alternativa ao propor um estudo das novas tecnologias eletrônicas não em termos da morte das tecnologias anteriores (ceci tuera cela), mas antes em termos do conceito de Remediação (Remediation), vale dizer, das mudanças que ocorrem em um meio ou meios (mídia) diante do aparecimento de uma tecnologia que chega para, ao mesmo tempo, competir com e completar tecnologias anteriores.

Quando, por exemplo, uma empresa jornalística transfere seu produto, no caso jornal, para o meio eletrônico, o que ocorre não é a morte do impresso, mas a sua transformação: o jornal material, por assim dizer, perde o seu corpo e se transforma em virtual e, simultaneamente, perde algumas de suas características (materialidade, localização enquanto objeto em certos espaços físicos), e ganha outras (virtualidade, facilidade de acesso). Mas trata-se aqui, como explicam Bolter e Grusin, de uma remediação respeitosa, que hesita em desfigurar o meio anterior em respeito ao significado cultural do texto impresso. (Bolter and Grusin 1999, 200, 147-148, 40-41).

Remediation é colocada como a característica central das mídias digitais. A ‘paisagem da mídia’ atual é fortemente marcada tanto por uma dissociação generalizada entre conteúdos e modalidades de disseminação, como em paralelo do desenvolvimento de alternativas de interface para os conteúdos existentes. O que amplia o grau de problematização é que, tomando as práticas jornalísticas como advindas de uma dinâmica eminentemente urbana e internacionalizada temos que observar que, entre outras coisas, essas relações das narrativas jornalísticas estão progressivamente sendo influenciadas por um processo no qual a geração de conteúdos digitais vem a ser condicionada também pela digitalização. Em outras palavras, em um contexto contemporâneo onde se está progressivamente migrando ações das dinâmicas de uma cidade e da vida cotidiana para o ambiente de redes (e-government, e-commerce, cidades digitais, socialidade eletrônica etc.) é possível se manter inalterado o modelo que negocia a narrativa dos fatos com os cidadãos? Ao nosso ver e nisso estamos antecipando e ao mesmo tempo embutindo um caráter de hipótese, as chances de alteração do perfil de organização e distribuição das notícias interferem inclusive nos meios tradicionais.

A internet passa a ser empregada, de forma expressiva, para atender finalidades jornalísticas, a partir de sua utilização comercial, que se dá com o desenvolvimento da Web no início dos anos 90. Esta potencialização da informação desafia o modo de fazer jornalismo. O que ainda se observa, porém, é uma transposição do conteúdo impresso para o online e o não aproveitamento das possibilidades que a nova mídia oferece. A história da comunicação ensina que, numa primeira fase, os novos meios tendem a copiar os velhos. Os antepassados do jornal inspiram-se no livro; o rádio, na imprensa; o cinema no teatro; a televisão no rádio e no cinema. Não surpreende que o jornalismo online se apóie nos modelos pré-existentes do jornalismo escrito, radiofônico, televisivo e de agência. Adotando o conceito de remediação, proposto por Bolter e Grusin, considera-se que:

Nenhum mídia parece poder funcionar independentemente, estabelecendo seu espaço cultural em separado dos demais… Nossa cultura concebe cada mídia ou constelação midiática segundo as formas como aquela responde a, reorganiza, compete com e reforma outros mídias (Bolter e Grusin, 1999, p.55).

O conceito de remediação não se refere simplesmente a uma apropriação de especificidades de um meio por outro meio, mas diz respeito à contínua e permanente reorganização dos vários meios, que vão se modificando sem que qualquer um deles necessariamente desapareça. O cinema não foi extinto com a popularização da televisão e também sabemos que os primeiros programas produzidos pela televisão tinham no rádio, no cinema e no teatro suas principais referências. O fato é que um meio sempre se utiliza de outro para se caracterizar enquanto tal.

Um hipotético novo meio de representação sem qualquer relação com os mídias existentes não seria sequer reconhecido como mídia. O processo de remediação não se dá segundo uma progressão linear em que novos mídias remediam os antigos, mas conforme uma genealogia de afiliações, na qual mídia antigos também remediam os mais novos, geralmente como estratégia de manutenção de sua própria legitimidade enquanto meio de representação. Novos mídia são freqüentemente justificados em função de uma pretensa superioridade em relação aos mídias anteriores (realidade virtual mais realista que a fotografia, que é mais transparente que a pintura, etc.).

Mudança das práticas

O conceito de ‘imediação’ em Bolter e Grusin é baseado em uma específica hipótese sobre as motivações, causas e conseqüências do desenvolvimento dos modos e tecnologias de representação visual predominantes pelo menos desde o Renascimento. Exemplos bastante conhecidos de re-utilização de conteúdos seriam as adaptações de obras da literatura para o cinema ou televisão. Exemplos de utilização de especificidades formais seriam a teatralidade dos filmes do cinema anterior a Griffith ou as estratégias narrativas (essencialmente literárias) desenvolvidas por aquele mesmo diretor. Também a televisão, em seus primeiros anos, apropriou-se de vários formatos desenvolvidos para o teatro e o rádio, permanecendo até hoje repleta de programas que poderiam caracterizar-se como ‘rádio com imagens’.

Bolter e Grusin propõem a existência de quatro modos de remediação que podem ser indicados sumariamente como:

1) remediação transparente na qual um meio é representado em outro sem aparente ironia ou crítica, como se o conteúdo do meio anterior pudesse simplesmente ser transplantado para o meio novo. Exemplo: coleções de textos e picture galleries digitais, versões eletrônicas que justificam sua existência como forma de acesso aos mídia anteriores, buscando portanto a transparência do meio digital.

2) translúcida, onde existe a intenção de enfatizar a diferença entre o meio antigo e o novo. Nestes casos, o novo meio se apresenta como uma melhoria em relação ao meio anterior. Exemplo: enciclopédias multimídia, livros expandidos e a World Wide Web.

3) remodeladora, onde ocorre uma radical remodelagem do antigo mídia a partir da acentuação de sua presença. Deste modo, mantém o sentido de multiplicidade ou hipermidiação. Exemplo: CD-ROMs produzidos por bandas de rock. Neste tipo de remediação, os mídia anteriores são apresentados num espaço cujas descontinuidades são claramente visíveis. As interfaces indicam descontinuidades deste mesmo tipo através das janelas, botões, barras de rolagem, etc.

4) por incorporação que é quando o novo meio procura absorver completamente o anterior minimizando as descontinuidades entre eles. Exemplo: filmes interativos, a incorporação de câmeras para transmissão de imagens ‘ao vivo’ pela World Wide Web, a incorporação da computação gráfica ao cinema, etc. Esta forma de remediação não cria um espaço aparentemente contínuo, mas esconde a relação entre os vários mídia em nome de uma estratégia de transparência.

Não é fácil, por enquanto, prever qual será o papel da internet no futuro da comunicação, ou mesmo qual será a evolução do jornalismo tradicional e do jornalismo online. Os estudiosos dividem-se e apresentam diferentes perspectivas do que está para vir. Por um lado, defende-se que o jornalismo terá práticas e características semelhantes às atuais. A quem diga também que pouco irá mudar no jornalismo online, que apenas continuará a utilizar um meio diferente para a difusão da mensagem, um meio que tem a vantagem de conjugar texto, imagem e som numa só estrutura e que está ao alcance de todos, em qualquer lugar do mundo.

Com base nesse artigo é possível dizer que a internet não representará o fim do impresso, mas vai, certamente, modificar ainda mais muitas das práticas atuais nas redações (mesmo nas de meios de comunicação específicos online). A forma como se investiga e constrói uma notícia terá semelhanças com o que se realiza hoje; a apresentação será diferente e será necessário um processo, ainda maior do que já ocorre hoje, de adaptação, às tecnologias.

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Jornalista, graduada pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos, bolsista Capes e professora do curso de Comunicação da Faculdade Assis Gurgacz (FAG)