Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A metamorfose do divino

A sociedade pós-moderna perdeu o penúltimo grande ídolo. Morreu o mágico mister Jackson, o Rei do Pop. Para consolo de três gerações, resta Madonna, a última representação da época em que a renovação magistral da linguagem da cena mostrou o apogeu dos espetáculos para grandes plateias e traz signos de ousadia e outros dilemas perceptíveis para os mais sensíveis. Jackson trouxe a ambiguidade camaleônica, a metamorfose de si mesmo, a ruptura de conceitos e preconceitos, o enfrentamento com a sociedade de consumo se revestindo de embalagem para vendas milionárias e desconstruindo a essência natural do menino atormentado em plásticas, clareamentos de pele, polêmicas, acusações de comportamento sexual transgressor, enfim, de elementos de vida, paixão e morte: do divino.

Insatisfeito com a condição de objeto comum de consumo, transformou-se no ícone de si mesmo. Segundo Benzançon, ‘o ícone, não obstante os desenvolvimentos teológicos em sentido contrário, permanece impregnado do espírito platônico. Ele é um instrumento da contemplação pela qual a alma se arranca do mundo sensível e entra no mundo da iluminação divina’. Para Nicéforo Blemmydes, ‘nós nos nutrimos por necessidade a fim de que a nossa vida conserve sua força para a contemplação que é, verdadeiramente, a finalidade para a qual nascemos’. Contemplamos o mito em séculos de história. Contemplamos Michael Jackson quarenta anos. Continuaremos contemplando Elvis Presley, Janis Joplin, Jimmy Hendrix, John Lennon, Cazuza, Carmem Miranda e Renato Russo.

Fetiche de consumo

O artista Michael Jackson não representava só o corpo, mas a alma. Mas a alma perturbada por confusões entre vida pessoal e a cena, amigo de um chimpanzé, dono de zoológico no quintal, parque infantil exclusivo e cama especial para retardar a morte. Nada deu certo. Mais que revelar a pessoa, o artista expunha tratados ou leis com a performance formidável. Sua figura e obra trazem a renovação da linguagem audiovisual contemporânea que suga dos clipes do artista, influências perceptíveis e utilizadas excessivamente.

Compor, criar, dirigir, influenciar, cantar, dançar, zombar, escandalizar, operar, transfigurar, sorrir e chorar são os verbos da vida do ilusionista que transformou essência em dinheiro, viveu os benefícios abstratos de todas as mercadorias que comprava e nos movimentos de corpo que não paravam nunca em seus clipes. Não se vê Michael Jackson em repouso, sempre em moto contínuo. No clipe, que compõe a carta de apresentação aos fãs e exibido pelo altar televisivo, não permite um momento de reflexão, de pausa, de descanso, pois a caixa registradora exige moedas por segundos. Michael era máquina de fazer e perder dinheiro.

Na turbulência financeira vivida pelo astro e anunciada pela mídia era preciso voltar ao causticante calor e movimento de serpente sob os holofotes do show business. Mas vale a pena?, deve ter refletido o mestre. O homem Michael, aos cinquenta anos, meio século de existência, separado do seu universo, carregava o corpo já cansado e mutilado pelas cirurgias, enxergava a imagem que não lhe pertencia mais e custava muito sacrifício mantê-la viva. Estava separado de seu mundo. Negou o seu nariz de negro. Viveu o ápice do espetáculo. Foi afastado o circo da mídia. O pó branco que ele usou e cobre o rosto do palhaço, agora não esconde rugas ou cortes de bisturis. Guy Debord diz que ‘quanto mais sua vida se torna seu produto, tanto mais ele (o homem) se separa da vida’. Michael sabia que era fetiche de consumo. Só. Não quis viver mais.

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Jornalista, professor universitário e mestrando em Comunicação e Tecnologia