Saturday, 12 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Censura ronda jornal-laboratório

Desde o início de 2006, e até agora, o curso de Jornalismo da Faculdade de Comunicação (Facom), da Universidade Federal da Bahia, enfrenta um debate que pode culminar na instalação da censura prévia em seu jornal-laboratório. Está prevista para meados deste mês de junho uma reunião departamental, instância decisória que reúne todos os professores da faculdade, para deliberar sobre o tema. A decisão se dá reacionariamente, isto é, como reação a um artigo assinado publicado no número 9 do jornal, em uma seção denominada ‘Ágora’, referência justamente ao espaço de debates públicos de Atenas, cidade-Estado gênese da democracia. Ver aqui.

Por surreal, esdrúxulo e absurdo, uma escola de Comunicação que em tese deveria radicalizar na ampliação dos direitos constitucionais que asseguram a livre manifestação de opinião e pensamento, cogita constituir um ‘Conselho Censor’ (eufemisticamente denominado Conselho Editorial). Este teria dentre as suas ‘responsabilidades’, de acordo com os proponentes da excrescência, a de reunir-se e antecipadamente ler e aprovar o que deve ou não deve ser publicado no Jornal da Facom e demais produtos laboratoriais que venham a circular com a chancela da faculdade.

O Jornal da Facom passou a circular no primeiro semestre de 2006, sob responsabilidade deste escrevinhador – que assumiu a disciplina teórico-prática na qual a produção do jornal-laboratório repousa. Antes, e por longos oito anos, a faculdade possuía um jornal sem periodicidade regular (saía quando dava), com tiragem e circulação restritas (somente para o campus), com pauta endogâmica, isto é, abordando apenas assuntos relativos à própria UFBA. Chamava-se simplesmente Jornal Laboratório.

A cúpula de mando

Ao assumir, foi proposto um novo projeto editorial. Tablóide, em vez do formato standard anterior. Periodicidade mensal. Tiragem média de 10.000 exemplares. Pauta abrangente, com enfoque sócio-político-cultural nos acontecimentos de Salvador e sua grande região metropolitana, sem abandonar a vigilância sobre o funcionamento da universidade. Circulação e distribuição gratuitas ampliadas: além de todas as faculdades da UFBA e demais públicas e privadas, para centenas de pontos culturais, escolas, cursinhos, veículos de comunicação, sindicatos e casas legislativas.

Como o jornal é pago pelo dinheiro público, o entendimento é que deveria servir ao interesse público. Entre os objetivos, demonstrar ser possível o exercício de um jornalismo sem amarras, experimental em todos os sentidos – coisas que raramente o estudante poderá vivenciar ao ingressar no chamado ‘mercado’. Um jornal que deveria dar voz, principalmente, a fontes ‘que não têm voz’. Dessa maneira, radicalmente não-oficial, pluralista, de investigação jornalística. E com uma versão digitalizada.

Apresentado assim, dessa forma, o novo projeto editorial começou a gerar controvérsias dentro da Facom, isto é, na cúpula de mando incrustada em espaços gestores do mundo acadêmico. O recurso financeiro para bancar a empreitada mais que triplicou – pegando de surpresa a própria estrutura central da UFBA, à qual foram também apresentados projeto e o orçamento. Neste 2007, os oito números do ano letivo foram orçados em 32 mil reais, mas a direção central da UFBA alocou 28 mil reais para a impressão, obrigando à diminuição da tiragem média para 7.500 exemplares por edição.

As obstruções cotidianas

Ademais, foi proposta a mudança de nome do jornal. Entre as sugestões apresentadas, os alunos da disciplina (em torno de 30) decidiram denominá-lo Merda!, no sentido de boa sorte, êxito, sucesso – expressão comumente adotada em algumas esferas artísticas. A sugestão foi terminantemente vetada pela direção e pelo departamento após quatro meses de polêmica e quatro edições nas quais a logomarca do jornal foi substituída por uma arte que remetia a um rasgão sobre a capa.

No final do primeiro semestre de 2006, o conjunto departamental decidiu pelo nome Jornal da Facom. Para que o público ao qual o veículo se destina prioritariamente não concluísse que este ‘da Facom’ significasse exclusividade ou propriedade desta faculdade, a equipe editorial solucionou o impasse ressaltando na logomarca o ‘J’ e o ‘F’ do nome.

Instalado o mal-estar desde aquela época, por várias vezes foi sugerida a criação de um tal ‘Conselho Editorial’. Presente nos momentos em que isto se aventava, este escrevinhador sempre argumentou contra a medida. Primeiramente, porque tal sugestão sempre foi apresentada como reação ao novo projeto editorial, mal-dissimulando desconfianças da cúpula dirigente quanto ao método e à prática jornalística agora emulados nos estudantes. Depois, por razões práticas. Tal ‘conselho’ pode vir a ser um entrave ao ritmo imposto à produção do novo projeto editorial, que requer agilidade na execução das pautas – 80% de reportagens, o restante colunas opinativas –, na editoração eletrônica, na revisão, no acompanhamento gráfico e na distribuição dos milhares de cópias por toda Salvador.

Tudo isso é feito por vezes varando noites na redação da faculdade, inclusive fins de semana e feriados. O planejamento dessa tarefa, aliado às discussões teóricas exigidas pela disciplina, requer o menor grau possível de burocratização para que a periodicidade e circulação do jornal sejam mantidas. Envolvidos com suas próprias rotinas acadêmicas e interesses particulares, professores de outras matérias, alguns distantes da prática e do ‘pique’ de uma redação jornalística há tempos, seriam um peso a mais nas diversas obstruções cotidianas enfrentadas pelo jornal-laboratório.

A heresia do dia-a-dia

Tal ‘conselho’ jamais foi sugerido como solução aos entraves, entre os quais a falta de equipamentos adequados ou suficientes na redação, a não instalação de telefones ou fax no referido espaço físico, os freqüentes atrasos na liberação do dinheiro orçado para a impressão do jornal e as más condições materiais de trabalho dos alunos envolvidos com o projeto. O fato é que, pela primeira vez em sua história, o curso de Jornalismo da UFBA tem, de fato e não ‘de mentirinha’, um jornal-laboratório regular. Nos últimos meses se tornou referência entre os demais cursos de jornalismo em Salvador. Sua repercussão pública se reflete nas dezenas de cartas e mensagens recebidas na redação, algumas de crítica, outras de estímulo, várias de sugestões de pauta.

Entretanto, tais fatos positivos parecem incomodar professores mais habilitados para as teorias de Comunicação e Conspiração do que para o jornalismo. Eles desconfiam de todas as reportagens que contrariem suas convicções e muitos estão dispostos a calar, impondo restrições de gosto e de conduta, as opiniões alheias.

Nisso se transformou grande parte das Escolas de Comunicação: numa espécie de feudo de comunicólogos e pseudo-críticos de jornalismo, pouco afeitos a lidar com a realidade profissional, muitos deles sem nunca ter pisado o pé num jornal de verdade. Ensinar aos estudantes que ‘jornalismo é gastar sola de sapato’, é ir para a rua, é ‘comer poeira’ e receber ‘chá de espera’ é ser agressivo e ser leitor de jornais – isso soa, em muitos desses cursos de jornalismo, como uma heresia.

‘Doutores do conhecimento escolástico’

Foi nesse contexto e na ausência extemporânea do professor-responsável pelo jornal, que a proposta de se pautar a criação do Conselho Censor foi discutida e recebeu aprovação entusiástica, de acordo com relatos posteriores. Aquela ausência do principal interessado foi extemporânea porque presente estava nas três horas anteriores da reunião departamental de maio, período em que o assunto não apareceu. Extemporânea porque motivada por compromisso de docência em disciplina semanal num programa de Pós-Graduação da própria faculdade. Por si só, a inclusão sorrateira da discussão do tema é prova inconteste de desonestidade.

No Brasil funcionam cerca de 500 cursos de Jornalismo regularizados, 74 deles públicos e o restante, privados. A maioria tem habilitação específica em jornalismo. Quantos obedecem à antiga Resolução 03/78, do Conselho Federal de Educação, que obriga os cursos a manterem produtos laboratoriais, como jornal-laboratório, não dá para saber.

Por quase três décadas, a graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Bahia, pela qual este escrevinhador passou em meados dos anos 1980, existiu sem cumprir as normas exigidas por aquela resolução e outras. Do final da década de 1990 para cá é que, aos trancos e barrancos, vem se buscando pôr em funcionamento laboratórios nos quais os estudantes entram em contato com exercícios de prática jornalística.

No momento em que um projeto, de tantos possíveis, deslancha e dá visibilidade aos estudantes nele envolvido, os ‘urubus’ da censura (Barbara Gancia), travestidos agora em doutores do conhecimento escolástico, pretendem enquadrá-lo em seu moralismo arbitrário, medroso e desavergonhado.

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Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, professor-adjunto da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia