Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Em busca de pessoas invisíveis

A pauta que fomos cobrir: invisibilidade social. Ler sobre o assunto, pesquisar algumas fontes, levantar alguns questionamentos. Nenhuma novidade para um jornalista, ou, até mesmo, no nosso caso, para estudantes de Jornalismo. Agendamos as entrevistas com as fontes oficiais – aquelas pessoas bem visíveis – e combinamos que depois dessas, iríamos a campo procurar nossos personagens – os invisíveis.

Nós, uma dupla de repórteres, saímos cada qual com seu bloco de anotações e a cabeça fervendo de idéias. Quando passávamos pela Rua José do Prado Franco, um de nós tentou fazer um sinal para saber se pararíamos ali e entrevistaríamos um pedinte que estava ao lado. O outro repórter não respondeu ao sinal e continuou andando. Alguns metros depois, ele comentou:

– Aqui não tem ninguém para entrevistarmos, é melhor procurarmos em outra rua.

– Mas e aquele senhor pelo qual passamos? Ele estava sentado pedindo ajuda, não seria um bom personagem? – perguntou a repórter.

– Que senhor? – encerrou ele, sem saber de quem a colega falava.

O professor da Universidade Federal de Sergipe Marcus Eugênio diz que na psicologia há basicamente duas teorias sobre as causas da invisibilidade social. A primeira vê a invisibilidade a partir da percepção dos indivíduos: as pessoas estariam tão familiarizadas com o ambiente que ele não lhes produziria qualquer estímulo. Assim, como um pedinte já faz parte da paisagem do centro das grandes cidades, muitas vezes passamos por eles e não nos damos conta.

“Nada a declarar”

Interrompido por alunos do curso de Psicologia e por telefonemas em seu celular – ótimo exemplo do oposto de pessoa que estávamos procurando –, Marcus Eugênio continuou a explicação. Segundo ele, a outra teoria é a da banalização. Essa tem a ver com a despersonalização dos indivíduos. Muito empregada no exercício de certas profissões – por exemplo, os médicos que tratam os pacientes pelo número do quarto em que estão internados ou pela doença de que são portadores.

Qual das teorias, então, explicaria o fato de o repórter não ter enxergado o pedinte? Marcus Eugênio afirma que um pouco das duas. “Em parte o fato se deu porque os pedintes já fazem parte do centro da cidade e em parte porque já criamos mecanismos para despersonificar esses indivíduos”.

Voltamos à Rua José do Prado Franco para tentar saber quem era, afinal, o pedinte. Ele teve apenas uma resposta para todas as nossas perguntas: “Nada a declarar”. Continuamos sem saber quem ele é. Talvez, acostumado a tantas humilhações, achou que nossa investida fosse mais uma tentativa de desrespeitá-lo. E não foi o único que se recusou a falar.

No pé da escala

Somente depois de muita andança encontramos uma jovem que se dispôs a falar um pouco da sua vida. Sentada num papelão, Janaína Santos, 25, começou a contar sua história. Ela teve paralisia infantil aos 2 anos. Os membros inferiores se atrofiaram e ela não conseguiu mais andar. A mãe, que tem outros seis filhos, passou a dedicar atenção especial a ela. Desde menina, Janaína trabalha pedindo ajuda – é assim que cada pedinte encara sua rotina: para eles, pedir também é trabalho. Segundo o professor Marcus Eugênio, encarar assim a rotina de pedinte é mecanismo de defesa. É como se o pedinte se sentisse menos humilhado quando vê no ato de pedir um trabalho propriamente dito.

De tanto tempo que passamos ajoelhados para ouvir os relatos de Janaína, nossos joelhos começaram a doer. Então, decidimos nos sentar no chão junto a ela para continuarmos a ouvi-la. As pessoas que passavam pelo calçadão passaram a olhar curiosas a cena. Ironicamente, naquele momento em que nos falava de sua invisibilidade, Janaína deixou de ser invisível. Ela contou que tem uma filha de 4 anos. Enquanto ela trabalha, a filha está na escola. Perguntamos o que a menina será quando crescer. Janaína não pensou muito ao responder: “Eu quero que ela seja tudo aquilo que eu não pude ser”.

Segundo Marcus Eugênio, a invisibilidade social não atinge apenas os pedintes, mas todas as profissões que, na escala social, são vistas como inferiores. Estudo feito pelo psicólogo Fernando Braga da Costa, mestre em Psicologia, deu origem ao livro Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social [ver “Humilhação social: um problema político em psicologia”, publicado neste OI em maio de 2000]. No livro, o autor relata que se vestiu de gari na Universidade de São Paulo e viveu diversas situações de invisibilidade, entre elas passar por amigos e professores e não ser reconhecido justamente porque vestia o uniforme de gari.

“Finjo nem escutar”

O retrato da invisibilidade marca várias outras profissões. João Alves, frentista há oito anos de um posto de gasolina localizado no bairro Atalaia, tem rotina de trabalho da qual não reclama. Chega às 6h, sai ao meio-dia. Ganha pouco, mas, segundo ele, não pode reclamar, pois com o pouco estudo que tem não arranjaria nada melhor. Pai de três filhos, ele é contundente ao dizer que, mesmo gostando da profissão, não quer que nenhum de seus filhos siga seu exemplo. “Esse trabalho é para quem não tem estudo. Meus filhos estudam, eles podem ser médico, dentista, advogado. Com certeza, eles não se orgulham da minha profissão”.

O tratamento que recebe dos clientes varia. “Alguns chegam, já me conhecem, sabem meu nome, são clientes de muitos anos. Outros acham que por estarem dentro de um carro são melhores do que eu. Quem eu trato melhor? Claro que é o que me trata bem”, contou o frentista. João relatava suas histórias com alegria. Talvez estivesse se sentindo importante agora que alguém finalmente se interessava pelo que tinha para contar.

“Amo a minha profissão, ela é muito importante, mas as pessoas não reconhecem” foram as primeiras palavras de Messias Nascimento, garçom há 45 anos. Aos 64, seu Messias disse que já enfrentou situações bem desagradáveis. “A gente quando chega a uma certa idade começa a ser chamado de tio ou de . Não posso fazer nada, senão sou despedido. O cliente tem que ter sempre razão. Por isso, muitas vezes finjo nem escutar que debocham de mim”.

Arte na toalhinha

Segundo ele, além de o trabalho ser muito desgastante, o salário de garçom não compensa. Ou melhor, as gorjetas oscilam e não há como ter uma renda certa. Mesmo contra a lei, muitos garçons recebem apenas os 10% sobre a conta dos clientes que atendem. “O pior é quando o cliente fica meu amigo e acha que por isso não precisa mais pagar os 10%”, conta o experiente garçom que, mesmo a contragosto, viu um dos três filhos seguir a mesma profissão.

Paulo Silva (nome fictício para preservar sua identidade), com apenas 14 anos, também já é vítima da invisibilidade social. O garoto cursa a 6ª série do Ensino Fundamental e tem oito irmãos, mas para ajudar nas despesas em casa vende toalhinhas pintadas com personagens de desenhos infantis na Orla de Atalaia. Ele mesmo pinta as toalhas, apenas olhando as figuras. No entanto, Paulo conta que nem sequer é notado pela maioria das pessoas a quem tenta vender sua arte. “As pessoas estão mais preocupadas com o caranguejo e a cerveja”, diz. É provável que com isso os garçons concordem.

Será que se ele mudasse a forma de abordar as pessoas adiantaria de alguma coisa? E se, em vez de perguntar se alguém “quer comprar uma toalhinha”, abordasse as pessoas explicando que mais do que uma toalha o que ele vende é a sua arte? “Chegue às pessoas dizendo que as pinturas são feitas por você, somente olhando a figura e pintando diretamente na toalha”, sugerimos a ele. O garoto agradeceu e foi em busca de vender as seis peças que lhe restavam. Alguns metros depois, vimos que um senhor havia comprado várias. Paulo nos dirigiu um sorriso de agradecimento. Por um instante, aquele garoto se sentiu valorizado, como talvez tenha experimentado poucas vezes na vida.

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Estudantes de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe