Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Escolas médicas, o MEC e a imprensa

Verificando o interesse da imprensa pela questão da punição a escolas médicas pelo MEC, e o quanto se publicou a respeito disso no correr do tempo – de notícias a editoriais – acrescido do texto da estudante de medicina Ana Carolina da Silva no OI [ver ‘Exame do Cremesp revela realidade sórdida‘], creio ser pertinente dar alguns subsídios a todo esse emaranhado de termos.

Voltando à mesma tecla sempre digitada de que assuntos ligados a saúde sempre abrem espaço na imprensa, e os sempre tão falados ‘erros médicos’ são prato cheio, não deixa de ser curioso observar que o exame do Cremesp, suas gritantes conclusões e mesmo as ações do MEC no momento tenham levado a noticiário razoavelmente burocrático. Por exemplo, proíbem-se exames vestibulares em duas escolas médicas – mas e as causas e conseqüências disso ?Não se deve aprofundar mais o assunto?

Vamos a um pequeno resumo relativo ao ensino médico e aquilo que se pode tentar caracterizar como novas escolas médicas.

Qualificarem-se ou fecharem as portas

Ensino de medicina no Brasil transcorria de modo mais ou menos restrito, elitista até por um lado, até que, após a II Guerra Mundial foi feito algum movimento para que fossem abertas novas faculdades de medicina: ainda na década de 1930, São Paulo havia criado uma segunda instituição na capital, a Escola Paulista de Medicina – hoje Unifesp. E novas faculdades, apenas nesse estado, foram inauguradas, ligadas a instituições de renome: a PUC, com sua faculdade em Sorocaba, a Unicamp, a Santa Casa de São Paulo, por exemplo. Contudo, lá pela metade dos anos 1960, apareceu uma demanda por maior número de faculdades, em especial por uma categoria denominada de excedentes: por exemplo, na capital paulista, com duas faculdades – a USP e a Paulista – um bom número de vestibulandos conseguia notas elevadas nos concursos vestibulares, mas por ser o dito concurso classificatório, não logravam entrar de fato na faculdade. Nomeando a si mesmo de excedentes, passaram a exigir do governo a criação de mais vagas. E assim foi: foram criadas novas escolas médicas, particulares, em várias cidades do interior paulista.

Como o número de faculdades de medicina crescesse de modo vegetativo durante um bom tempo, embora tenha havido uma moratória durante certo período do governo Sarney, as entidades médicas passaram a observar queda na qualidade de ensino e na formação de profissionais. Algumas tentativas de criação de novas escolas em regiões sem o menor sentido prático e sem condições conseguiram ser obstaculizadas na Justiça, com ações da Associação Médica Brasileira, por exemplo.

Mas eis que em 1996 é publicada nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. De modo geral, valendo para qualquer área, essa LDB imbuiu-se do mesmo espírito de mercado regulador tão em voga nos tempos de apupos ao Consenso de Washington. Dessa maneira, novas instituições de ensino superior poderiam ser criadas sem maiores dificuldades; caso não correspondessem ao esperado, o próprio mercado se encarregaria de declarar as mesmas de má qualidade e a essas restaria o caminho de melhor se qualificarem ou fechar suas portas.

O anúncio do vestibular

Evidentemente que no caso da medicina as coisas não são tão simples assim e ao menos passou a se exigir, para a aprovação de um vestibular, que um projeto completo fosse entregue ao órgão, assim como que se demonstrasse a necessidade social da criação daquela faculdade, a ser aprovada (embora não de maneira terminativa) pelo Conselho Nacional de Saúde, depois pelo Conselho Nacional de Educação, sendo por fim homologada pelo ministro da Educação. Por necessidade social entenda-se não haver escolas médicas na região pretendida e/ou o número de médicos na dada área por habitante ser baixo. Seja como for, a palavra final fica com o ministro.

Com base na interpretação mais liberal, digamos, da LDB, houve um crescimento vertiginoso de novas faculdades de medicina criadas, evidenciando, na grande maioria dos casos, a falta da tal necessidade social e mesmo das condições mínimas para uma instituição poder dar ensino médico de qualidade ao menos razoável. E daí, chegamos até nossos dias, quando exames como o do Cremesp e as avaliações do MEC mostram um quadro assustador.

Para exemplificar como funcionam as rodas dessas engrenagens, darei um testemunho pessoal. Apenas não dou nomes aos bois, como o da instituição em tela e nem a cidade em questão, pois ainda há certas coisas sub judice e não pretendo macular o caminho de ações em desenvolvimento.

Há cerca de dez anos, eu era conselheiro do Cremesp. Em determinado dia, somos procurados por médicos e estudantes de medicina de uma determinada cidade do estado, alarmados com o anúncio de que uma instituição de ensino dali estava anunciando o vestibular para medicina. Na visão daquelas pessoas, a cidade não comportaria nem novos médicos, menos ainda uma segunda faculdade de medicina, e trouxeram o assunto para nossa análise. O mesmo pleito foi levado à Associação Paulista de Medicina (APM), quando se decidiu por alguma forma de interferência no processo: fui designado pela presidência do Cremesp àquela época para viajar à cidade em questão juntamente com o presidente da APM e com equipe de advogados.

Nova investida

Como a esfera do assunto era a do MEC, entramos em contato com o Ministério Público Federal na cidade – o procurador da República encarregado propôs uma solução um pouco inusitada, mas que acatamos: marcou para dali uma semana uma reunião em seu gabinete entre o Cremesp, a APM e a reitoria da universidade que queria abrir um novo curso médico para tentar uma solução negociada para a suspensão dos exames. E assim foi: creio que é desnecessário chamar mais atenção que o necessário para o resultado da reunião: os responsáveis pela universidade disseram que respeitavam as opiniões contrarias, mas que fariam, sim, o vestibular. Nada mais foi proposto pelo MPF.

Antes de nos retirarmos dali para maiores deliberações, um de nossos advogados resolveu consultar o que poderia haver na Justiça Federal referente àquele curso, por mero desencargo de consciência. E aí tivemos uma senhora surpresa: um ano antes, a universidade em questão já havia pretendido fazer seu vestibular e encaminhara à Delegacia Regional do MEC uma série de documentos. Analisando os mesmos, o MEC não havia dado autorização para o vestibular. Com a negativa, a universidade contratou os serviços de célebre e competente escritório de advocacia, que entrou com pedido de liminar para autorização do dito exame na Justiça Federal da cidade. A juíza que analisou o pedido negou. Houve um pedido de reconsideração, novamente negado e nada mais se fez na esfera judicial. Ora, terminados os prazos devidos, aquela ação transitou em julgado; em outras palavras, a pedido da própria universidade, tanto o MEC quanto a Justiça Federal não deram ganho de causa para o pleito da pretendida nova escola médica – e isso, naturalmente, continuava em vigor um ano depois. Não solicitando nada de novo ao MEC ou à Justiça, a universidade apenas anunciou o novo vestibular, talvez imaginando que ninguém percebesse…

Pedido em Brasília

Como o resultado foi outro – perceberam, sim, e como! – mesmo com a reunião no MPF a universidade não voltou atrás. Retornamos a São Paulo e, com o conjunto de nossos assessores jurídicos, do Cremesp e da APM, tomamos algumas medidas. Primeiramente, na interpretação de todos, o MEC continuava proibindo aquele vestibular e, mais grave ainda, a Justiça Federal já havia dado sua sentença transitada em julgado contrária ao mesmo. Optamos por entrar com ação civil pública nos mesmos Cremesp e APM, sem recorrer ao Ministério Público. Entramos em contato com o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o IDEC, para convidar o mesmo a ser parte na ação, considerando que o aluno que prestasse o vestibular seria um consumidor e, caso aquela escola não fosse aprovada ou regulamentada no futuro, o mesmo poderia sofrer danos, como previsto no Código do Consumidor.

Foi preparada a ação civil pública com pedido de liminar para proibir o vestibular com encaminhamento para a Justiça Federal, com todos os dados aqui citados bem explanados e com detalhes no corpo da petição. Foi marcada uma reunião entre nosso advogado e o juiz que apreciaria o pedido. Na citada reunião, espantosamente, o magistrado declarou que tinha problemas em dar uma sentença, pois não havia prova nos autos de que ocorreria o vestibular denunciado! Apenas incontáveis anúncios na TV, jornais, outdoors… Pediu o juiz as tais provas e marcou nova reunião para a manhã do dia em que se realizaria o vestibular, marcado para a tarde!

Nosso advogado reuniu tudo o que pôde: propagandas, anúncios, declarações etc. e levou ao juiz na hora marcada. Com tudo em mãos, o mesmo disse que não poderia deliberar, pois no dia anterior a universidade havia entrado com pedido de liminar para autorização do vestibular na Justiça Federal do Distrito Federal, que o havia concedido! Como as resoluções da Justiça Federal valem para todo o país, para não correr riscos, a universidade entrou com esse novo pedido em Brasília, na primeira instância, que concedeu a medida proposta, e o juiz da cidade apenas fez unir a ação que entramos em uma única a correr em Brasília.

Um relatório paradigmático

Horas depois do ocorrido, e já estando em curso o exame vestibular, recebo telefonema do procurador da República que havia feito aquela reunião de conciliação, espantado com nossas descobertas e mesmo com o fato de que havíamos entrado com ação própria e passa então o MPF a fazer parte da ação como litisconsorte. A União fica do mesmo lado e a Advocacia Geral da União se une ao grupo. Como se não bastasse, o Ministério Público Estadual se junta também ao grupo, entrando com ação própria, com os mesmos termos, na Justiça Estadual, solicitando intervenção na universidade, que o CRM designasse um diretor interventor e que a Fundação Getulio Vargas ou a USP nomeasse um administrador interventor até a resolução do mérito. Dado a mais: o Conselho Nacional de Saúde, por unanimidade, havia sido também contrário ao vestibular daquele curso.

Pausa: a dita universidade estava contra todos, conseguiu uma liminar esperta em Brasília, mas a nossa ação inicial agora tinha em seu pólo ativo o Cremesp, a APM, o IDEC, o MPF, o MPE e a AGU! Resumindo o resultado: as coisas andaram na Justiça até o Superior Tribunal de Justiça, quando o processo inexplicavelmente parou, sem julgamento do mérito, até prescrever. E a tal faculdade continua realizando seus vestibulares e, não espantosamente, é uma das mal avaliadas e que está na mira da Comissão que está verificando in loco essa questão, presidida pelo professor Adib Jatene. Surpresa? Não de todo.

Um ponto importante que marcou todo o mundo, apesar de fazer bastante tempo, foi o chamado ‘Relatório Flexner’, que deu origem à chamada reforma Flexner, em 1910.Um norte-americano de Kentucky, filho de médico, interessou-se por educação – era Abraham Flexner, descendente de alemães. Estudou em sua cidade natal, sendo diretor de várias escolas de nível secundário. Como tinha especial interesse pela pedagogia e sendo grande crítico do sistema de ensino dos EUA, particularmente do ensino médico (talvez por razões filiais), resolve tornar-se educador de fato, estudando nas prestigiosas Universidades John Hopkins, de Baltimore e Harvard, em Boston. Resolveu estudar vários modelos de ensino na Europa, em especial na Universidade de Berlim. Isso ocorreu no início do século 20 e, ao retornar aos EUA, passou a divulgar suas idéias. Paralelamente, a Associação Médica Americana (AMA) estava preocupada com o nível de ensino em seu país – contratou para um amplo estudo a Fundação Carneggie, que indicou para fazer tal avaliação o próprio Abraham Flexner. Flexner resolveu estudar então todas as escolas médicas da América do Norte, não apenas dos EUA, mas também do Canadá e México. Visitou pessoalmente as mais de 150 escolas médicas da região e redigiu extenso relatório que se tornou paradigmático à época e levou a uma série de conseqüências.

Ensino de primeira linha

Interessante notar que as escolas médicas americanas eram praticamente desregulamentadas; nem todas pertenciam a universidades, e eram denominadas como escolas isoladas ou algo semelhante. Tais escolas ofereciam cursos de dois anos e geralmente eram propriedade de uns dois médicos práticos, que davam aulas em tempo parcial e alguns assistentes contratados. A maioria não possuía hospital ou laboratórios e facilmente era outorgado o título de médico.

Fkexner, em seu extenso relatório, avaliou minuciosamente cada uma dessas faculdades, com resumo detalhado de cada uma e sua opinião. Curiosamente, várias dessas escolas ditas proprietárias às vezes refletiam o interesse de seus donos, ensinando medicina homeopática ou quiropática, por exemplo, às vezes naturopata.

Conhecedor dos cursos europeus, notadamente berlinenses, Flexner considerou isso um absurdo e que o ensino médico na América estava próximo do ensino do charlatanismo: suas opiniões encontram-se publicadas, à disposição de quem tiver interesse em lê-las, e já no inicio do século 20 ele apontava a falta de método científico nessas instituições e a formação de falsos médicos (mais curandeiros, como ele dizia). Além da análise individual de cada escola, ele formulou alguns princípios gerais para o ensino da medicina: dois anos de curso básico com forte ênfase no ensino de ciências, dois anos de ensino teórico-prático das matérias médicas propriamente ditas, e dois anos de estágio prático supervisionado – o internato, aproximadamente o que se fazia na Universidade de Berlim, e que tanto o impressionou. Ele também achava absurda a existência de escolas isoladas e considerou que uma faculdade de medicina obrigatoriamente deveria pertencer a uma universidade. Mesmo nas escolas que avaliou e eram universidades, muitas vezes a ligação da escola médica era apenas formal. Apresentou seu relatório à AMA, que causou grande impacto e os resultados em poucos anos passaram a se sentir: a maioria das escolas fechou suas portas ou fundiu-se a universidades, os currículos foram homogeneizados e melhorados de acordo com suas proposições e a América do Norte passou a ter um ensino médico de primeira linha, bem equilibrado. Quanto às escolas homeopatas ou quiropráticas, ou desapareceram ou passaram a formar gente em termos livres, sem o status de médico. Interessantemente, o termo de charlatanismo quackery passou a ser empregado nessa ocasião.

Um lobby por uma boa causa

O número de médicos por habitante também foi avaliado por Flexner escola a escola. Após alguns anos, os cursos reduziram seu número e passaram a adotar o currículo proposto, ligando-se efetivamente a universidades.

Houve críticas a Flexner: escolas isoladas que atendiam apenas a minorias, como afro-americanos, desapareceram. Alguns chegaram mesmo a acusar o relatório de favorecer uma espécie de cartel, pois com o menor número de médicos formados, a medicina se encareceu e passou a ser utilizada por quem podia pagar o médico, que ganhava bem.

Polêmicas à parte, no Brasil, com muito atraso, foi adotado o currículo à moda de Flexner apenas em 1968 em todo o país, quando novas modificações na pedagogia médica já existiam em todo o mundo.

Pois então: as nossas escolas, apesar de muitos esforços, como demonstrei no exemplo acima e no qual tive alguma participação, aparecem às pencas por aí. Até agora, nenhuma foi fechada e, malgrado a excepcional competência do professor Jatene e da aparente boa vontade do ministro da Educação Fernando Haddad, são feitos exames e avaliações, dados prazos para correção e assim por diante, enquanto médicos deficientes são lançados para trabalhar. Apesar de eventuais exageros de Abraham Flexner, será que a comissão que está avaliando as escolas não deveria fazer isso com todas e fechar sumariamente as que estivessem abaixo da crítica e sem perspectivas? Em nosso país, um pouco de flexnerianismo não iria mal.

E o exame de ordem, como o da OAB? Pela legislação atual, não há amparo para o CFM, Cremesp ou outros mais exigirem a obrigatoriedade. Deve haver um esforço para modificações no Congresso. Isso é um lobby, sem dúvida, mas por uma boa causa – mas as perspectivas a curto prazo não são animadoras.

Ganho é da população

Resumindo, deveria haver um esforço político importante, com apoio das entidades médicas e do Ministério Público, e atitudes mais drásticas terão, ao menos em algum lugar do futuro, que ser tomadas, pois quem sofre, para variar, é a população.

E, claro, quem imagina que quanto mais médicos existirem melhor, incorre em grave erro: vai contra todos os preceitos da Organização Mundial da Saúde e a queda na qualificação é inevitável. Não é reserva de mercado – temos médicos em número suficiente, basta bem capacitá-los, mesmo após a graduação e a residência (que, aliás, não tem vagas para todos os formandos), e insistir na educação médica continuada.

À imprensa resta acompanhar com rigor esse assunto, não apenas com matérias, mas com editoriais, análises, entrevistas com peritos e alunos, assim como com a sociedade e pacientes – talvez por aí se convença os deputados a aprovar novas leis nesse sentido, pois o ganho não é pessoal, e sim, da totalidade da população.

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Médico, mestre em neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do Cremesp, São Paulo, SP