Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Falta água; sobra despreparo na cobertura

De repente, 200 mil pessoas ficam sem água. Duas cidades sem abastecimento por mais de 50 horas. O fato – um escândalo dado o caráter essencial do serviço – foi muito mal-tratado pelos principais jornais catarinenses na última semana de abril.

Por causa da estiagem, o nível de salinidade do rio Itajaí-Mirim subiu a patamares muito superiores aos permitidos pela lei. Resultado: o próprio Serviço Municipal de Água, Saneamento Básico e Infra-Estrutura (Semasa) interrompeu o fornecimento às cidades, afetando tarefas cotidianas na alimentação, na limpeza e até mesmo na higiene pessoal. O caso foi tão sério que, no domingo (23/04), às 5 horas, o Semasa deixou de abastecer as cidades, e no dia seguinte, os prefeitos decretaram situação de emergência.

A situação caótica que se viu pelas cidades não chamou tanto a atenção das redações que cochilaram. De um modo geral, os três principais jornais do estado – A Notícia, Jornal de Santa Catarina e Diário Catarinense – trataram o fato superficialmente nos dias que se seguiram ao corte de abastecimento. Mais concentrado na região do Vale do Itajaí, o Santa foi um pouco além dos demais, mas muitas vezes seu noticiário ficou só nas fontes oficiais. Com pouca explicação para o leitor e quase nenhum questionamento mais crítico do caso, os jornais catarinenses perderam uma excelente oportunidade de prestar um serviço não apenas de informação, mas de orientação ao leitor.

Santa demora, mas cobre

‘Torneiras secam para 200 mil pessoas’. Essa foi a manchete do Jornal de Santa Catarina no dia 24, o dia seguinte ao corte. A matéria de Luciana Zonta sobre a paralisação do abastecimento de água em Itajaí e Navegantes veio na editoria Geral. No texto, as informações fornecidas foram as mesmas anunciadas oficialmente pelo Semasa, o órgão municipal que cuida da área. Os dados eram a base de um curto comunicado distribuído às 21 horas do domingo. O único ponto de discordância entre o jornal e o anúncio era o percentual da cidade sem o serviço. Para o Santa ‘95% de Itajaí estavam sem água’, 5 pontos percentuais a mais que o número oficial.

Ainda de acordo com a matéria do jornal, o prefeito de Itajaí Volnei Morastoni deveria decretar estado de emergência ainda na segunda-feira, mas em nenhum momento a reportagem foi além do lado oficial. Faltou explicação também. O Santa não traduziu para o leitor o que vem a ser a tal ‘cunha salina’ (um sistema de correntes marítimas) que teria influenciado na qualidade da água. Por que tantos erros numa cobertura como aquela? Não houve tempo para a apuração? Ninguém tentou saber como a população estava fazendo sem água o domingo inteiro?

Na terça, 25, o Jornal de Santa Catarina correu atrás da história. Além da capa, as páginas 14 e 15 contaram com fotos expressivas sobre ‘O drama da sede em frente ao mar’. Desta vez, a reportagem trouxe depoimentos de moradores, mostrou como andava o abastecimento em unidades de saúde e veio com um box sobre qual seria a saída mais rápida para a situação.

Na quarta, 26/04, a perspectiva de normalização do fornecimento de água veio com o represamento da entrada de sal pelo rio Canhanduba que serve a região. A reportagem de Luciana Zonta e Ricardo Ruas contou com o box ‘Engolir água salgada faz mal?’.

Na quinta, 27, o Jornal de Santa Catarina fez novo rescaldo sobre o caso. A matéria ‘Água volta mas com sal ainda’ trouxe as medidas que foram adotadas para tentar normalizar o abastecimento. No texto, informações sobre estudos para a construção de uma barragem fixa no rio Canhanduba.

Numa análise rápida, o leitor percebe que a cobertura do Santa se corrigiu ao longo da semana. Começou tímida, atrelada ainda às vozes oficiais, sem ouvir a população, como se não desse muita atenção ao ocorrido. Nos dias seguintes, houve uma recuperação dos fatos, mas aí a população já estava sem água e sem informação. O Jornal de Santa Catarina já foi mais ágil em situações de emergência. A cobertura das cheias em Blumenau em outubro de 2001 foi um trabalho elogiável.

Relatos burocráticos no DC e AN

O Diário Catarinense do dia 24 reproduziu matéria semelhante ao Santa na mesma data, mas o título foi o que mais chamou a atenção: ‘Sal deixa 200 mil sem água’. Tradução: o agente causador do problema era o sal. Ora, é o mesmo que dizer: Caminhão atropela estudante. Quem causou o acidente não foi o veículo, mas quem o dirigia… No mesmo dia, A Notícia trouxe uma nota sobre o fato, nada mais que isso.

Na terça, 25, o DC voltou a usar os serviços da Agência RBS, reproduzindo o material que saíra no Santa, mas mais curto. A Notícia despertou para a pauta e fez dela a sua manchete.

Na quarta, 26, a cobertura do Diário e de AN continuou burocrática com o foco sobre as providências tomadas pelas autoridades. O DC trouxe a barragem do rio Canhanduba como foto-legenda na capa. A Notícia estampou o fato numa chamada de capa e matéria sem fotos.

Na quinta, 27, a matéria do Diário Catarinense enfatizou quanto custaria a construção da barragem, reproduzindo o material do Santa com algumas diferenças. A Notícia publicou uma nota a respeito do assunto.

Diferente de outras ocasiões – como o apagão em Florianópolis em novembro de 2003 e a fúria do Catarina em março de 2004 –, os dois maiores jornais do estado não deram a atenção devida ao caos sem água de Itajaí. Por quê? Falta se sensibilidade jornalística? Despreparo dos profissionais? Problemas de ordem técnica? Editores e repórteres precisam pensar nisso.

Diarinho fez melhor

Já que a falta de água atingiu diretamente as cidades de Itajaí e Navegantes, o MONITOR DE MÍDIA analisou juntamente com os três principais jornais catarinenses, o Diário do Litoral, o popular Diarinho. Já no dia 18 – portanto cinco dias antes do corte! -, o jornal destacava o assunto com a manchete ‘Água tá uma baita salmoura em Itajaí’. O esperado alarde na capa não se traduz no interior da edição: na página 10, uma curta matéria sobre a alta salinidade da água e a estiagem. Tudo baseado num comunicado do próprio Semasa.

O mesmo ocorreu no dia 24/4. Desta vez, apenas o primeiro parágrafo da matéria ‘Semasa tranca ETA para evitar a entrada do sal’, não foi retirado do anúncio oficial. Apesar da ‘colagem’, o Diarinho apresentou no dia seguinte uma página inteira sobre o tema, enfocando a situação dos moradores atingidos pela falta de água, sem se conformar com as informações oficiais.

Nos dias 26 e 27, com as respectivas chamadas ‘Água volta ao normal aos pouquinhos’ e ‘Salmoura já diminui na água de Itajaí e Navegantes’, o jornal trouxe diversas informações sobre a atual situação do abastecimento na cidade. Foram publicadas matérias sobre as medidas tomadas pela prefeitura e Semasa. O Diarinho trouxe em todas as suas matérias informações essenciais sobre a salinidade da água e mudanças nos níveis de concentração. Porém, o jornal, que adota uma linguagem pra lá de popular, citou em suas reportagens o termo ‘cunha salina’, sem explicar para os seus leitores o significado da expressão.

Rapidinha

Foram apenas 15 minutos, mas a passagem de Lula por Chapecó no dia 19/4 mobilizou o Oeste e também os jornais catarinenses.

Nas edições que antecederam o dia, o Jornal de Santa Catarina preparou o leitor para a visita do presidente. Nas matérias, tratou da chegada de Lula e o que pretendiam os políticos, líderes sindicais, índios e militantes que o aguardavam. No dia seguinte, AN e DC trouxeram chamadas de capa com fotos: ‘De passagem por SC’ e ‘Os 15 minutos de Lula em Chapecó’, respectivamente. As matérias abordaram as reivindicações ao presidente e destacaram o pedido de instalação de uma universidade federal no oeste do estado. No mesmo dia, Santa e DC trouxeram matérias com conteúdos iguais, incluindo o título ‘Oeste pede universidade federal a Lula’. Ambos da Agência RBS.

O papa ainda é pop
Mesmo não sendo tão midiático quanto João Paulo II, Joseph Ratzinger teve espaço considerável nas páginas dos jornais catarinenses no dia 19/04, quando completou um ano à frente da Igreja Católica.

Com a chamada de capa ‘Papa mantém as posições de João Paulo II’, o Diário Catarinense apresentou em ‘Reportagem Especial’ de 2 páginas (4 e 5) a trajetória e as características do primeiro ano de papado de Bento XVI. Além de box citando seus principais feitos e descrevendo a agenda do Papa em 2007, o jornal trouxe também uma entrevista com um dos mais respeitados teólogos leigos brasileiros, Paulo Fernando Carneiro de Andrade. O DC veio ainda com as matérias ‘Pontífice misterioso’, ‘Conservadorismo se mantém’, ‘Sob a sombra de João Paulo II’ e ‘Bento, o discreto’.

Também com destaque, o jornal A Notícia trouxe o assunto na página A4 (EM DESTAQUE – IGREJA), indicado pela chamada de capa com foto ‘Um ano de Bento 16’. Não distante da matéria do DC, a reportagem descreveu o perfil do papa e a trajetória do papado com os principais acontecimentos. Na mesma página, trouxe notas menores: ‘Mudança de estilo é destacada por bispos de SC’, ‘Cidade do papa vive entre a fé e o dinheiro’ e a opinativa ‘Menos ortodoxia, mais pragmatismo’ de Vandré Kramer, editor de Economia do jornal. No dia 22/4, o jornal apresentou o editorial ‘Um ano de papado’, expondo que o papa alemão tem se preocupado mais com os assuntos internos da Igreja Católica do que com questões internacionais.

Não seguindo a mesma linha dos outros, o Jornal de Santa Catarina trouxe apenas uma pequena foto-legenda na página 3, com o título ‘Papado de Bento XVI completa um ano’, lembrando a data.

Contrastes no 19 de abril
O Jornal de Santa Catarina lembrou os homenageados do 19 de abril. A edição deste dia trouxe foto de destaque na capa ‘História oral preservada’. Na seção Opinião, a funcionária pública Maria Nunc-Nfooro Nascimento defendeu, em carta, a questão dos índios nas ‘terras estranhas’. Na mesma editoria, o artigo ‘Índios com Energia’ tratou da chegada do Projeto Luz às reservas indígenas. Dentro da editoria Geral, com a campanha do ‘Educar é tudo’, a matéria ‘Me a Vanhlán Jô Te Lónh’ mostrou como as crianças indígenas preservam a cultura xokleng na escola. Comparado com outros jornais, pouco material foi apresentado.

Na mesma data, o Diário Catarinense trouxe na editoria Geral: ‘Sem cocar, mas com telefone e rádio, índio quer identidade’. A matéria tratou da busca e resgate da identidade do índio, que encontra dificuldades por conta da falta de espaço físico e da proximidade com os centros urbanos. Um erro em uma frase na matéria dizia: (…) ‘dificuldades de realizar rituais e danças pela falta de espaço, poucas terras improdutivas’, quando na verdade deveria ser: poucas terras demarcadas, essa a verdadeira dificuldade dos índios.

No dia seguinte, a edição apresentou o artigo ‘Dia do índio?’ e no caderno Geral abordou somente a manifestação guarani que bloqueou trecho de estrada em Biguaçu: ‘Índios fecham BR-101 com a ajuda do MST’.

A Notícia trouxe neste 19 de abril, acompanhada de foto, a chamada de capa: ‘Vida de contrastes para os índios de SC no século 21’. O assunto apareceu em charge e em um artigo na seção de opinião. Na editoria Estado, várias matérias ocuparam uma página inteira. Abordavam os contrastes do cotidiano dos povos indígenas: os esforços para a educação, a luta pela demarcação e ampliação das reservas, a miséria e a fome de outros e a falta de estrutura de subsistência. O jornal divulgou ainda a 6ª Semana Cultural Indígena, ocorrida em Chapecó. Ainda nesta edição, uma matéria intitulada ‘Cerâmica achada em São Bento é indígena’ fazia alusão à quantidade de peças em cerâmica encontradas na região, comprovadamente pertencentes a ancestrais indígenas.

No dia seguinte, uma chamada de capa junto à foto trouxe: ‘Protesto bloqueia trânsito na BR-101’. A matéria na editoria Geral, tratou da manifestação indígena, por conta da demora na demarcação das terras indígenas em Santa Catarina.

De maneira geral, os jornais ainda estão desatentos em relação às questões indígenas. Os jornais do sul, já que a imprensa do norte do Brasil convive com pautas mais freqüentes sobre os conflitos por terra. O leitor mais atento deve ter sentido a mudança de orientação dos jornais de um dia para o outro. As homenagens e a revisão da situação dos índios do dia 19 deram lugar a um tratamento ordinário, que transforma os manifestantes em rebeldes, em desordeiros. Coisas da vida. Até mesmo da vida dos índios.

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