Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O fim de um reinado

‘O carlismo está em queda na Bahia, mas não por causa do trabalho da oposição, que sempre foi incompetente.’ Esta é apenas uma das polêmicas opiniões proferidas pelo jornalista baiano João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, em entrevista para Agência Baiana de Notícias (Aban). Ele falou sobre seus projetos para o futuro, eleições municipais, Conselho Federal de Jornalismo e a polêmica causada pelo seu livro Memória das Trevas, lançado em 2001.

Apontado como o único jornalista que ousou reagir à repressão política do senador Antônio Carlos Magalhães no período da ditadura militar, Joca mostra que não é um ‘criador de caso’, como a mídia tentou rotulá-lo. Apaixonado pela poesia e pela música clássica, vive entre os livros, quase 1.000 CDs e alguns discos de vinil considerados relíquias, como um concerto em homenagem à queda do Muro de Berlim.

Joca iniciou sua carreira no extinto Jornal da Bahia, em 1958, por influência do amigo Glauber Rocha. Estudioso de Camões e Adolf Hitler (‘para entender um pouco da maldade humana’), é da Academia de Letras da Bahia. Além de Memória das trevas, é autor de Glauber, esse vulcão, biografia de Glauber Rocha, Gregório de Mattos, o boca de brasa, Camões contestador e outros ensaios. Também escreveu três livros de poesia, A esfinge contemplada, O domador de gafanhotos e Ciclo imaginário.

Morando novamente em Salvador, João Carlos está com 68 anos e escreve artigos para o jornal A Tarde. Atualmente, aguarda a publicação do seu livro Assassinos da liberdade e está escrevendo outro livro de poesia.

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O PFL, ao que tudo indica, vai perder as eleições em Salvador. O carlismo está em queda?

João Carlos Teixeira Gomes – Eu acredito que sim por um fenômeno biológico da natureza, não por ação da oposição da Bahia, que sempre foi incompetente. O Antônio Carlos Magalhães é um homem velho que teve uma lesão gravíssima no coração. Há rumores de que ele tem outras doenças, portanto, o reinado dele deve estar chegando ao fim por força da própria natureza. Indiscutivelmente, ele reinou na Bahia da forma como bem entendeu pela incompetência política dos seus adversários. Eu avalio que ele, desaparecendo da cena política baiana, não deixará herdeiros. Ele sempre foi um homem muito personalista, odiado e temido. Então, não creio que ele tenha a capacidade de passar o legado político para qualquer descendente ou outro político que hoje integra o quadro do carlismo na Bahia. Quando ele morrer ou desaparecer da cena política, eu acredito que vai haver uma grande fragmentação do carlismo, com uma grande disputa interna pelo poder. Não acredito que ele deixe, por exemplo, o legado político para o neto, em quem eu não vejo nenhum brilho político na vocação. Embora Antônio Carlos nunca tivesse sido um político brilhante e sim truculento. O sucesso dele se deveu, sobretudo, ao golpe de 64 que o guindou prefeito e a partir de cuja posição ele construiu uma carreira política com base na intimidação, no suborno e nas ameaças.

Como o senhor avalia a cobertura da imprensa baiana às eleições de 2004?

J.C. – Confesso que, diante das últimas decepções com o PT e com o presidente Lula, eu não venho acompanhando sistematicamente esse período eleitoral na Bahia. Tomei uma aversão aos políticos de um modo geral. Durante toda a minha vida, a minha consciência política exigia que eu fosse um homem extremamente participante. Porém, o quadro político brasileiro, no momento, não me estimula a ser participativo. Eu resolvi assumir uma atitude de extrema reserva.

Como o senhor analisa o cenário da imprensa baiana hoje?

J.C. – Houve uma progressiva queda na qualidade da imprensa brasileira ao longo dos anos. Não diria apenas da imprensa baiana, em cujo âmbito A Tarde continua sendo o jornal mais importante. No decorrer do tempo aconteceu um fenômeno curioso. Os proprietários de jornais, dos meios televisivos e radiofônicos começaram a diversificar muito as suas atividades. Teve uma época, por exemplo, em que a Veja investia em turismo. Ligavam os interesses das empresas jornalísticas aos interesses das suas outras empresas. Ora, a imprensa brasileira sempre foi dependente do poder e com essa multiplicidade de interesses dos donos de jornais, rádios e televisões, isso se ampliou ainda mais. A dependência ao poder se acentuou. Não podemos esquecer do episódio triste de todo o prolongamento da ditadura, quando a Rede Globo era instrumento servil dos militares. A imprensa brasileira, de um modo geral, sempre foi muito limitada na capacidade de denunciar, tomar iniciativa. Collor, por exemplo, só caiu por causa da denúncia do irmão dele. Não foi uma investigação de modo próprio da imprensa brasileira que levou Collor ao declínio.

Qual a sua opinião sobre a criação do Conselho Federal de Jornalismo?

J.C. – Isso é um absurdo, uma ignomínia. O oxigênio da imprensa é a liberdade plena. Não há possibilidade de se restringir, a não ser com prejuízo da imprensa e com beneficio dos setores interessados em manipular a informação e ocultar a divulgação dos fatos. A imprensa tem que ser livre, não pode sofrer restrições de nenhuma natureza, embora sabemos que, muitas vezes, ela é injusta. Como jornalista ficamos indignados quando lemos certas matérias mentirosas, tendenciosas, que buscam deformar a opinião pública e não informar corretamente. É preferível que isso ocorra, para que possamos ter uma idéia da realidade pelo confronto do noticiário, do que cedermos à idéia de que um órgão externo, ligado a governo, qualquer que seja, tenha o direito de orientar, fiscalizar e disciplinar. A imprensa não quer disciplina. Pela natureza da profissão, ela precisa ser liberta de todas as teias, de todas as conveniências. Não se pode cercear a liberdade de imprensa. A indisciplina do jornalista só deve ser contida pela lei e a lei não pode ser manipulada pelo governo.

Fernando Morais está escrevendo a biografia de Antônio Carlos Magalhães. Que tipo de trabalho o senhor acha que ele fará?

J.C. – Eu tenho o maior respeito pelo pesquisador Fernando Morais. Há cerca de dois anos ele telefonou para meu amigo João Ubaldo Ribeiro e pediu o meu telefone. Queria, portanto, me entrevistar, mas não me telefonou até hoje. Recentemente, eu tive uma informação extra-oficial de que ele quer telefonar para mim. Fico muito satisfeito com essa expectativa, não porque me considere um autor insubstituível em relação às informações carlistas. Embora eu ache que não se pode escrever sobre ACM sem ler meu livro e me entrevistar. Tenho uma admiração muito grande por Morais e estou convencido de que ele não fará um livro sério, definitivo, uma biografia de Antônio Carlos que seja respeitada, se ele não trocar comigo algumas impressões.

Hoje, depois de três anos do lançamento, como o senhor avalia a repercussão causada pelo lançamento do livro Memória das trevas?

J.C. – É muito fácil explicar. Nunca se havia escrito antes sobre Antônio Carlos Magalhães, sobre o carlismo, em plano nacional. Então, o livro provocou um interesse muito grande porque havia uma idéia genérica de que escrever um livro denunciando as arbitrariedades cometidas por ACM seria uma temeridade, colocaria eventualmente o seu autor em risco de vida. Quando o livro surgiu, com uma capa bem elaborada, um título chamativo, provocou um impacto em todo país. Eu posso dizer isso porque eu estava morando no Rio de Janeiro. Na época, recebi muitos telefonemas, inclusive me desloquei para fazer conferências em cidades do interior. Havia uma expectativa muito grande provocada também naquele momento, que foi uma circunstância positiva para o Rio, a briga de Antônio Carlos com o Jader Barbalho, no Senado.

O livro estava pronto há dois anos sem conseguir editor e o acirramento dessa briga, que estava na imprensa diariamente, provocou o interesse do meu editor, pelo menos naquele momento, porque eu estava com o livro há oito meses na mão sem uma definição. O resultado é que uma série de fatores se conjugou para beneficiar o interesse do público pelo livro: a briga de ACM com Jader no Senado, a longa tradição de truculência que ele tinha construído no Brasil, de um poder sem limites, a capacidade de intimidar todos os políticos que conviveram com ele. O livro está fundamentado em fatos, em farta documentação e, apesar de ser extenso, provocou um interesse natural. Muita gente, na verdade, queria ler um livro pensando que era uma associação de denúncia e escândalo, o que deve ter frustrado muitos leitores.

E falando nisso, como o senhor avalia as críticas de que o livro não trouxe nada de novo?

J.C. – Eu acho isso muito engraçado porque essa argumentação é tipicamente dos carlistas. Não tem nada de novo sobre Hitler, Mussolini, Nero, sobre os grandes ditadores da história e, no entanto, não cessa de aparecer livros que insistem nesses pontos essenciais e qualquer coisa que se escreva sobre essas figuras. O que queriam? Que eu inventasse coisas? O livro, na verdade, é uma codificação de fatos que já eram conhecidos e uma reunião de muitos elementos novos. Tem detalhes da briga de ACM com o Jornal da Bahia que ninguém conhecia no Brasil e até mesmo na própria Bahia. Muitos não conheciam a intimidade da resistência do Jornal da Bahia. Então, esse é um argumento tendencioso, mentiroso, esgrimido pelos amigos de Antônio Carlos, inclusive manipulado por ele, para esvaziar a importância do livro. O livro trata de fatos conhecidos e de fatos desconhecidos, um setor completa o outro e pinta o quadro das truculências de Antônio Carlos na Bahia. Muitas denúncias que estão no livro eu já tinha feito através da minha atividade de jornalista. Fui perseguido por ele inclusive com um tribunal militar, em que o derrotei em plena ditadura de Médici, em 72, um ano crucial da ditadura no Brasil, em que os jornalistas condenados morriam nas prisões torturados. Quem é que sabia do meu julgamento? Quem tinha conhecimento da defesa feita por Eliano Fragoso? O livro é recheado de documentos insólitos, de novidades. A essência do livro ninguém conhecia.

Como a imprensa brasileira reagiu ao lançamento do livro?

J.C. – De uma forma lamentável. A primeira notícia que eu vi sobre o livro foi na Folha de S. Paulo e o título era o seguinte: ‘Desafeto lança livro contra ACM.’ Ora, não era um desafeto de ACM, era um jornalista, com uma rica experiência de confronto com um tirano, que estava narrando isso em um livro raro, até então inédito. A imprensa sabotou sistematicamente o meu livro de um modo geral, mas muitos colunistas deram informações. O Observatório da Imprensa, de Alberto Dines, foi o único programa de televisão que fez comigo uma entrevista profunda, em plano nacional. Eu fui muito entrevistado em canais particulares em São Paulo, mas os grandes âncoras da televisão brasileira, o Jô Soares, o Boris Casoy e a Marília Gabriela, omitiram o meu livro. O que jornalisticamente era uma coisa incompreensível pela figura do retratado e pela coragem de publicar um livro dessa natureza.

A imprensa brasileira foi de uma covardia lastimável porque Antônio Carlos, durante todo o tempo em que desenvolveu a sua ação política, pressionou os jornalistas, intimidou as empresas, usou recursos oficiais para envolver a imprensa brasileira. Essa é a verdade dos fatos. Sabemos que ele fazia favores a jornalistas importantes, tudo isso é muito conhecido. Isso influenciou para a retração covarde da imprensa brasileira. Com exceção de alguns jornais, como a Tribuna da Imprensa, do Rio, e o Estado de Minas, de Belo Horizonte, a imprensa se comportou de um modo covarde, certamente com medo das represálias do então presidente do Senado. Para lançar meu livro na Bahia foi extremamente difícil. Estava tudo pronto para ser na livraria Siciliano, do Iguatemi, quando veio uma ordem de São Paulo proibindo o lançamento. Fiz o lançamento na raça, levando um cartaz para dentro do shopping dizendo: ‘A Bahia continua sob a ditadura. O lançamento do meu livro foi proibido neste shopping’. Abri o cartaz e publiquei o livro contra a ordem.

Quais são seus projetos para o futuro?

J.C. – Eu estou com um romance pronto que também é uma denúncia da opressão. Chama-se Assassinos da liberdade. Não consegui publicar ainda porque é muito difícil editar no Brasil. Estou com um livro de poemas, o Lavrador onírico. É uma fatalidade da minha construção ser poeta. Não sei se sou bom ou mau poeta. Sou poeta. Sinto dentro de mim não o borbulhar do gênio, como Castro Alves, de quem eu gostaria muito de me aproximar, mas sinto uma inquietação política dentro de mim. Me comove muito a beleza da vida, a beleza das mulheres, a beleza da amizade. Então eu escrevo poesias, é uma fatalidade, desde a adolescência. Também pretendo reunir alguns artigos políticos em um livro.

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Aluna do 4º semestre de Jornalismo da Faculdade Social da Bahia; estagiária da Agência Baiana de Notícias