Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O ordenamento das profissões é irreversível

O jornalista, atualmente, não é convidado a trabalhar. É convidado a participar de uma fraude fiscal. ‘Procure fulano, que vende nota’. ‘Sicrano é PJ’. E já aparecem cooperativas de trabalho fraudulentas no setor de comunicação. O problema da categoria dos jornalistas hoje é a precarização constante. A prática se espalhou no mercado. É interessante os grandes grupos de comunicação discutirem medidas contra a corrupção, a responsabilidade social etc. e manterem práticas como essas, abertamente.

Vejo colegas que não recolhem à Previdência há anos. Alguns já enfrentam problemas para se aposentar e penam justamente em momentos difíceis. Parece que jornalista é diferente das demais categorias, não precisa mais discutir relações de trabalho. Os sindicatos pecaram muito. Deixei de ser sindicalizado quando o sindicato de São Paulo quis obrigar os filiados a contratarem, compulsoriamente, um plano de saúde.

Do ponto de vista jurídico, a ação do Ministério Público Federal contraria todo o ordenamento legal do exercício das profissões no país. Não se trata de discutir se é ou não corporativismo. Ocorre que, praticamente, todas as profissões do país têm legislação específica. Não apenas aquelas que envolvem a segurança, o patrimônio ou a saúde. Corretor de imóveis e de seguros, biblioteconomia, economia, administração de empresas, técnico de segurança (2° grau) etc. No âmbito do sistema Crea (engenharia e arquitetura), estão abrigados profissionais de nível superior e de 2° grau.

Mais: para exercer qualquer profissão, além dos requisitos, há um órgão fiscalizador (conselho), que pode cobrar multas, tanto dos profissionais como das empresas. Os conflitos e as zonas cinzentas são inúmeros (químicos vs. engenheiros-químicos; agrônomos vs. químicos; engenheiros vs. arquitetos etc.).

A questão dos RPs

Se esse sistema é bom ou não, se é herdado de outros países, corporativista ou não, é o que vigora legalmente. No Estado Democrático de Direito, cumpre-se a lei. Os descontentes podem apresentar propostas de alteração e votação das leis. Chegaram a dizer que o novo Código Civil tem influência fascista. Acusam alguns que foi redigido no regime militar, por uma comissão de juristas indicados, e ficou engavetado por mais de 20 anos. Foi aprovado – sem discussão por parte da mídia, que não acompanhou – e está aí. Bom ou mau, é a lei que rege relações contratuais, família, herança, empresas etc.

Até pouco tempo atrás, as academias de ginástica não precisavam contratar profissionais formados em educação física. Padre Marcelo disse em entrevista que, antes de ser padre, fez treinamento de duas semanas e já estava ‘apto’ a ministrar exercícios numa academia. E lembrou os riscos desse despreparo, pois não era pedido nenhum exame médico.

Voltando ao jornalismo, se vigorasse a decisão de 1ª instância, legalmente, os profissionais formados em Jornalismo poderiam ter problemas para exercer funções de assessoria de imprensa (que não constam expressamente da regulamentação dos jornalistas). Poderiam, em tese, ser autuados pelos conselhos de Relações Públicas – cuja legislação ‘reserva’ o mercado de RP aos profissionais formados em RP. Corporativismo? Absurdo? É o que diz a lei… Isso já ocorreu com uma colega que, contratada por uma prefeitura para ser assessora de imprensa, enfrentou processo do Conselho Regional de Relações Públicas.

Até o sommelier

Mais: os jornalistas formados que fossem substituídos por não-formados não teriam a opção de exercer outra profissão. Porque para exercer qualquer outra profissão precisariam de algum pré-requisito: diploma, registro em conselho, exame de habilitação. Seriam transformados em párias do sistema profissional brasileiro.

O ímpeto para regulamentar todas as atividades é tal no Brasil que até a profissão de flanelinha está parcialmente regulamentada. Moradores de um bairro de São Paulo pediram à delegacia do bairro para coibir a atuação deles numa praça. O delegado fez amplo estudo e localizou três leis que, em tese, autorizariam indivíduos a exercer tal atividade…

Outra profissão em vias de regulamentação: a do sommelier, profissional que, nos restaurantes, orienta o cliente na escolha do vinho adequado para acompanhar a refeição. Já passou por várias comissões do Congresso um projeto de lei que regulamenta esta profissão. Para exercê-la, em breve poderá ser exigido um curso específico. Qual seria o interesse social deste projeto? Evitar ressaca? Irrelevante? Elitista? O fato é que o projeto está tramitando, com pareceres favoráveis das comissões pelas quais passou até agora.

Cabe aprofundar

Último exemplo: há cerca de 15 anos o MEC começou a exigir mestrado dos professores de faculdade. Desembargadores, com mais de 30 anos de magistratura, foram obrigados a voltar às salas de aulas, humildemente, para se qualificar e continuar dando aulas. Por uma exigência legal. Muitos diziam que aquelas aulas pouco acrescentavam, reclamavam… mas tiveram de fazer. A lei visava a qualificação dos docentes em geral, e não poderia abrir exceções.

Essa questão, do ordenamento legal das profissões, foi esquecida nas discussões. Se o nobre procurador quisesse se insurgir contra a questão da falta de liberdade de imprensa, não faltam indícios de descumprimento de dispositivos constitucionais (concentração, monopólio, participação/dependência dos meios de comunicação de empresas de telecom etc.).

Vencida a questão, por decisão unânime, cabe aprofundar, ouso sugerir. Cansei de ser chefiado por economistas, advogados e outros que não tinham noção alguma de jornalismo. Cansei de ver meus direitos autorais serem subtraídos. Porque contraí tendinite, miopia galopante, colesterol alto em função da profissão de que gosto.

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Jornalista, editor do Expresso da Notícia