Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

O STF e o debate abortado pelos jornalistas

Nem mesmo com as comemorações do Dia Nacional do Jornalista, celebrado em 7 de abril, a sociedade brasileira foi lembrada neste ano sobre a questão da obrigatoriedade da formação superior específica em jornalismo para o exercício dessa profissão. Se depender da vontade da maioria dos contrários e dos favoráveis a essa obrigatoriedade, nenhuma discussão pública será realizada sobre esse tema, que aguarda julgamento de mérito pelo Supremo Tribunal Federal.


Apesar não existir em nenhum país em que o jornalismo tem efetiva importância para a cidadania, no Brasil a exigência do diploma foi estabelecida por meio do decreto-lei 972/1969, mas encontra-se suspensa desde 16 de novembro de 2006 por uma liminar do Supremo Tribunal Federal. Concedida pelo ministro Gilmar Mendes, a liminar teve, cinco dias depois, endosso unânime pela Segunda Turma do STF.


Do lado dos principais defensores desse decreto-lei, a Fenaj (Federação Nacional de Jornalistas) e os sindicatos a ela associados optaram não só pelo silêncio, mas também pela desinformação, a começar pela omissão da concessão da liminar do STF nas páginas de seus websites destinadas a informar sobre o andamento da questão na Justiça. Até o fechamento deste artigo, a Fenaj e os sindicatos paulista e o do município do Rio de Janeiro ressaltavam em seus websites o acórdão de 26 de outubro de 2005 da Quarta Turma do Tribunal Federal Regional da 3ª Região (TRF-3), em São Paulo, que foi favorável aos termos do citado decreto-lei.


Nenhuma menção, nessas páginas sindicais de ‘esclarecimento’, sobre andamentos posteriores ao acórdão, como o recurso extraordinário da Procuradoria Regional da República (7/3/2006) e seu acolhimento pelo vice-presidente do TRF-3 (19/6/2006), nem sobre a ação cautelar do Procurador Geral da República (11/10/2006), muito menos sobre a portaria nº 22, de 22/1/2007, do Ministério do Trabalho e do Emprego, que determina ‘às Delegacias Regionais do Trabalho que procedam à suspensão da fiscalização do cumprimento da exigência de diploma de jornalista, referente ao respectivo registro profissional’.


Desinformação e esvaziamento


Mesmo quando esse tema vem momentaneamente à tona por força dos acontecimentos no Judiciário ou no Legislativo, a maior parte dos representantes de ambos os pólos antagônicos tem renunciado ao debate. Como é de se esperar em relação a qualquer assunto polêmico – com o duplo agravante de envolver interesses de classe e da mídia –, a interlocução entre os contrários é praticamente inexistente, as opiniões conflitantes não são confrontadas e cada um dos lados conversa consigo mesmo, com os parceiros de convicção confirmando uns aos outros.


O melhores exemplos desse esvaziamento foram os projetos de lei de criação do CFJ (Conselho Federal de Jornalismo), de autoria do Executivo mas proposto pela Fenaj, e de regulamentação de funções jornalísticas – do ex-deputado Pastor Amarildo, do Tocantins, inicialmente do PSB e posteriormente do PSC, apontado pela CPI da máfia dos sanguessugas e felizmente não reeleito. As duas proposições foram engendradas na surdina pelos sindicalistas e abortadas sem discussão no Legislativo por pressão dos veículos de comunicação (ver, neste Observatório, ‘O cavalo de Tróia e o rolo compressor‘ (9/9/2004) e ‘Como a Fenaj esvaziou o debate sobre o CFJ‘ (28/9/2004).


Tanto por parte de sindicalistas e da maioria dos professores de jornalismo, que elaboram suas propostas em ambientes domesticados e imunes ao questionamento – em que opositores ilustres são convidados a fazer depoimentos perante uma platéia fechada em torno de uma só posição –, como por parte da maioria dos empresários da comunicação e também – não necessariamente subordinados aos donos da mídia – articulistas e colunistas, que em nome da liberdade de expressão acabam promovendo amplas campanhas de massacre dos seus oponentes, o que prevalece é a guerra da desinformação, e muitas vezes com uma grande dose de cinismo.


Selvageria e hostilidade


Do lado favorável à exigência do diploma, é o cinismo daqueles que, diante da enorme desproporção entre a oferta de empregos e a procura de profissionais, causada pela proliferação desenfreada de cursos superiores de jornalismo no Brasil, agem como se ela não fosse estimulada pela obrigatoriedade; daqueles que evocam a formação superior específica como caminho para assegurar a correção ética e a capacitação técnica, mas fazem vista grossa ao crescente despreparo da massa de graduados despejada anualmente no mercado; e daqueles que cientes da ignorância sobre a regulamentação profissional em outros países – predominante entre os graduados nestes 38 anos de vigência do decreto-lei –, agem como se o ensino de jornalismo não tivesse responsabilidade nenhuma sobre isso.


Do lado contrário ao decreto-lei, é o cinismo daqueles que bradam contra o desrespeito dos sindicalistas pelo debate, mas silenciam quando a discussão que ameaçava começar é sumariamente abortada; daqueles que, nos momentos em que o tema da regulamentação profissional vem à tona, aparecem para exibir suas performances argumentativas ao gosto dos patrões, e saem de cena quando a crise acaba, guardando-se como munição para futuras demandas; daqueles que vêem qualquer proposta de regulamentação como atentado contra a liberdade de expressão, mas fazem vista grossa ao sonho de desregulamentação geral por parte dos donos do capital.


Entretanto, também de ambos os lados dessa polêmica, existe uma minoria capaz de abordar o tema com respeito às opiniões contrárias, com disposição para uma efetiva interlocução e com discernimento para buscar uma saída que atenda ao interesse público. Mas, a cada dia que passa, cresce entre esses remanescentes de civilidade o desânimo e a falta de estômago para suportar o antiintelectualismo, a selvageria e a hostilidade das duas ‘torcidas organizadas’ que se instalam em praticamente todas as tentativas de discussão.


O assunto tornou-se, portanto, um vespeiro. Não é de se estranhar que não tenha sido citado nem mesmo en passant entre os temas arrolados no relatório ‘Mídia e Políticas Públicas de Comunicação‘, da Andi (Agência Nacional dos Direitos da Infância), baseado no acompanhamento de 1.184 matérias no período de 2003 a 2005, publicadas em 53 jornais de todos os 23 estados brasileiros e de quatro revistas semanais, que procurou avaliar como se comportam esses veículos ‘quando os temas em destaque em suas páginas remetem a questões referentes ao próprio universo das comunicações’.


Trâmite na Justiça


Nada disso vai mudar sem que seja forçado um novo marco regulatório. Nada disso vai mudar se for mantida a obrigatoriedade do diploma e o esdrúxulo modelo de registro vigente, na esfera do Estado, nos moldes do decreto-lei 972, de 1969. É preciso atender ao pedido da ação civil pública de 2001, do procurador da República André de Carvalho Ramos: eliminar não só a obrigatoriedade, mas derrubar por completo esse dispositivo cujo texto não teve amparo em nenhuma lei e em nenhuma constituição, mas somente no AI-5 e no AI-16.


Ciente da gravidade dos termos dessa ação civil pública, a juíza Carla Abrantkoski Rister, da 16ª Vara Cível Federal de São Paulo, assegurou os direitos envolvidos, mas preferiu não interferir além do necessário na legislação existente, uma vez que havia matéria constitucional a ser apreciada pelo STF. Por essa razão, tanto em sua liminar de outubro de 2001, como em sua sentença de janeiro de 2003, a juíza suspendeu a obrigatoriedade do diploma sem eliminar o registro nas DRTs, e teve a decência de submeter de ofício sua própria decisão à instância superior.


Em seu acórdão de 2005, os desembargadores do TRF-3 desconsideraram solenemente, sem qualquer comentário, manifestações jurídicas contrárias à exigência do diploma feitas por importantes mestres do Direito Administrativo Público, como Geraldo Ataliba, que foram citadas na sentença de Primeira Instância. Desconsideraram também o vexame passado em 1985 pela Justiça da Costa Rica, que foi obrigada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos a abolir sua lei que condicionava o exercício da profissão à formação superior específica. E desconsideraram a regulamentação profissional nos Estados Unidos e também na Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Bélgica, Chile, China, Colômbia, Dinamarca Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Irlanda, Itália, Japão, Luxemburgo, Peru, Polônia, Reino Unido, Suécia, Suíça e em vários outros países.


Graças à procuradora regional da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, o acórdão teve apelação, que foi acolhida pelo vice-presidente do TRF-3, desembargador Paulo Octávio Baptista Pereira, e pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, que encaminhou sua ação cautelar ao STF. Ao analisar a ação, a ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha declarou-se impedida – por razões que não foram divulgadas–, e a distribuição do processo foi refeita, cabendo sua relatoria ao ministro Gilmar Mendes. Sua liminar foi apreciada por seus colegas de toga, mas sem a participação do ministro Eros Grau, que anteriormente, como advogado, já havia dado parecer jurídico contrário à constitucionalidade da exigência do diploma pelo decreto-lei 972/1969.


Crise e desafios


No Brasil, ao longo desse trâmite de quase seis anos na Justiça, a quase totalidade dos profissionais de veículos de comunicação, sindicalistas, professores e até mesmo estudantes de jornalismo, em manifestações na imprensa, em blogs, em chats, em grupos de discussão na internet e em fóruns de websites, mostraram o que têm de pior: a superficialidade, a renúncia à verificação e à checagem das informações que recebem, o desinteresse pela contextualização e o desrespeito aos preceitos éticos profissionais de busca do contraditório e de jamais frustrar o livre debate de idéias.


Enquanto isso, em meio às transformações econômicas e tecnológicas globais e suas conseqüências no mundo da comunicação – como a redução drástica da circulação dos jornais e a migração de grande parte da receita publicitária para outras formas de acesso aos consumidores –, estamos assistindo em todo o mundo ao crescente processo de concentração de propriedade dos meios de comunicação, à sua incorporação a conglomerados empresariais sem tradição jornalística e sem compromisso com a informação e às sucessivas eliminações de postos de trabalho de jornalistas como parte das estratégias de minimização de custos.


Nesse processo, caminham a passos largos o aumento da distribuição de conteúdos em detrimento da produção deles, a miscigenação e a promiscuidade da informação com o entretenimento, a decadência da disciplina da verificação e da checagem, a influência cada vez maior das corporações e governos na agenda da imprensa e a pulverização dos valores éticos e de credibilidade que deram origem ao jornalismo e ao seu papel na defesa da cidadania.


Longe de responder aos desafios desse cenário, a concepção da formação superior específica como requisito para a capacitação ao exercício da profissão levou o ensino de jornalismo brasileiro a permanecer refém de uma armadilha conceitual, na forma de uma busca permanente de soluções para problemas viciados e de respostas para questões recorrentes, como mostramos, há quase dois anos, em outro trabalho, que permanece praticamente sem resposta, mas foi considerado no recurso extraordinário da Procuradoria Regional da República em São Paulo (‘Diploma de Jornalismo‘, Consultor Jurídico, 25/6/2005).


A decisão, finalmente, está nas mãos do STF, apesar de todas as tentativas de debate sobre o assunto terem sido abortadas. Espera-se que o julgamento da ação cautelar da Procuradoria Geral da República seja pautado pela defesa do interesse público, pela diversidade de opiniões sobre o tema, pela contextualização da regulamentação profissional no Brasil e até mesmo pela necessidade de valorizar a formação superior específica em jornalismo, preservando-a do aviltamento inerente a vinculações incompatíveis com o espírito de independência e de universalidade da atividade acadêmica.

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Jornalista