Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

‘Popular não é sinônimo de torpeza’

Leitores satisfeitos. É assim que o Diário Gaúcho posiciona seu público, que o coloca entre os dez mais lidos do País. No gênero popular, é o segundo de maior circulação. Mas qual a receita de sucesso de um periódico que em apenas sete anos arrebatou um público que não estava acostumado a ler jornal?

O Canal entrevistou um de seus idealizadores, o diretor da Rede Gaúcha, Cyro Martins, e o atual editor-chefe do veículo, Alexandre Bach. Eles representam duas gestões diferentes, mas revelam que a participação dos leitores e a discussão de temas da agenda pública caracterizam a força do jornal. Martins enfatiza que o estigma de jornalismo sensacionalista é antiquado e sugere uma nova abordagem para a mídia quando o assunto são as publicações de apelo popular. Já o atual editor-chefe analisa que o apelo erótico e o modelo ‘espreme que sai sangue’ foi deixado de lado pelos periódicos do gênero. ‘ Essa história de sangue e sexo, terneiro de duas cabeças, chupa-cabra serve apenas para diversão do pessoal aqui na Redação. Aqui no jornal esse tipo de brincadeira é até divertido. Agora achar que os jornais populares se resumem a isso é um erro grave’.

Alexandre Bach tem 41 anos e 20 de jornalismo . Atuou como repórter e editor do Zero Hora por um período de dez anos. Ele é o atual editor-chefe do Diário Gaúcho e participa do Máster em Jornalismo promovido pelo Centro de Extensão Universitária de São Paulo (CEU) em parceria com a Universidade de Navarra, na Espanha.

Cyro Martins começou a carreira como revisor no Correio do Povo e ficou lá até 1989. Além disso, atuou como editor assistente do Zero Hora e no mesmo jornal ocupou as funções de secretário de redação e editor-chefe. Foi um dos idealizadores do Diário Gaúcho e exerceu a função de editor-chefe do jornal de 2000 até 2004 Atualmente, Martins é diretor da Rede Gaúcha.

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Geralmente o jornalismo popular é associado ao conteúdo sensacionalista e polêmico de alguns veículos destinados ao público das classes B, C e D. Por que os periódicos desse gênero são vistos assim?

Cyro Martins – Por preconceito. Nas décadas de 50 a 90 eles foram calcados no tripé sangue-teratologia-sexo. Na década de 90, com a gradual mudança de O Dia, o surgimento do Extra e, mais significativo, o fechamento, em 2000, com melancólicos 20 mil exemplares de circulação, do famoso Notícias Populares – o emblemático representante dessa imprensa de baixo nível -, percebeu-se que popular não é sinônimo de torpeza. Se o pior entre eles fechava por falta de leitores, não era isso que os leitores queriam.

Alexandre Bach – Eles são vistos desta forma por quem não conhece bem o conteúdo dos populares. Se você fizer essa pergunta para os nossos leitores eles responderão de um jeito diferente.

A mídia retrata de maneira adequada a participação dos populares junto à sociedade?

C.M. – Não, na maior parte das vezes, não. Os principais populares de hoje, feitos dentro de preceitos que os consumam como jornais para toda a família, que não envergonham quem os faz, nem quem os lê, são internacionalmente reconhecidos como ‘light papers’, uma saída inteligentíssima para o problema da diminuição da leitura de jornais, principalmente entre os jovens e as mulheres das camadas menos favorecidas da população. E ‘internacionalmente’ aqui significa ‘internacionalmente mesmo’. Mas são tratados, na maior parte das vezes, e, obviamente, por quem sequer os conhece (erro mortal para jornalistas) – como se fossem representantes da imprensa ‘popular’ do tempo do NP. Sangue e sexo etc. Preconceito.

A.B. – Eu não vejo a mídia abordar muito a questão dos populares, algo recente no Brasil, pelo menos de uns dez anos pra cá. Os meios de comunicação discutem muito a realidade deles e por isso, a discussão sobre os populares, na minha avaliação, não é a maior preocupação da mídia.

Qual deveria ser a abordagem dos meios de comunicação em relação ao jornalismo popular?

C.M. – Reconhecer a importância de estarem estes jornais trazendo para o universo do mundo de leitores de jornais não apenas milhares, mas milhões de pessoas. Pessoas que são diariamente maltratadas pela sociedade, desde o horário em que são obrigadas a acordar para pegar um ônibus caindo aos pedaços e apinhado, para chegarem a tempo num emprego de baixíssimo salário, e que nestes novos populares começam a descobrir direitos que tinham e não sabiam. Ou que sabiam que tinham e não sabiam como acionar. Como me disse um líder da esquerda: ‘Vocês realizaram o sonho da esquerda, um jornal que o povo gosta de ler’.

O crescimento dos populares aponta uma mudança na lógica jornalística. Um texto mais leve, cores mais chamativas, editorias que permitam a participação do público. De que forma isso influencia a política editorial de um veículo?

C.M. – Um veículo deve ser guiado pela satisfação da necessidade de informação de seu público específico. Sei que o público dos atuais populares não está interessado na queda da Selic, mas no efeito que isso tem em seu orçamento doméstico. Tenho de inventar um modo de comunicar-lhe isso, e pode tanto ser o texto simples como uma história em quadrinhos colorida. Sei que o público dos atuais populares não está interessado nas intrigas palacianas, mas em como isso resultará, ou não, em rua asfaltada, esgoto, água encanada, transporte, escola, segurança. Explicar-lhe isso é o grande desafio que estes jornais têm diariamente. Não escrever para ser elogiado pelo chefe ou pelo colega ou para ser reconhecido pela concorrência, mas tão somente para fazer aquilo que é a função fundamental do jornalismo: informar bem o seu público.

A.B. – Eu não sei dizer ao certo a influência de tudo isso na política editorial de um veículo. Até porque cada meio de comunicação já tem essa linha editorial, em muitos casos, pré-estabelecida. A nossa maneira de falar, a nossa linguagem, no projeto gráfico que nós idealizamos, foi concebida a partir daquilo que queríamos fazer editorialmente. É o contrário. Não são essas características que moldam a maneira de se fazer jornalismo. Nós adaptamos a nossa política editorial conforme a comunicação que vamos estabelecer com o leitor.

Essa mudança implica a demanda de jornalistas capacitados para trabalhar com esse público.

C.M. – Certamente: ‘Médicos acham que são deuses: Jornalistas têm certeza’. Imagine o exercício que é desperdiçar toda a nossa pretensiosa genialidade em um texto que deve ser entendido pelo porteiro do edifício, pelo motorista do ônibus, pela empregada doméstica… e que não será elogiado por nenhum de nossos amigos? É o maior desafio que um jornalista – um que assim quiser se chamar – pode enfrentar. O jornalista do popular deve estar muito mais versado nas artes da comunicação do que aquele que escreve apenas para os de seu meio social.

O que muda na relação jornalista-fonte-leitor?

C.M. – O leitor enxerga no jornal popular seu paladino – o que dá ao jornalista a chance de exercer vez que outra um pouco daquele jornalismo romântico com o qual sonhávamos na faculdade. Quando o leitor bate à porta da redação, já teve várias portas batidas na sua cara, principalmente de órgãos públicos. O contato é direto, não há barreiras entre o leitor e a redação. Sua relação não é a mesma do leitor dos ditos ‘quality papers’ com seus jornais: nos populares, eles são fãs, torcedores, amigos e chamam o jornal popular de ‘o meu jornal’. E assim o sentem. Quanto à questão da prática jornalística, os preceitos técnico-éticos são os mesmos e rígidos – ao menos na RBS – que guiam todos os veículos impressos da empresa.

A.B. – A gente lida com uma fonte que habitualmente não está acostumada a conceder entrevistas para os jornais tradicionais. O líder comunitário, o presidente de uma associação de bairro, geralmente não tem muito espaço nos jornais de referência ou tradicionais. É isso o que muda. Você continua utilizando fontes oficiais, mas essa esfera do oficialismo que ocupa um lugar importante nos jornais tradicionais não é o foco das publicações de apelo popular. Quer dizer, eles são responsáveis em passar a informação e defender aquilo que eles representam. Afinal, eles falam em nome de uma categoria, de um grupo organizado. E essa relação que você mencionou não é tão diferente assim em relação aos jornais de referência. Agora, é bem verdade que nós temos uma proximidade maior com o leitor. Até porque abordamos assuntos que dizem respeito ao cotidiano e à vida real deles.

No caso do Diário Gaúcho, o assistencialismo e a prestação de serviços são características fortes do veículo. Contudo, o serviço que o periódico presta à comunidade pode servir, inclusive, para promover o próprio jornal.

C.M. – Stálin dizia que a morte de uma pessoa não significava nada: mas a de um milhão era uma tragédia. Invertemos esta lógica perversa. O sofrimento de qualquer ser humano que estiver ao nosso alcance diminuir, com nossa ação jornalística, passa a ser dever. O que antes era condenado pela esquerda como ‘assistencialismo’, que pretensamente ‘atrasava a revolução’, foi absorvido com orgulho por nosso primeiro governo de esquerda, nos bolsas-família da vida e coisas do gênero. Mudou a esquerda ou mudou o mundo? Os novos jornais populares, como as ONGs, fazem o que está a seu alcance para, de forma meio anárquica (no bom sentido, o de ‘ação direta’, ou iniciativa espontânea, de ‘L´Ami du Peuple’), melhorar o mundo. Uma vida melhorada por dia é uma média e tanto.

A.B. – Aqui no Diário Gaúcho não há assistencialismo algum. O que fazemos aqui, em algumas situações, tem o desdobramento de uma mobilização que as pessoas fazem lá fora. Nós damos o espaço para esse tipo ‘mobilização’, mas sem nenhum envolvimento da parte do jornal. Algum tempo atrás aqui no Rio Grande do Sul descobrimos a história de um funcionário do Country Club, um campo de golfe da Grande Porto Alegre bastante freqüentado por empresários. O funcionário ganhava seiscentos reais por mês e encontrou uma carteira com dez mil dólares e a entregou ao dono. Mas o que aconteceu depois disso foi muito estranho: esse rapaz começou a ouvir chacotas por ter devolvido a carteira. Os moradores do local o chamavam de babaca, burro e isso o constrangeu muito. A esposa dele comentou isso com a gente e nós publicamos a história dele no jornal. A partir disso houve uma onda de solidariedade. Muita gente doou rancho, o sindicato dos construtores de Porto Alegre resolveu dar uma casa para ele… Mas em momento algum houve a nossa influência. Essa coisa do assistencialismo, na prática, não é comum para a gente. Contudo registramos a mobilização da comunidade e assim por diante. O assistencialismo que eu percebo, no contexto dessa camada menos favorecida da população, tem um caráter.

Em entrevista ao programa Argumentos da TV PUC o senhor (Cyro Martins) esclarece que o Diário Gaúcho jamais publicaria ‘páginas de sangue, aberrações, linguajar chulo e nudez ginecológica’. Isso quer dizer que o jornalismo ‘espreme que sai sangue’ não agrada mais o leitor popular?

C.M. – Vide exemplo supracitado do Notícias Populares. Fechou por falta de leitores. Não existe nenhum veículo de comunicação que tenha fechado por ser bom. Fechou-se, não era bom. Pode ter sido, não era mais, e ser bom é simples: significa atender a necessidade de seu público. Logo, o público das classes menos favorecidas não quer sexo e sangue: quer informação útil e entretenimento sadio, a preço acessível.

A.B. – Quando o Cyro chegou aqui, estipulamos uma linha editorial – hoje ele é diretor da Rede Gaúcha, eu assumi o jornal – e essa linha não mudou nada. Esse tipo de linguajar que você mencionou jamais será publicado no nosso jornal. Você não consegue sustentar um jornal utilizando esse tipo de apelo. Essa história de colocar mulher pelada na capa não vende. Tem público para tudo, mas precisamos ver se esse público comporta um negócio desses ou que justifique um conteúdo parecido com isso. Os novos jornais populares que estão surgindo por aí abandonaram essa linha. Se você for analisar os jornais populares Brasil afora, como é o caso do Extra , no Rio de Janeiro ou o Agora em São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, vai ver que os atuais populares não tem nada a ver com essa linha sensacionalista. Quando começou essa onda de jornalismo popular há dez anos a coisa era diferente. A pessoa que pensa o jornalismo popular dessa forma é mal informada e preconceituosa. Os populares estão aí, aumentando a circulação de títulos no meio impresso. Se você vir dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC), dos dez maiores jornais do País, cinco são populares. Quem não considera isso que abordamos e ainda pensa dessa forma é burro. Essa história de sangue e sexo, terneiro de duas cabeças, chupa-cabra serve apenas para diversão do pessoal aqui na redação. Aqui no jornal esse tipo de brincadeira é até divertido. Agora achar que os jornais populares se resumem a isso é um erro grave.

Como o senhor avalia a discussão de temas da agenda social na cobertura dos populares?

C.M. – Ninguém os trata melhor. Apenas os populares, os bem-feitos, conseguem explicar ao cidadão de baixa escolaridade como seu voto se transforma, ou não, em transporte público decente, educação pública decente e saúde pública decente. E também, pelo gigantismo de seu público, terminam por pautar as autoridades, para que não fiquem divagando em lugares-comuns como ‘inclusão digital das classes populares’, algo ridiculamente cosmético quando faltam creches nas vilas para que as mães possam trabalhar e alimentar seus filhos.

A.B. – A discussão de temas da agenda pública deve ser do interesse de todo e qualquer veículo de comunicação. O que existem são esferas diferentes. A tarefa de fiscalizar o poder público é função de qualquer veículo da imprensa, não apenas dos populares. Nós, por exemplo, observamos muito o ocorre na prefeitura. É ela quem administra os postos de saúde, o ponto de ônibus, etc. É uma das coisas que mais gera pautas aqui na redação: a fiscalização do município. Além disso, observamos políticas aplicacionais do governo federal que é uma coisa importante também. O jornal tradicional vai abordar a política a partir do acontece em Brasília. É uma ótica um pouco diferente da nossa.

No gênero popular é o leitor quem denuncia e fiscaliza o poder público. E quem avalia a fala do leitor?

C.M. – Opa! O leitor é somente fonte de pautas. E pautas são hipóteses, comprováveis ou refutáveis. O jornalista continua sendo o responsável pelo publicado.

A.B. – O processo de edição é o mesmo de um veículo de comunicação qualquer. Quando um cidadão comum ou líder comunitário fala alguma coisa para a gente, da mesma maneira que um empresário passa uma informação para o Valor Econômico, por exemplo, o conteúdo será avaliado. A checagem é comum em qualquer veículo. Nós temos um canal aberto com o leitor mas isso não quer dizer que seremos irresponsáveis a ponto de publicar qualquer coisa. Nós avaliamos o conteúdo: isso é importante, aquilo não… Não raras vezes as pessoas que vêm aqui, tomadas pelo calor da discussão exageram algumas coisas, pintam o quadro com uma tinta muito forte.

É possível a fala popular tirar o foco de um problema social para os problemas do leitor? Quais os perigos em ouvir a opinião de um cidadão sobre determinado assunto em relação a um especialista?

C.M. – Nunca se colocariam tais opiniões em mesmo grau de importância. A diferença do jornal popular, o bem-feito, é que, em vez de fazer como os ‘quality papers’, que em meio a uma enxurrada de números incluem um ou dois ‘cases’ ilustrativos, o jornal popular bem-feito usa um, dois ou mais ‘cases’ para começar a matéria. Assim, com esses exemplos facilmente inteligíveis, é que ele irá explicar a enxurrada de números a seus leitores.

A.B. – Quando escrevemos sobre o postinho de saúde do bairro, por exemplo, entrevistamos além do cidadão comum, especialistas e fontes oficiais ou, no exemplo citado, o representante da saúde. Um depoimento muito importante é o do gerente do posto de saúde que fica lá na vila. Ele é quem vai dizer: o meu problema é esse, aqui falta tal e tal estudo, eu preciso de determinado antibiótico e assim por diante. Essa é uma avaliação importante. Ele também é um especialista, no ‘mundo’ dele. Ah, a pessoa que não domina todos os conceitos da saúde pública não pode ser considerada especialista. Eu não sei se esse tipo de fonte seria tão necessário, dependendo da matéria. Eu não acho que a verdade ou o mais próximo dela esteja apenas na mão de ‘iluminados’. A verdade está muito mais próxima do que a gente imagina.

As pessoas que geralmente compram um jornal popular não têm o hábito da leitura. A maior parte delas tem uma baixa renda familiar e não está acostumada com a educação política ou econômica. Isso justifica a ausência dessas editorias nos populares?

C.M. – Primeiramente: não tinham o hábito de leitura. O Diário Gaúcho vende apenas em bancas e jornaleiros, sem assinaturas mais de 150 mil exemplares por dia, com uma audiência de mais de um milhão e 300 mil leitores. Isto é hábito de leitura implantado, tão implantado que a região da Grande Porto Alegre é hoje a região de maior índice de leitura de jornais do Brasil, superando liderança histórica da Grande Rio de Janeiro. E as editorias de política e economia estão lá: só que, como dito, explicando no seu bolso a taxa Selic e na sua vida a escolha que você faz na eleição. Em vez de servirem de palanque.

A.B. – Nós abordamos economia. Só que de um jeito diferente, não no estilo empresarial. Ela é aplicada mais ao dia-a-dia e ao bolso do leitor. Por exemplo, quando cai a taxa de juros: não tratamos de temas relacionados ao Banco Central, mas o impacto disso na economia doméstica. Trazemos o assunto da macro para a micro economia. A questão da política… Eu não sei. Vimos tantas coisas nos jornais. A gente dá muito espaço para as coisas que acontecem em Brasília. Tem gente que fala, ah, a ausência da discussão política aliena as pessoas. Não vamos estimular uma consciência política apenas abordando matérias desse tipo. A política do Renan Calheiros não faz falta para ninguém. Até porque esse escândalo não tem que sair nas páginas de política, mas na editoria de polícia. Já estamos planejando a cobertura das eleições do ano que vem em Porto Alegre. Uma das coisas que abordamos na cobertura das eleições é tratar da função que um prefeito exerce, o papel dos vereadores. Vereador pode prometer um aumento de salário? O prefeito pode inaugurar uma nova linha de ônibus no seu bairro? Para mim é mais importante discutir a função de um servidor público do que debater sobre a política partidária que está por trás de tudo isso.

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Aluno do Curso de Jornalismo do Centro Universitário Adventista