Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um retrocesso histórico

Ao acabar com a exigência do curso superior específico para o exercício do Jornalismo o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão que representa um retrocesso histórico, com graves consequências para os jornalistas profissionais e, acima de tudo, para todas as pessoas que dependem das informações publicadas pela imprensa para participar ativamente da esfera pública. E o pior é que a decisão dos nossos doutos ministros chega no exato momento em que nas democracias mais antigas e recalcitrantes à formação universitária dos jornalistas como Inglaterra ou Itália e em países como a China Continental ou Taiwan quase ninguém mais duvida da necessidade da formação especializada para o exercício do jornalismo. Apenas na Inglaterra, existem hoje mais de 600 cursos de graduação em jornalismo.

Nunca antes como agora existiu em todos os cinco continentes um reconhecimento tão pleno de que o jornalismo constitui uma área específica de conhecimento e a experiência brasileira de exigência da obrigatoriedade de formação universitária, cada vez mais, colocava o Brasil como um dos países pioneiros na adoção desta medida de vanguarda. A pujança da área de Jornalismo e a solidificação da sua legitimação como uma profissão com status universitário está estampada em publicações como Periodismo Profesión, Enrique de Aguinaga, 1980; Il Giornalismo. Che cos’è e como funziona, Carlo Sorrentino, 2002; Taking Journalism Seriously, de Barbie Zelizer, 2004; Key concepts in Journalism studies, Franklin, Hamer, Hanna, Kinsey, 2005; Journalism: Critical Studies, Stuart Allan, 2005; Global Journalism Research: Theories, Methods, Findings, Future, editado por Martin Loffelholz e David Weaver, 2007; Journalism, Tumber, 2008; O Jornalista em Construção, Joaquin Fidalgo, 2008 e The Handbook of Journalism Studies, editado por Karin Wahl-Jorgensen e Thomas Hanitzsch, 2009, Benetti e Lago, 2007 e Marques de Melo, 2003, 2005, 2009, entre muitíssimos outros.

E sequer serve como desculpa para nossos doutos ministros justificar a decisão tomada com o pífio e constrangedor argumento de que a prática do jornalismo se iguala a de um cozinheiro. Um argumento que revela duplo desconhecimento da realidade porque ignora a complexidade das atividades de um jornalista profissional, que pressupõem o domínio de conceitos e técnicas especializados e a obediência de normas deontológicas constituídas ao longo de mais de quatro séculos e o fato, cada dia mais evidente, de que na atualidade a gastronomia se consagrou como curso universitário e que a grande maioria dos mais renomados chefes de cozinha têm formação de nível superior e que muitos deles possuem cursos de pós-graduação.

Mais paradoxal é que este argumento tenha sido explicitado e defendido por um Tribunal que tem entre seus 11 membros 8 com doutorado em alguma área especifica do Direito e que, ao menos é o que se espera, deveriam estabelecer a diferença conceitual entre a prática profissional do jornalismo e o direito constitucional à liberdade de expressão. Não foi o que aconteceu, uma vez que, como demonstrado na sentença do Tribunal Regional Federal de São Paulo, a legislação existente não era excludente e garantia, desde que consentido pelos proprietários dos meios e seus editores, o direito que qualquer cidadão pudesse publicar suas opiniões nos meios de comunicação.

Um passo à frente

Passado o calor das discussões imediatas, precisamos dar um passo à frente e projetar as ações futuras para qualificar, legitimar e assegurar que a formação superior volte a ser um pré-requisito para a prática do jornalismo. No curto prazo, para além das esperadas manifestações sóbrias de desacordo com a decisão do STF como a da, sempre lúcida, OAB, ou dos protestos veementes das lideranças sindicais como a FENAJ ou acadêmicas como o FNPJ, cabe aos jornalistas, aos professores e aos pesquisadores de jornalismo extrair algumas lições deste episódio.

E o que menos interessa neste momento é concluir que uma sentença de 7 ministros do STF pode acabar com uma realidade constituída ao longo de 60 anos de ensino de Jornalismo e de mais de 40 anos de regulamentação profissional. Nem escolas nem os jornalistas diplomados deixarão de existir. Ao contrário, cada vez mais, será necessário salientar a diferença entre o jornalista que possui formação superior especializada e o que se auto-intitula jornalista por benesse divina ou por beneplácito de algum dono de empresa de sua esfera de relações íntimas. Numa sociedade complexa como a que vivemos não basta a boa vontade do dono do negócio ou o voluntarismo individual para que se possa reunir as condições necessárias para o exercício do jornalismo profissional.

A principal consequência imediata da decisão do Supremo é legalizar uma situação de desobediência civil por parte de boa parte dos empresários do jornalismo e possibilitar que qualquer pessoa, independentemente de ter capacitação profissional ou não, tenha condições de ser contratado e trabalhe como jornalista, com óbvios prejuízos para a qualidade das informações publicadas, por mais incrível que este fato tenha sido desconsiderado pelos ministros do STF. No caso específico da FENAJ existe a necessidade de uma ampliação do movimento de apoio e principalmente uma participação efetiva na Conferência Nacional de Comunicação que vai estabelecer as políticas para esta área no país prevista para o final deste ano.

Se a batalha no STF foi perdida, trata-se de um fator essencial para a luta dos jornalistas diplomados que a FENAJ conquiste o apoio dos participantes na Conferência Nacional de Comunicação para que a formação superior seja novamente estabelecida como uma exigência, desta vez, por meio de uma legislação específica aprovada pelo Congresso Nacional. E que pode inclusive estar incorporada no projeto de criação do Conselho Nacional de Jornalistas.

Aos mais de 4 mil professores de jornalismo, espalhados pelas mais de 560 escolas existentes no país, cabe engrossar as fileiras de um movimento nacional pela qualificação dos cursos de formação profissional. É certo que a distorção nas escolas não se restringe ao Jornalismo, como se pode ver nos cursos de Direito, Administração, Medicina ou Engenharia para citar apenas algumas áreas, mas não se pode desconhecer que muitas escolas estão muito abaixo do esperado, funcionando sem as mínimas condições de infraestrutura de apoio, de pessoal e de laboratórios. Após a conclusão dos trabalhos da Comissão de Diretrizes e a aprovação dos novos parâmetros os professores de jornalismo deveriam lutar para que tenhamos padrões de avaliação para a abertura e reconhecimento dos cursos.

No momento, mais grave do que a existência de diretrizes genéricas, é o fato de que não se tem nenhum padrão que possibilite ao avaliador aferir a real qualidade dos cursos de Jornalismo. E o que é pior, para abrir o curso basta apresentar um projeto que, na maioria dos casos, jamais chega a ser implantado. E, quando a Comissão de Avaliação chega pouco pode fazer porque não tem padrões rigorosos que permitam balizar com rigor o aval para o reconhecimento ou não do curso.

Objeto de pesquisa

Aos pesquisadores de jornalismo cabe uma tarefa muito significativa de conceber, de uma vez por todas, a prática do jornalismo como objeto de estudo central de seus estudos, partindo do pressuposto de que o jornalismo é uma ciência social aplicada. Ao longo de muito tempo e, felizmente, cada vez isto ocorre menos, confundiu-se a pesquisa em jornalismo com a crítica ideológica da prática do jornalismo.

Pesquisa alguma, seja em Jornalismo, seja em Medicina ou na Engenheria, pode chegar a bom termo, caso esqueça parâmetros mínimos de distanciamento e objetividade que permitam ao pesquisador avaliar criticamente o objeto. Mas, tampouco, pode-se aceitar que o objetivo da pesquisa seja, como muitas vezes ainda acontece principalmente entre os apologistas de uma certa vertente dos chamados estudos culturais como John Hartley, a desconstituição do jornalismo como prática profissional especializada. Evidentemente, como se pôde acompanhar nas listas de discussão da área de comunicação, a posição de Hartley tëm muitos apoiadores entre nós, especialmente entre aqueles que desconhecem a literatura de referência sobre a prática, o ensino e a pesquisa em Jornalismo. E são os pesquisadores em Jornalismo que devem oferecer aos profissionais os argumentos científicos para que se possa sustentar o bom combate na defesa da formação superior especializada. Não com argumentos simplesmente ideológicos ou corporativistas, mas através de estudos empíricos que possam monitorar e avaliar a qualidade dos conteúdos publicados e de pesquisas aplicadas que possam contribuir para aperfeiçoar os processos e os produtos jornalísticos nesta era de transição tecnológica.

Justiça seja feita que muito se tem avançado na constituição do campo do Jornalismo no Brasil nos últimos 10 anos. Se antes a FENAJ desempenhava o papel pioneiro na defesa da formação superior e da qualificação dos cursos ao lado dos estudantes da ENECOS, desde a metade dos anos 1990 a situação mudou muito com a criação do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo e da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo. Desde então, FENAJ, FNPJ e SBPJor têm atuado em conjunto, sempre que possível e, no caso da defesa da formação superior específica obrigatória, com excelentes resultados do ponto de vista da articulação e consolidação do Jornalismo como um campo profissional autônomo, composto por estudantes, profissionais, professores, pesquisadores e instituições empresarais ou da sociedade civil.

Se existe um motivo para se comemorar em todo este processo que culminou com a retirada da exigência da formação superior para o exercício da profissão, é o fato de que as três entidades do campo se organizaram para atuar harmonicamente em defesa do campo e dos interesses da sociedade, uma vez que, como se sabe, os campos sociais existem porque são funcionais às demandas institucionalizadas pela sociedade. Daqui para frente muito terá que ser feito para reconquistarmos o direito, provisoriamente perdido, de que o exercício da profissão de jornalista seja exclusivo para quem esteja técnica e conceitualmente capacitado para produzir um trabalho com condições mínimas de qualidade e que respeite as normas deontológicas da categoria constituídas ao longo de mais de quatro séculos. E o primeiro passo deveria ser buscar a articulação com os estudantes, futuros profissionais, e com os movimentos sociais para que, cada vez mais, a exigência da formação superior seja a vontade geral da sociedade e não apenas entendida como uma desprezível reivindicação corporativa.

Ao ganharmos o apoio da sociedade a decisão do STF pode ser plenamente revertida, uma vez que para tanto basta que o Congresso Nacional aprove uma legislação que restabeleça a necessidade de uma formação especializada para o registro como jornalista profissional.

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Jornalista diplomado pela Universidade Federal de Santa Maria e doutor em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona, professor na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do CNPq