Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Uma análise teórico-jornalística

1 Introdução

O presente trabalho é resultado de monografia de conclusão do Curso de Jornalismo apresentada ao Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, em 1991 e orientada pela professora Rosa Nívea Pedroso e tem como tema o livro Brasiguaios; homens sem pátria. Trata-se de uma reportagem investigativa de Carlos Wagner, jornalista do periódico diário de Porto Alegre intitulado Zero Hora. A matéria foi publicada por partes no jornal, em 1986, e recebeu nesse ano o Prêmio Esso Regional. A edição em livro, com dados atualizados, é de 1990.

Conforme o vocabulário crítico dos termos empregados na atividade jornalística sistematizado no livro A estrutura da notícia, escrito por Nilson Lage, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a reportagem consiste em um gênero jornalísitco através do qual são investigados assuntos para relatar uma história verdadeira, expor uma situação ou interpretar fatos.

Na parte inicial, a reportagem de Carlos Wagner será apresentada de forma resumida capítulo por capítulo com base nesta definição, que capta o significado funcional da reportagem, a sua manifestação enquanto fenômeno jornalístico produtível. Ainda assim, serão explicados desde o início conceitos filosóficos que facilitarão o entendimento de como a reportagem, importante gênero jornalístico, pode ser abordada sob outro prisma.

Este ângulo teórico possui como fundamento mais amplo a visão de Adelmo Genro Filho sobre o Jornalismo, como forma de conhecimento, desenvolvida na obra O segredo da pirâmide. O mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina, já falecido, deixou formulações que terão seu alinhamento no segundo capítulo. Primeiro, será explicada a sua metodologia, com a síntese das críticas que fez às principais teorias que incidiram sobre o Jornalismo. A seguir, as categorias utilizadas por Genro Filho são apresenta, das com ênfase nas definições encontradas em obras filosóficas importantes de Friderich Hegel e Georg Lukács. O último tópico traz, então, o conceito de Jornalismo elaborado por Adelmo Genro Filho.

O terceiro capítulo traz a análise da reportagem investigativa de Carlos Wagner a partir da teoria adelmiana. O livro Brasiguaios; homens sem pátria é situado com relação a alguns aspectos económicos e sociais da realidade agrária brasileira, pretendendo-se que o leitor compreenda o significado da investigação enquanto totalidade.

Na conclusão colocam-se alguns subsídios para novas contribuições teóricas sobre a reportagem como gênero jornalístico informativo e interpretativo que torna possível ao jornalista potencializar ao máximo as virtudes de sua atividade. O autor do presente trabalho tem plena consciência de que este é um campo de estudos a ser demarcado.

2 Um diálogo

O livro Brasiguaios; homens sem pátria traz uma reportagem investigativa que Carlos Wagner, repórter especial do jornal Zero Hora, realizou em 1986, percorrendo caminhos que agricultores de vários estados brasileiros fizeram ao longo dos anos 60 e 70, rumo ao Paraguai.

Wagner começa o texto do livro, apresentando o diálogo que originou o termo ‘brasiguaios’:

‘Então quer dizer que nós não temos os direitos dos paragraios porque não somos paraguaios; não temos direitos os dos brasileiros porque abandonamos o país. Mas me digam uma coisa: afinal de contas, o que nós somos?’

‘Vocês são uns brasilguaios, uma mistura de brasileiros com paraguaios, homens sem pátria’ (WAGNER, p.11).

Ele esclarece logo depois que a conversa ocorreu em 1985 entre um camponês e o então deputado federal pelo Mato Grosso do Sul, Sérgio Cruz, que na época estava no Partido Democrático Trabalhista (PDT).

2.1- O ponto de partida para a apreensão de uma parte da realidade

Reproduzindo o diálogo, o repórter começa a mostrar um aspecto do problema que decidiu investigar. Entretanto, esta questão não poderia, pela sua complexidade, aparecer aos olhos do leitor como algo dissociado de um contexto maior para ser entendida. Este contexto, por sua vez, configura uma realidade determinada. Qual a definição possível para um conceito de ‘realidade’ dentro desta perspectiva?

O filósofo tchecoeslovaco Karel Kosik, em sua obra Dialética do concetro, escrita na década de 60, define o mundo real como o da práxis humana. A categoria, surgida antes de Cristo na Grécia Antiga, ganhou novos contornos com a for; mulação dos princípios materialistas na Filosofia Alemã, no século 19. Karl Marx utiliza a palavra em suas Teses sobre Feubarch: ‘A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como práxis revolucionante’ (MARX, TOMO 1, P.2).

Assim, a realidade social é construída, em todos os seus momentos, pela atividade humana e as relações que a condicionam e ao mesmo tempo são determinadas por esta. Isto por que não se pode falar na História apenas como sucessão de gerações, mas como palco de conflitos entre diversos tipos de agrupamentos constituídos desde que o Homem passou a transformar racionalmente a natureza. Estes confrontos deixam suas marcas ao longo do desenvolvimento da práxis, enquanto conjunto de atividades e relações de um sujeito, seja ele um povo organizado, os agentes controladores de um Estado, uma classe ou uma nação sem território, no interior de e sobre uma objetividade, seja ela uma terra inexplorada, uma série de mecanismos políticos e jurídicos estabelecidos por um governo autoritário ou a falta de meios para satisfazer as necessidades primárias como alimentação e moradia. O sujeito possui o intelecto, e a objetividade as coisas que existem fora do âmbito intelectual. A realidade, em suas facetas, é delineada a partir desta interação.

Na primeira parte do texto, cujo título é o mesmo do livro, Wagner esclarece que a colonização das terras paraguaias por colonos brasileiros não foi uma emigração espontânea. Ela foi conscientemente planejada por autoridades do Brasil e do Paraguai. No primeiro capítulo, o repórter fala dos pioneiros. Eles foram os negros e mestiços brasileiros. Qual o motivo disto?

O relato de Wagner, no livro, é abrangente. Em 1959, o general Alfredo Stroessner se consolidou no poder após violentas disputas no Partido Colorado, que o sustentaria no governo paraguaio por mais de três décadas. O general pôs então em andamento um plano para aumentar a produção de grãos dirigida ao mercado externo. A região do Alto Paraná, próxima do território brasileiro, foi a escolhida por estar a pouco mais de 900 quilómetros por estrada asfaltada de Puerto Stroessner e não muito longe do porto marítimo brasileiro de Paranaguá. Ali, os camponeses paraguaios trabalhavam na terra sem um sentimento de posse em relação a ela, segundo depoimento de um religioso que viveu junto deles.

Ora, sem esta postura dos agricultores, sua retirada por parte dos militares paraguaios ficou facilitada. Era necessário atrair grupos sociais brasileiros que não tivessem tia digao de posse da terra. A intelectualidade inserida no aparato fatal paraguaio vislumbrou no norte e no nordeste do Brasil estes segmentos, onde negros e mestiços sem ou com pouca terra formavam a maioria. Carlos Wagner explica a situação destas camadas:

‘Não existem estudos que mostrem qual a quantidade de brasileiros do Norte e Nordeste que foram para lá no primeiro momento da colonização. Mas amostragem feitas pelos religiosos, na época, demonstram que entre 100 brasileiros que entraram no Paraguai, cerca de 15 eram daquelas regiões. Eles começavam derrubando o mato. A madeira era vendida a preço vil para o dono da terra, que por sua vez a negociava com os comerciantes da cidade que a contrabandeavam para o Brasil’ (WAGNER, p.15).

Os donos da terra continuavam sendo os militares e líderes do Partido Colorado de Stroessner, que haviam expulsado camponeses paraguaios. No final da década de 60, o governo paraguaio orientou as agências responsáveis por atrair os colonizadores no sentido de enviar a seguinte mensagem para os camponeses da região sul do Brasil:

‘Com a venda de um hectare no Brasil é possível comprar mais de cinco lá no Paraguai. Além disso, o governo financiava o dinheiro necessário para retirar os tocos das terras que haviam sido deixados pelos pioneiros’ (WAGNER, p.16).

Wagner denuncia, na sua reportagem, que as agências colonizadoras fizeram renascer o mito da força de trabalho a lema superior a de outras raças, como a dos índios e a dos negros. Cita dados do Censo paraguaio para mostrar o aumento da população no Alto Paraná e afirma que a produção de algodão e soja atingiu índices jamais alcançados. Na metade da década de 70, os sonhos dos agricultores começam a ruir. Os preços das mercadorias desabam, e não há um seguro agrícola do governo. Os camponeses paraguaios voltam para a região e exigem suas antigas terras. Apenas a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, já nos anos 80, atenua o problema empregando parte da mão-de-obra formada por eles.

Terminada uma das etapas de construção da usina em 1983, a única solução é o fracionamento das pequenas propriedades. Vários agricultores brasileiros começam a se organizar para voltar a seu país, e quando trata disso, o repórter cita outra vez o diálogo que introduziu o primeiro capítulo do livro. Para terminá-lo, Wagner apresenta as palavras de dois camponeses brasiguaios, que falam sobre suas dificuldades. São eles José Rodrigues dos Santos e Molar Lang. O primeiro de família negra, o segundo de origem alemã.

‘Uma mulher ficou `doente da cabeça´ porque seus moleques morreram.’

‘Nós chegamos lá por volta de 69 e trabalhamos como boi de canga. Lembra que a alegria da piazada era jogar bola entre os tocos das árvores. Os mais velhos ensinava, as primeiras letras aos mais novos. Os médicos e os hospitais estavam do lado brasileiro a preço de ouro’ (WAGNER, p.21-2).

No capítulo 2 do livro, o repórter escreve sobre os brasileiros que retornaram ou estão retornando. Um fator impulsionou a volta de alguns brasiguaios: o Plano Nacional de Reforma Agrária, lançado pelo governo Sarney em 1985. Os camponeses, tornam-se indesejáveis no Paraná devido à estrutura econômica do Estado, muito desenvolvida no que se refere à concentração de lavouras de algodão, soja e trigo. Wagner explica os contratempos enfrentados pelos agricultores em relação ao Movimento dos Sem-Terra, entidade que agrupa trabalhadores rurais sem condições mínimas para plantar e sobreviver no Brasil. Os sindicatos destes trabalhadores, do oeste paranaense, não os ajudam por medo de represálias dos fazendeiros. O período mais explosivo em tensões, segundo o jornalista, é o primeiro semestre de 1986.

Wagner ilustra este momento através de um episódio que envolveu uma das únicas entidades que colaboraram com os agricultores. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de São Miguel do Iguaçu ajudou os brasiguaios a irem para um acampamento no interior do município. O presidente do sindicato, Miguel Issor Sávio, organiza os camponeses, que muitas vezes eram empregados com salários baixos pelos grandes plantadores de algodão paranaenses. Sávio começou a ser vigiado e a 2 de agosto de 1986 sofreu um atentado a tiros. Ainda que ele tenha sobrevivido, o apoio do sindicato aos brasiguaios diminui. No Mato Grosso do Sul, as famílias brasiguaias conseguem uma melhor articulação política. O deputado federal Sérgio Cruz, que foi do PDT e mudou para o Partido dos Trabalhadores (PT), passaria a representar seus interesses no Cori gresso Nacional em Brasília, e o Movimento dos Sem-Terra (MST) se aliaria com padres e pastores preocupados com as questões agrárias no Brasil para organizar os camponeses. Os acampamentos se sucedem, e Wagner se refere ao município de Ivinhe, mas como o ‘retrato do Brasil nos anos 80’ no interior do Mato Grosso do Sul:

‘Os colonos não se chamam por nome, mas assim: o gaúcho, o sergipano, o baiano (…) ali tem acampados de todos os lados do país. Aliás, reassentados pelo então Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)’ (WAGNER, p.34).

O jornalista encerra este capítulo mostrando um pouco do dossiê entregue ao governo brasileiro pelas lideranças dos brasiguaios, que conseguiram criá-las em cada grupo de dez famílias. Eles passaram a ter uma rede de informações entre o Brasil e o Paraguai e comprovaram 31 casos de violência no país agora presidido por Andrés Rodrigues contra os colonos brasileiros. Estes episódios ocorreram em 1985 e 1986. Wagner publica na reportagem um resumo do relatório sobre os acontecimentos.

No terceiro capítulo, Wagner escreve sobre os brasileiros que ficaram no Paraguai e sua luta contra os preconceitos de outros agricultores, e entre eles próprios, além de escrever que seus vistos de imigrantes são renovados de 90 em 90 dias. Transcreve depoimentos de alguns colonos e termina a primeira parte do livro sintetizando o teor de um encontro de Jair Krische, membro do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Brasil, com uma comissão de brasiguaios.

O ponto de partida para que o leitor se informe acerca do assunto da reportagem é a origem do processo que levou ao surgimento dos brasiguaios. As sucessivas ações que atraíram os agricultores brasileiros para o Paraguai foram planejadas pelo governo daquele país. O que ali eles viveram e as diferentes respostas à situação consistem no centro da primeira parte do texto de Wagner. Algo diferente será encontra do pelo leitor na segunda parte.

2.2 – A contextualização da saga

A segunda parte da reportagem recebeu o título ‘A terra dos generais’. O jornalista escreveu uma curta introdução, antes do quarto capítulo, para afirmar que as denúncias dos brasiguaios, em 1985, fizeram do Paraguai alvo das atenções brasileiras. Diz também que quando Andrés Rodrigues derrubou, em um golpe militar, Alfredo Stroessner, em 1989, cumpriu-se uma profecia do que ele, repórter, denomina ‘esquerda paraguaia’: os traços essenciais da ditadura seriam mantidos.

Nos capítulos anteriores, algumas informações apareceram como elementos de contextualização da saga dos brasiguaios. No começo do livro, Wagner explica que a agricultura sempre foi a base da economia paraguaia e que ainda em 1986 garantia 60% do produto interno bruto. Entenda-se aqui a contextualização como delimitação de uma realidade económica e social determinada. Esta realidade tem aquele significado explicitado no início deste trabalho. O elemento de contextualização é a referência a um dado que amplia a visão do leitor sobre um objeto de investigação (o Paraguai), que serviu como cenário para o surgimento dos brasiguaios e para a configuração de conexões que o jornalista procurou elucidar.

No quarto capítulo do livro, Wagner trata da economia paraguaia. Apresenta números para demonstrar como o mundo financeiro oficial a cada vez pior em 1986, e o clandestino se mantinha bem. Relata que o Movimento Intersindical de Trabalhadores, uma organização de sindicatos paraguaios independentes do apoio oficial, calculou que o setor da construção civil era, na segunda metade da década de 80, o mais atingido pelo desemprego. Localiza no modelo agroexportador organizado pelo governo de Stroessner uma causa decisiva para a situação do Paraguai. O país viveu o seu ‘milagre’ com a construção de Itaipu, mas as importações acabaram por superar as exportações entre 1973 e 1986.

O jornalista também chama a atenção para a percentagem de trabalhadores paraguaios sindicalizados, 8% deles de modo independente do governo. A crise econômica fez com que os empregados das áreas urbanas reagissem fundando o Movimento Intersindical de Trabalhadores de 1986. A Confederação Paraguaia de Trabalhadores seria atrelada ao governo, devido aos chamados sindicatos ‘pelegos’, mas controlaria 28% da mão-de-obra. Wagner exemplifica com um casal de funcionários públicos e seus dois filhos menores as dificuldades para viver em Asunción, além de detalhar fraudes sofridas pelo Banco Central do Paraguai.

A polícia paraguaia é o tema do quinto capítulo. O jornalista revela as brigas internas do Partido Colorado quando a crise colocou na ordem do dia a possibilidade de que Stroessner fosse substituído no Poder e os entendimentos do Acordo Nacional, que reuniu toda a oposição paraguaia nos anos 80, com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), no sentido de que este pressionasse o governo brasileiro para que tomasse posição quanto à sucessão paraguaia. Wagner explica o papel da Igreja nas pressões contra o governo de Stroessner e traça um perfil dos partidos paraguaios.

A crise acabou pesando mais do que as articulações, e o general Andrés Rodríguez, sendo capaz de manter o Exército unido e contando com o apoio dos Estados Unidos, comanda o Golpe de Estado que derruba Stroessner em 1989. Logo depois, ele venceria uma eleição para a Presidência da Repúbliuca da qual a oposição pôde participar.

O último capítulo da reportagem se chama ‘Direitos Humanos e Cultura’. Cabe reproduzir o seu primeiro parágrafo, pela capacidade de síntese demonstrada pelo jornalista:

‘Por 30 anos vigorou no Paraguai o estado de sítio, que deu poderes extradiordinários ao governo. Graças a ele, o general Alfredo Stroessner se manteve como o primeiro mandatário do país por mais de 32 anos. A Imprensa doi mantida sob uma rigorosa censura. As artes em geral foram destroçadas. A cultura guarani – 90% da população falam o idioma guarani e o espanhol, que é a língua oficial – caiu no esquecimento. O Paraguai é a terra do medo’ (WAGNER, p.77).

Carlos Wagner resume, assim, a época da ditadura Stroessner. Porém, não deixa de falar sobre a rede de espionagem montada pelo regime comandado pelo general e o fechamento do Diário ABC Color, um dos jornais que tentou circular no país com uma certa isenção informativa. O repórter apresenta o depoimento de Erwin Benitez, que era editor de política do periódico, fechado em março de 1984. O livro termina com uma contraposição. Wagner relata algumas prisões políticas e, logo depois, reproduz a opinião de Rúben Stanley, vice-presidente do Partido Colorado, que nega a censura a imprensa e a repressão política. A última declaração da reportagem é de um religioso que afirma estar a cultura paraguaia sendo destroçada pelos interesses dos ‘amigos brasileiros’. O jornalista acrescenta ser esta uma verdade que causa constrangimento, após ter citado denúncias de outros religiosos sobre a manutenção do aparato repressivo depois da vitória e-leitoral de Andrés Rodrigues, em 1989. Termina deste modo Brasiguaios; homens sem pátria.

O conjunto de referências na segunda parte do livro a estes diversos aspectos da realidade paraguaia dá margem a uma ou várias interpretações possíveis do ‘Fenômeno Brasiguaios’ para o leitor? Compreender isto é imprescindível para que se possa efetivar uma análise teórico-jornalística das características que tornam esta reportagem investigativa exemplar.

2.3 – A abertura para uma conclusão do leitor sobre o assunto

Carlos Wagner, em entrevista concedida especialmente para este trabalho, revelou as preocupações que teve com os leitores, ao começar a redigir sua reportagem sobre os brasiguaios. As suas pretensões enquanto jornalista eram claras, como se verificará. Se elas foram concretizadas, ou não, é o que será analisado a seguir.

A primeira intenção de Wagner era fazer com que o leitor relacionasse a ‘questão brasiguaia’ com o contexto global onde ela se desenvolveu, informando para que aquele que o lesse raciocinasse nesta perspectiva. A medida em que ia produzindo seu texto, o repórter quis enfatizar a realidade paraguaia sem prejuízo do tema principal da matéria: ‘Se eu dissesse o que eu penso, seria um panfleto. O que eu fiz então foi `abrir´ o Paraguai, pondo o país na mesa do leitor. Ele poderia concluir o que quisesse’ (WAGNER, entrevista exclusiva, maio de 1991, Porto Alegre).

Evitar que o leitor ficasse em ‘um beco sem saída’ para entender o assunto foi o outro objetivo de Wagner. Assim, juízos de valores como considerar o regime de Stroessner no Paraguai uma ditadura e a ideia manifestada ao final do livro de que a destruição da cultura naquele país por ‘amigos brasileiros’ causa constrangimento foram inseridos com base em um conjunto amplo de informações. Elas são principalmente sobre os brasiguaios na primeira parte da reportagem e acerca da vida no Paraguai na segunda parte.

Ao longo do texto de Wagner, uma leitura minuciosa revela efetivamente possibilidades para bem mais de uma conclusão sobre os fatos. O jornalista propicia uma visão das diversas tendências, predominantes ou não, de desdobramentos do caso. O que torna o pensamento de quem se informa através da reportagem não definitivo.

Utilizando a mesma divisão de aspectos construída por Wagner, estas aberturas para o raciocínio do leitor poderiam ser delimitadas deste modo:

1ª Parte – Os brasiguaios não surgiram graças a uma emigração espontânea. Os colonos brasileiros foram atraídos para o Paraguai pelo Governo Stroessner, que pretendia aumentar a produção de grãos para a exportação. A partir daí, começam a viver enormes dificuldades, porque não ficam com a posse da terra, não recebem apoio estatal e, em um segundo mo mento, entram em conflito com os agricultores paraguaios que querem voltar a plantar nas regiões de onde foram expulsos. As lideranças rurais e religiosas, entretanto, trabalham por uma união dos agricultores, respeitando as diferenças de suas culturas. Depreende-se deste processo que as tensões entre os camponeses seriam transformadas em disposição de luta contra a situação que os oprime e os responsáveis por ela, se dependesse de agentes políticos presentes no cenário investi, gado por Wagner. O repórter elucida como a ditadura paraguaia veria resultar de seu plano uma faca de dois gumes. É este o fio condutor de seu texto: as ações dos brasiguaiose dos dirigentes das organizações que com eles se envolveram passam lentamente a se contrapor a uma determinada lógica estabelecida por sujeitos políticos de outro lado, os militares e os fazendeiros paraguaios e brasileiros. O jornalista leva o leitor a pensar se há uma síntese possível dos interesses em Jogo neste quadro ou não. Se concluir que não, provavelmente e colherá um lado para se posicionar, um ângulo para refletir sobre o problema, baseado nas informações que recebeu.

2ª Parte – Wagner apresenta os atores políticos, econômicos e culturais, na sociedade paraguaia. Através de seu relato sobre a conjuntura em que se deu a derrubada de Alfre do Stroessner, o ‘País do medo’ é descrito sem que fiquem dúvidas para o leitor de que esta qualificação usada pelo jornalista se justifica. Ele informa que havia a exigência de permissão do governo para manifestações de protesto contra a política económica e os impecilhos a elas organizados pelas forças de segurança. Denuncia a existência de presos políticos que foram detidos sem provas, como Remigindo Ramires, se questrado em território brasileiro em 1978 e acusado de ter sido um guerrilheiro nos anos 60. Fornece detalhes sobre a postura de partidos de oposição a um regime que com o general Rodríguez no Poder continua violando os direitos humanos, dando crédito a afirmações de religiosos sobre a manutenção do aparato repressivo da Era Stroessner. Quem lê o texto, porém, entende que a realidade paraguaia, onde ilegalidades como o contrabando de mercadorias se impõem contra qualquer instituição, não é imutável. Ainda que Wagner explicite sua opinião em muitos momentos acerca do que investiga, possui o mérito de mostrar que o Paraguai não ficou como está por acaso. Se há agentes que fazem a História naquele país, quem busca saber como defini-lo deve saber quais as ações conscientes possíveis e necessárias para que ele evolua politicamente.

Aceita-se na reportagem, portanto, a liberdade de expressão como valor fundamental para o desenvolvimento de uma nação, no sentido em que esta palavra é comumente empregada: uma comunidade unida por laços idiomáticos, territoriais e institucionais. Constatada a ausência da liberdade de expressão no Paraguai, não se esgotam para o leitor as nuanças que conduzem a formação da opinião. Wagner consegue demonstrar que existem diferentes perspectivas para este país da América do Sul e que elas ensejam muitas reflexões. Uma delas até que ponto a necessidade de ocupar espaços, dentro de uma estratégia económica governamental, motiva e justifica meias verdades propagandeadas para um povo sob outra jurisdição?

Sistematizadas estas observações sobre Brasiguaios; homens sem pátria, a obra O segredo da pirâmide, de Adelmo Genro Filho, passa a ser o assunto do presente trabalho. Os fundamentos filosóficos da teoria do Jornalismo estudada carecem de uma explicação pormenorizada e didática. Posteriormente, a reportagem de Carlos Wagner merecerá considerações sob outro prisma.

3 – Uma teoria

Adelmo Genro Filho nasceu em 1951 em São Borja, no interior do Rio Grande do Sul. Foi ainda na infância para Santa Maria onde concluiu o curso de Jornalismo na Universidade Federal daquela cidade, em 1975. Escreveu vários ensaios filosóficos e políticos para as revistas Teoria e Política, Civilização Brasileira e Práxis. Alguns deles foram publicados com poucas modificações no livro Marxismo, filosifia profana (Porto Alegre, Tchê!, 1986).

Na Universidade Federal de Santa Catarina, Adelmo Genro Filho lecionou na Faculdade de Jornalismo durante os anos 80. Lá cursou o mestrado em Ciências Sociais, apresentan do como tese a obra lançada em 1987 pela Editora Tchê, de Porto Alegre: O segredo da pirâmide; para uma teoria marxista do jornalismo.

O mestre em Ciências Sociais morreu em fevereiro de 1988. Deixou estabelecidos os fundamentos iniciais de uma visão filosófica sobre o Jornalismo Informativo. A metodologia utilizada por Genro Filho, as categorias que empregou para conceituar a produção jornalística e as possibilidades que abriu para uma análise teórica do significado da reportagem, em particular a investigativa, são as questões examinadas a seguir.

3.1 – A metodologia utilizada por Adelmo Genro Filho

O autor de O segredo da pirâmide (…) afirmou no prefácio da obra que o Jornalismo é uma forma de conhecimento condicionada pelo desenvolvimento do capitalismo, mas com potencialidades que ultrapassariam a funcionalidade deste modo de produção. Observe-se, portanto, que Adelmo Genro Filho considerava possível a humanidade ir além do sistema econômico e social que se tornou dominante no mundo após a Revolução Francesa de 1789.

Para tentar desvendar a essência do Jornalismo,Genro Filho se coloca em uma perspectiva marxista. Ele pretende demonstrar que nenhuma das correntes que abordou o fenômeno jornalístico compreendeu a sua especificidade. Por raciocinar de maneira materialista e dialética, o autor situa historicamente estas escolas teóricas e incide sobre os desdobramentos concretos de cada uma das premissas que as nortearam. Em outras palavras, aborda as conexões da teoria com a prática quando se trata de pensar o Jornalismo na sociedade contemporânea, no que se refere às relações de produção e reprodução das condições de vida.

Na introdução a obra, Genro Filho utiliza conceito já citado no presente trabalho: a práxis. Ela é tomada como autoprodução humana, conjunto de determinações subjetivas através das quais os homens constróem suas relações de convivência e fazem com que elas tenham desdobramentos objetivos – inovações técnicas, novas linguagens etc.

O conhecimento, para o autor, é a dimensão simbólica da apropriação social dos homens sobre a realidade. Suas formas são a ciência e a arte, por exemplo. Antes de sua defesa do Jornalismo como uma outra forma de conhecimento, Genro Filho aponta as limitações do funcionalismo, da Escola de Frankfurt, da Teoria dos Sistemas e do que chama de materialismo reducionista, enquanto concepções acerca do Jornalismo Informativo.

Nos três primeiros capítulos da obra, o funcionalismo é o objeto de apreciações. Estes são os problemas cruciais desta teoria, segundo Genro Filho.

A perspectiva funcionalista no estudo da Comunicação Social se consolida nos Estados Unidos, após a Primeira Guerra Mundial, alicerçada em estudos empíricos formais. Nas palavras de Genro:

‘O desenvolvimento dos meios de comunicação e do próprio jornalismo são analisados como processos independentes em relação ao desenvolvimento global das força produtivas e da luta de classes, ou seja, apartadas do movimento históricos em seu conjunto’ (p.33).

Isto se configura na análise funcionalista porque ela parte de um pressuposto sociológico expressado por Durkheim. Para manter o distanciamento e uma imparcialidade em re lação aos fatos, eles deveriam ser tratados como ‘coisas’. As vontades em foco no seu desenrolar não poderiam ser colocadas em primeiro plano pelo investigador. Comentando o livro Sociologia da Imprensa Brasileira, de José Marques de Melo, Genro Filho aborda as necessidades sociais respondidas pelo Jornalismo. Aparece, então, sua segunda crítica ao método funcionalista.

2) A premissa de que a atualidade se tornou alvo da curiosidade dos cidadãos, nas concentrações urbanas, para o exercício da profissão e da política, é aceitável. Ocorre que com o desenvolvimento industrial dos meios de comunicação e de transporte, a atualidade amplia-se no espaço. O mundo inteiro é integrado pelas conexões económicas e culturais edificadas no capitalismo, segundo uma determinada lógica. No bojo desta universalização, surgiram relações de dominação dentro de cada país e entre os países.Genro Filho ressalta que a atividade jornalística, para os funcionalistas, precisa se voltar para denúncia e correção de ‘patologias sociais’, como se a definição destas mazelas não dependesse de quem comanda a ordem social onde elas surgem. O escritor aceita a concepção marxista de que, sendo a classe dominante por controlar os meios de produção e reprodução dos objetos necessários para a existência humana, a burguesia também controla a veiculação de idéias para as outras classes. O caráter socializante de informações possuído pelo material impresso, sede pender dos funcionalistas, teria que simplesmente joerpetua os valores dominantes, tornando conhecidos pelo público os acontecimentos importantes da atualidade de modo que estes valores sejam enaltecidos.

3) O autor de O segredo da pirâmide (…) se detém na consequência mais direta da visão funcionalista para a prática jornalística, no segundo capítulo. Citando o livro de Fraser Bond Introducción al periodismo, Genro Filho ironiza:

‘O livro (…) considera os `deveres´ da imprensa: independência, imparcialidade, exatidão, honradez, responsabilidade e decência. A complexidade ética e política que envolve cada um desses conceitos não parece ter abalado o professor emérito da Escola de Jornalismo de Nova York’ (p.43).

Seguem-se algumas considerações acerca das manipulações dos ‘deveres da imprensa’ que poderiam ocorrer sob o capitalismo desenvolvido norte-americano. Mais adiante, Genro Filho critica a opinião de Clóvis Rossi sobre a interposição psicológica do jornalista entre fato, tal como aconteceu, e seu mero relato. Em seu livro O que é o jornalismo, Rossi afirmou que o repórter não se despe de condicionamentos ao se ver diante da notícia.

Adelmo Genro Filho encontra nesta ideia a aceitação implícita de que os fatos jornalísticos são puramente objetivos. Coerente com os pressupostos materialistas dialéticos, explica que os conhecimentos deste tipo pertencem à dimensão histórico-social, decorrendo, por mais simples que sejam, de relações estabelecidas pelas consciências humanas. Esta é uma dimensão essencial dos fatos antes de se transformarem em notícias ou reportagens. Há, portanto, não só uma psique a ser levada em conta, mas uma postura ética e ideológica de quem é responsável pela transformação dos acontecimentos em notícias.

Já no terceiro capítulo, o autor antecipa alguns elementos de sua teoria sobre o Jornalismo, ao sintetizar os limites da visão funcionalista. Como no presente trabalho o entendimento da sistematização adelmiana é imprescindível Este trecho de O segredo da pirâmide (…) será examinado em outro item. Vejamos agora as deficiências da teoria geral dos sistemas, conforme Genro Filho:

1) Com a evolução dos computadores desde os anos 50, a Teoria da Informação, voltada para o estudo do comportamento estatístico dos sistemas de comunicação, se eleva a uma generalidade mais complexa. Deste modo, acaba fornecendo alguns princípios para a Teoria Geral dos Sistemas. A visão sistêmica busca descobrir as leis gerais de todos os sistemas, seja qual for sua natureza ou composição especial.

‘Nessa busca de identificação de fenômenos e processos tão díspares, a tentativa de produzir modelos matemáticos possui importância decisiva, pois significa um meio efetivo de encontrar a objetividade comum a diversos campos da realidade’ (p.73).

Ora, se a sociedade é um sistema, os indivíduos são realidades irredutíveis e não podem ser dissolvidos ‘sistematicamente’. Para Genro Filho, os conflitos entre as várias me diações sociais constituídas pelos homens, como as classes, os partidos etc, podem levar, inclusive, a superação de uma realidade sistémica. As tensões que nascem das contradições sociais não são, desta maneira, passíveis de uma redução a algo ‘inerente’ ao todo.

2) A importância da probabilidade para medir o interesse em uma informação seria superestimada pela Teoria dos Sistemas. Não compreendendo que o Homem, através da Evolução, construiu ‘um mundo’ qualitativamente diferenciado do natural, os sistemistas escamoteiam a margem de liberdade que os seres humanos vão constituindo ao transformarem os meios para satisfazerem suas necessidades.

Uma notícia, como produção simbólica, deve ter a pertinência de sua divulgação avaliada pela repercussão que terá no processo histórico-social vivido pela humanidade, e não pela simples probabilidade de se concretizar. Cabe inserir aqui uma citação mais longa de O segredo da pirâmide porque o exemplo utilizado aparece comumente nos manuais e ilustra muito bem a assertiva anterior.

‘Se um cão morde um homem não é notícia, mas se um homem morde um cão então temos uma notícia. Realmente, a probabilidade de que um homem avance a dentadas contra um cão é bem menor (…) do que a probabilidade de novas violações dos direitos humanos pelo exército salvadorenho. Portanto, a primeira notícia seria mais importante, do ponto de vista jornalístico, do que esta última, na medida em que contém maior quantidade de informação, sendo os critérios matemáticos da Teoria da informação. No entanto, é fácil perceber que a notícia sobre El Salvador tem mais significado e importância, pelo fato de conter mais universaldade e estar ligada às contradições fundamentais de nossa época ‘ (p.80).

Por considerar sólida a tradição acadêmica produziu da pela Escola de Frankfurt, inaugurada na Alemanha dos anos 20, é a ela que Adelmo Genro Filho dirige um número maior de críticas.

1) Os teóricos Theodor Adorno e Max Horkheimer,em sua oposição tanto ao socialismo real estruturado na União Soviética da Era Stalin (1924-53), não teriam entendido a técnica como feita pelo Homem, mas como um fenômeno que receberia integralmente um significado negativo das relações sociais. Suas potencialidades de aprimoramento do modo como os homens convivem e reproduzem suas condições de existência não são valorizadas pelos frankfurtianos. A universalização da cultura e das artes, bem como a sofisticação das alternativas estéticas, são possibilidades que Adorno e Horkheimer não admitiram por completo, segundo Genro Filho.

2) O complexo formado pelos meios de comunicação de massa, inseridos na economia de mercado, foi chamado pelos frankfurtianos de Indústria Cultural. O controle e a manipulação de enormes massas por ela mereceriam a qualificação da quase onipotentes.

‘Não são percebidas brechas significativas no processo cultural hegemonizado pela burguesia, ou seja, a manifestação reproduzida e ampliada de certas contradições políticas e ideológicas’ (p.100).

3) A cultura tradicional, configurada pelo próprio acesso da burguesia à direção do sistema econômico-social, é entendida como superior a produzida pelo sistema industrial. A grande arte, em termos de literatura, teatro, música e pintura, é tomada como única referência para que se considere uma criação artística como elevada. Genro Filho afirma que não ficam indicados pelos frankfurtianos caminhos viáveis para o enfrentamento de classes através da cultura e das artes.

4) O autor de O segredo da pirâmide (…) assinaIa que a expressão ‘Indústria Cultural’ insinua que é a base industrial, independente das relações sociais de produção, a causa da manipulação e da degradação da cultura.

Genro Filho se ocupa também das contribuições contemporâneas do filósofo alemão Jürgen Habermas para um estudo da evolução do Jornalismo. Habermas tenta demonstrar, segundo o escritor brasileiro, que o estabelecimento do Estado de Direito burguês tornou possível a imprensa abandonar sua posição polêmica e explicitamente partidária do período em que os proprietários dos meios de produção não exercem o Poder Político. Prevalece, então, na época do Jornalismo Informativo, desde o final do século 19, a necessidade de um investimento do dono da empresa jornalística para gerar lucros, subordinando-se a política da empresa aos interesse da economia de mercado, com a venda de espaços publicitários a anunciantes e um controle mais rígido das notícias.

A contestação de Genro Filho a tese de que o anseio por informações jornalísticas sentido pela sociedade, ao longo do desenvolvimento dos meios de comunicação, fica em segundo plano, se repete quando o autor analisa obra de outros intelectuais brasileiros sobre o assunto. Comentando um texto de Ciro Marcondes Filho, intitulado ‘Imprensa e capitalismo’, Genro Filho explica a dialética das exigências.

‘(…) as necessidades geradas pelo capitalismo são também moedas de duas faces: uma particular, específica do sistema burguês, e outra universal, que se agrega ao gênero (humano) – ou pelo menos, a um longo período da história posterior (…).

Em termos qualitativos, a questão se repõe: o capitalismo produziu a necessidade de um gênero de informação – por meio do qual também reproduz as bases econômicas e ideológicas do sistema que é precisamente fruto do jornalismo contemporâneo, o qual será herdado por qualquer sociedade que suceder a atual’ (p.112).

Ainda antes de conceituar o jornalismo, Genro Filho problematiza o que chama de materialismo reducionista. Ele questiona o estudioso Vladimir Hudec (provavelmente de algum dos países da Europa Oriental. Não há indicações sobre sua nacionalidade), que definiu o jornalismo como produto das necessidades económicas, políticas e ideológicas da burguesia. Genro Filho argumenta que a essência de um fenómeno não se deduz integralmente de sua origem. É preciso saber o que diferencia o Jornalismo de outros ramos de produção de mercadorias surgidos com o capitalismo e não somente apontar esta vinculação.

No mesmo capítulo, o autor brasileiro manifesta sua discordância no que se refere às premissas da atividade jornalística nos países socialistas. Adelmo Genro Filho afirma que a dominação de partidos burocráticos que acreditam ser a criação de uma sociedade sem classes um ‘objetivo cientificamente fundamentado’ – e não uma possibilidade histórica – conformou um Jornalismo amorfo e avesso à novidade. Isto ocorre porque a burocracia dos partidos comunistas determinou a obediência de supostas ‘leis objetivas do desenvolvimento social’ pelos que produzem as informações, que teriam que manter um comportamento otimista a priori, pois as organizações conhecedoras daquelas normas assumiram o comando de todas as esferas da vida.

A metodologia adelmiana, portanto, abrange esta verificação dos motivos pelos quais diversas correntes teóricas não desvendam a especificidade do Jornalismo Informativo, para depois oferecer uma definição do fenómeno, sob um ângulo filosófico.

3.2 – As categorias utilizadas por Adelmo Genro Filho

No terceiro capítulo, Genro Filho se refere ao ensaio de Robert E. Park publicado em 1940 em um jornal da Universidade de Chicago. A crítica fundamental dirigida ao americano incide sobre a sua definição de conhecimento. Park aceitava a noção do ‘conhecimento de’ alguma coisa como aquele que não ultrapassava uma dimensão mais simples da experiencia, que captava apenas o seu aspecto fenomênico. O ‘conhecimento acerca de’ seria aquele mais elevado, que abarcaria um número maior de relações que perpassam o objeto. O norte-americano indicou o ‘conhecimento de’ ou ‘de trato’ como ponto inicial do contínuo onde se localiza a notícia.

O problema, para Adelmo Genro Filho, é que o conhecimento não se resume aos graus de abstração em que se realiza. O essencial é saber quais os gêneros possíveis de conhecimento. Apontando este limite do funcionalismo, o autor de O segredo da pirâmide (…) apresenta mais adiante, no capítulo sete de sua obra, sua postura diante do Jornalismo.

‘Uma vez que o jornalismo inaugura historicamente uma nova possibilidade epistemológica, uma teoria capaz de abrangê-lo deve propor claramente o problema em sua conexão com categorias fisiológicas, situando aos aspectos histórico-sociis no contexto de um reflexão de alcance ontológico sobre o desenvolvimento social’ (p.156).

A nova perspectiva de conhecimento inaugurada pelo jornalismo será, portanto, demonstrada através de categorias filosóficas. Os três conceitos utilizados por Genro Filho foram usados também pelos filósofos gregos antes de Cristo, mas sua colocação no centro da lógica foi empreendida peIo pensador alemão Friderich Hegel, no século 18. O singular, o particular e o universal são gêneros de conhecimento porque são níveis diferentes da realidade.

Em seus Princípios da Filosofia do Direito, Hegel define o Estado como espírito universal no mundo. Isto porque, na sua organicidade, sua configuração é de um conjunto de leis e instituições válidas, em tese, para todos os cidadãos em uma sociedade, em um país. A particularidade, nesta obra, é quase sempre tomada como aquilo que vem das relações entre indivíduos como partes de uma realidade maior: suas necessidades subjetivas, seus interesses concretos, como a propriedade, por exemplo.

Observe-se que a propriedade pessoal, neste caso, é algo particular, mas o direito à propriedade é universal. Hegel trata aqui do mundo jurídico, sem descartar a possibilidade de que a ‘coisa própria’ se constitua enquanto valor moral universal, ou seja, de um universo considerável de homens em suas relações sociais. Não por acaso, quando trata da esfera dos cidadãos, a sociedade civil, o filósofo alemão escreve que ela contém dois momentos onde a relação da universalidade com a particularidade ganha concretude:

A liberdade contida no sistema de proteção da propriedade pela Administração da Justiça; e

A prevenção contra a circunstância e o cuidado dos interesses particulares como algo comum por meio do Poder de Polícia e a Corporação burocrá tica dos diversos órgãos públicos.

Hegel viveu no período da Revolução Francesa de 1789, e fez dela seu objeto de investigação filosófica da dialética histórica. Uma classe transformadora, parte de uma sociedade, a burguesia, passou a representar os interesses das classes populares, os camponeses e artesãos. Ora, aquele segmento com isso encarnou a universalidade. A burguesia uniu quase todas as camadas sociais para passar a governar a França. O particular incorporou o universal, fato que demonstra como eles se influenciam reciprocamente e são indissociáveis. Nesta realidade em movimento, onde entra o singular?

Nos Princípios da Filosofia do Direito, o filósofo alemão confere ao singular identidade com o efêmero, o temporário, o aspecto único que se esgota em si, ao longo de uma ação, ou em um indivíduo. Aqui é necessária uma ressalva. Hegel era idealista. Filosoficamente, isto significa que para ele as determinações da realidade eram sempre da idéia para a concretização, do espírito absoluto para o mundo objetivo. O Estado, como encarnação de um espírito supostamente universal, deveria ser aceito em sua realidade nacional, sem que se procurasse estabelecer conexões de suas características com as relações sócio-econômicas que vigoraram ao longo de sua formação. Por isto, inclusive, Hegel defendia a monarquia constitucional de sua época. O universal, então, precederia e se imporia sobre o particular e o singular.

Os materialistas dialéticos, desde Karl Marx no século 19 até o pensador húngaro Georg Lukács no século 20, vão ressaltar, de modo oposto, a conversão mútua de um nível do real em outro e como um contém o outro. Uma frase simples esclarece isso. Quando se diz que ‘Luís Matarazzo da Silva é homem’, fica subentendido que Luís possui um conjunto de características comuns a todos os seres humanos, como a capacidade de raciocinar, mecanismos biológicos que distinguiram o Homem de outros animais, entre os quais a oposição do dedo polegar ao indicador etc. Porém, Luís Matarazzo da Silva também pode ser diferenciado dos outros homens. Seu próprio nome o diferencia. No entanto, ele combina, além disso, uma série de traços psíquicos e uma posição social de um modo que o leva a agir de determinada maneira em seu ambiente próximo. Assim, ele vai seguir uma profissão, conviver com outras pessoas, sendo conhecido como um certo indivíduo, único, singular.

Quando se pensa em uma pessoa, torna-se fácil situá-la em uma parte do mundo. O particular pode ser sua família ou sua nação. No livro Introdução a uma Estética Marxista, escrito na primeira metade dos anos 50, Georg Lukács considerou que o particular estético consiste no típico, que baliza a organização da obra artística. Quando o retrata, o artista se eleva acima de sua subjetividade imediata.

Ocorre que Lukács adota o pressuposto de que a ciência e a arte refletem a mesma realidade objetiva, como formas de conhecimento diferentes. Assim, a ciência estabelece preceitos universais. Ela busca as leis gerais que regem os fenómenos nas mais diversas esferas. Qualquer equação de se gundo grau se resolve pela fórmula de Baskarah (Para ax² + bx – c = O, usa-se -b±, mas como entender a afirmação de que a arte subordina a imediaticidade do singular e a abstração generalizante do universal no típico?

Lukács sistematiza sua visão tendo em mente a Literatura realista, que tanto no Brasil quanto na Europa se ocupou das contradições sócias. A poética contemporânea da Música Popular Brasileira fornece um bom exemplo para se dei limitar a particularidade estética. Observe-se um trecho da letra de Construção, composta por Chico Buarque de Hollanda no começo da década de 1970:

‘(…)

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo por tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

(…)

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dabçou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

(…)

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego’.

Compare-se com estes outros textos hipotéticos:

‘A classe operária no Brasil tem pouco acesso a alimentos ticos em proteínas, sendo os empregados do setore da construção civil alguns dos mais prejudicados neste aspecto. Seu baixo poder aquisitivo, que não lhe permite consumir alimentação de melhor qualidade, está diretamente relacionado com suas condições de trabalho altamnete perigosas. Dados estatíticos comprovam que x milhares de trabalhadores da construção civil morrem a cada ano caindo de prédios incabados, que jamais teriam possibilidades econômicas de ocupar.’

‘O pedreiro Ademir Souza Gonçalves morreu ontem à uma da tarde caindo do alto da construção onde trabalhava em Copacabana. Meia hora antes de cair no meio da rua, quando o movimento de automóveis era intenso, Gonçalves tinha almoçado arroz com feijão e bebido um resto de cerveja preta.’

Chico Buarque não realizou uma investigação no âmbito das ciências sociais, recorrendo a estatísticas sobre acidentes de trabalho no Brasil, nem fez uma reportagem sobre um acidente fatal que matou um determinado pedreiro, o compositor carioca desenvolveu em versos a tipicidade de uma parte dos brasileiros em seu drama social cotidiano totatalizou esta representação no particular, com sua capacidade criativa.

Adelmo Genro Filho não aceita a premissa lukacsia na de que a arte e a ciência refletem a mesma realidade. O criador é inseparável da obra, à medida que recria a dimensão do real de que se ocupa.

‘Trata-se de uma realidade (a refletida pela arte) que mantém traços de identidade e pontos de pertinência em relação áquela que é objetio da ciência. (…) A ciência tende para a objetividade, para a revelação em si do objetio, esse é o movimento que a caracteriza. A arte funde sujeito e objeto no contexto de uma totalidade particular, mas cujo conteúdo, embora não seja exaustivo, refere-se sempre à totalidade mais ampla da existência histórica e ontológica dos homens e da sociedade’ (p.157).

Ainda neste capítulo de O segredo da pirâmide, Genro Filho explica que o universal contém e dissolve os diversos fenómenos singulares e os grupos de fenômenos particulares que o constituem. O singular integra tanto o particular como o universal., em sua identidade, e o particular se situa dinamicamente entre os extremos. O escritor traz o caso de uma greve na região do ABC em São Paulo para mostrar como estas três dimensões da realidade se coesionam em um fato jornalistíco.

‘Ao ser transformada em notícia, em primeiro plano e explicitamente, serão consideradas aqueles fatos mais específicos e determinados do movimento, ou seja, os aspectos mais singulares. Quem, exatamente, está em greve, quais são as reivindicações, como está sendo organizada a paralisação, quem são os líderes, qual a reação dos empresários e do governo, etc; (…) Mas a notícia da greve terá de ser elaborada como pertinente a um contexto político particular, levando em conta a identidade de significado com outras greveres ou fenomenos sociais relevantes. Será um acontecimento que, de modo mais ou menos preciso, terá de ser situado numa ou mais classes de eventos, segundo uma análise conjuntural que pode ser consciente ou não.

(…)

No entanto, a universidade desse fato político, em que pese não seja explicitada, está necessariamente presente enquanto conteúdo. Ou seja, com o pressuposto que organizou a apreensão do fenômeno e como significado mais geral da notícia, teremos uma determinada concepção sobre a sociedade, a luta de classes e a história’ (p.163).

No oitavo capítulo de O segredo da pirâmide,Genro Filho reforça as noções acerca desta dialética. O jornalismo surgiu como uma forma social de percepção da realidade necessária para todos os seres humanos ainda que dentro de um sistema onde existe uma dominação de classe. Esta parte da sociedade contemporânea, que exerce controle econômico e político de várias maneiras sobre os meios de comunicação, não conduz à especificidade do fenómeno jornalístico.

3.3 – A especificidade do jornalismo

Explicitando mais uma vez seu entendimento de que as potencialidades do jornalismo transcendem a realidade histórico-social do capitalismo, Adelmo Genro Filho apresenta o que considera O segredo da pirâmide no capítulo nove. Arites desta definição da essência do jornalismo, o escritor arrola algumas teses sobre a objetividade, os sujeitos e os fatos jornalísticos em geral.

A sociedade, tomada como simples objetividade, é vista como probalistica. Genro Filho acrescenta que ela envolve sujeitos humanos, os quais criam margens de escolha entre estas probabilidades, delineando assim a esfera da liberdade. A totalidade concreta, categoria cara ao filósofo tchechoeslovaco Karel Kosik, já referido, é entendida como transformação da possibilidade e da probabilidade em liberdade através da criação e superação de necessidades no mundo social graças ao trabalho.

Nesta relação global entre o sujeito e o objeto, um produz o outro. A objetividade também é produzida pelo homem, apesar de, pela própria definição dela, estar fora da consciência humana. No fluxo contínuo da realidade objetiva, os fatos jornalísticos são um recorte efetuado a partir de uma escolha. Genro Filho ressalta que não se cai no subjetivismo e no relativismo quando se admite que há uma substância histórica e socialmente constituída independentemente de qualquer enfoque subjetivo e ideológico.

‘A verdade, assim, é um processo de revelação e constituição dessas substância. Vejamos um exemplo extremo: ocorreu um fato que envolve Pedro e João, no qual o último resultou mortalmente ferido por tiro disparado pelo primeiro. Psso interpretar que Pedro `matou´, `assassinou´ ou `tirou a vida de João´. Ou, ainda, que Pedro apenas executou, sob coação, um crime premeditado por terceiros. Não posso esconder, entretanto, que Pedro atirou contra João e que este resultou morto’ (p.188).

A notícia, em sua redação, foi ‘desenhada’ por inúmeros autores dentro e fora do Brasil como uma pirâmide in vertida. O lead, termo usado pelos norte-americanos, significa aproximadamente ‘cabeça’ da matéria. Ele se materializa pela resposta a seis perguntas no momento de escrever o primeiro parágrafo, que sintetiza o fato: que, quem, onde, como, quando e por quê? A pirâmide é invertida, conforme esta noção presente na maioria dos manuais de jornalismo, porque a notícia caminharia do mais importante para o menos importante.

Genro Filho concorda que o lead encarna o momento jornalístico principal, mas situa a questão sob um outro ângulo. Para o escritor, o jornalismo é uma forma de conhecimento que se cristaliza no singular. Abordando sob o prisma epistemológico (ramo da filosofia que investiga a produção do conhecimento) a notícia, o mestre em ciências sociais inverte a pirâmide.

‘(…) a notícia caminha não do mais importante para o menos importante (ou vice-versa), mas do singular para o particular, do crime para a base. O segredo da pirãmide é que ela é invertida, quando deveria estar como as pirãmides seculares do velho Egito: em pé, assentada sobre sua base natural’ (p. 191).

Os diferentes triângulos servem para Genro Filho distinguir as modalidades jornalísticas. O equilátero fornece o modelo da menor unidade de informação jornalística,que é a notícia diária. A igualdade dos três ângulos configura um equilíbrio entre a singularidade do acontecimento, a particularidade que o contextualiza e o seu significado universal dentro de um contexto. Esta significação é delineada por idéias e valores que o repórter fará como referências aceitáveis para todos os indivíduos ou a grande maioria deles.

Um triângulo isósceles, com a base menor que os Iados, representaria a notícia sensacionalista, que se caracterizaria por uma exacerbação da singularidade, quase sem nenhum elemento de contextualização. O caso oposto é ilustrado por um isósceles com a base maior do que os lados, representando a abertura para uma generalização ampla do singular ao particular.

A produção da notícia se orienta pelos pressupostos filosóficos e ideológicos do jornalista, que os projeta de modo implícito pela hierarquização dos fatos que a compõem. Um profissional capaz de efetivar uma grande reportagem potencializa ao máximo estas possibilidades, apesar do controle de informações por seus patrões e pelos anunciantes que financiam o jornal onde trabalha, ou não? Voltemos a Brasiguaios, homens sem pátria.

4 – O ‘xis’ da questão

No livro A aventura da reportagem, escrito pelos jornalistas Gilberto Dimenstein, da Folha de S.Paulo, e Ricardo Kotscho, então do Jornal do Brasil, há uma série de experiências relatadas por estes dois profissionais da imprensa brasileira. Não menos importantes são algumas afirmações de Clóvis Rossi, a quem já se fez referência no presente trabalho, que escreveu o prefácio para a obra.

Rossi concorda com a definição de Carl Bernstein, do Washington Post, de que o jornalismo deve consistir na melhor verdade possível de se obter. Quando se refere à reportagem, o brasileiro sentencia que ela é a técnica de contar boas histórias. Dimenstein acrescenta que o imprevisível fornece sempre material abundante para o ótimo jornalismo, no capítulo de A Aventura da Reportagem que escreveu.

Os profissionais da Folha de S.Paulo apreendem um aspecto da questão. Para analisar a investigação sobre os brasiguaios, parte-se aqui de pressupostos mais abrangentes. O primeiro deles: a verdade é um processo. Não se trata, portanto, de verificar se Carlos Wagner alcançou a ‘melhor verdade possível’, pois isto implicaria admitir que as conexões verdadeira dos fatos são absolutamente inalcançáveis.

A segunda e a terceira premissas estão interligadas. Aceita-se a visão adelmiana do jornalismo como uma forma de conhecimento calcada na singularidade, e toma-se a reportagem como busca de singularidade de cada acontecimento para que seus desdobramentos particulares .sejam estabelecidos. A concepção do jornalista acerca da realidade onde atua e sua capacidade de expressão ‘para contar boas histórias’ determinam o grau de contextualização das ações invejs tigadas. Por conseqüência, são fatores decisivos para que seus leitores recebam informações corretas e reflitam sobre os assuntos que lhes despertarem interesses.

4.1 – Os momentos da investigação de Wagner

Carlos Wagner soube dos braiguaios através de uma nota publicada no jornal Zero Hora, enquanto estava de férias. Voltando a exercer suas atividades, propôs o tema como pauta, já sabendo das dificuldades da investigação. Os aspectos do problema, como a situação em si dos colonos brasileiros no Paraguai, os procedimentos da ditadura Stroessner para atraí-los, as condições políticas e económicas daquele país da América Latina, foram elucidados, segundo revelou o repórter na entrevista para o presente trabalho, com ações rápidas e uma utilização precisa de informações das fontes de que dispunha.

O jornalista ficou duas semanas viajando pelas regiões fronteiriças, correndo o risco de ser preso por causa da repressão à imprensa no Paraguai. De volta a Porto Alegre, depois de ter recolhido todos os dados de que precisava, passou a planejar como redigiria a série de matéria que, no seu conjunto, constituiriam a reportagem.

A delimitação do objeto investigado por Wagner foi essencial para que o caso dos brasiguaios fosse desvendado em suas especifidades. Entretanto, há um outro fator que uma análise teórico-jornalística não pode desconsiderar,quando uma grande reportagem é o assunto. A visão adelmiana sobre o jornalismo deixou uma lacuna importante quanto a este aspecto do problema.

Daniel Herz foi professor na Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina e um dos colaboradores de Adelmo Genro Filho em sua pesquisa. Teve acesso, inclusive, aos originais de O segredo da pirâmide. Em entrevista concedida especialmente para o presente trabalho, Herz admitiu que o esquema adelmiano manteve em aberto a questão do gênero jornalístico ora em exame. A grande reportagem não está compromissada com a imediaticidade da produção jornalística diária.

Ora, aquilo que surge de novo, de imprevisível, e que se torna notícia, de um dia para o outro, tem a agudeza de sua singularidade contida nas seis perguntas clássica do lead, conforme a teoria adelmiana. Imaginemos, por exemplo, que Wagner se limitasse a esperar o surgimento de fatos relacionados com os brasiguaios. Em uma certa data, ele publicaria, talvez, uma matéria cujo primeiro parágrafo seria assim:

‘O governo paraguaio admitiu ontem que montou várias agências de propaganda para atrair colonosbrasileiros em busca de terras, sem que a posse delas estivesse garantida para eles no apís comandado por Alfredo Stroessner. O objetivo dos militares paraguaios era aumentar a produção de grãos para a exportação em seu país.’

Estão aí respondidas as perguntas que, quem,onde, como, quando e por que. Entretanto, a ditadura militar no Pa raguai dificilmente confirmaria estes procedimentos. Não é por acaso que os regimes autoritários tolhem ao máximo a liberdade de movimentos dos profissionais de imprensa. O estranho é que alguns dos profissionais atuantes nos meios de comunicação julgam que uma agenda com números de telefones e um destes aparelhos são tudo que alguém precisa para ser um bom repórter.

Uma investigação jornalística desmente esta simplificação, que, interpretada ao pé da letra, conduz a um ‘fontismo’ perigoso. Cabe aqui uma rápida digressão em torno das elaborações de Hegel em sua Filosofia do Direito.

O pensador alemão, como no presente trabalho se observou, identificou a singularidade com a dimensão temporal imediata de um acontecimento. Além disso, afirmou que o conhecimento de um caso jurídico em sua singularidade não contém jurisdição. Isto significa que não basta alguém incendiar a casa de um outro para que ocorra um crime. Se a sociedade da qual estes dois indivíduos participam tiver atingido um estágio de relações econômicas onde a destruição proposital do patrimônio particular for um procedimento doloso típico, haverá um crime.

A esfera jurídica necessita de uma cadeia de mediações para incidir sobre ações concretas. Elas vão da imposição de valores e normas como dominantes em um determina do universo à formulação de mecanismos (leis, punições,etc.) pelos legisladores. Do mesmo modo a singularidade de um fato por si não leva ao conhecimento de sua significação na época em que ele ocorre. Na notícia diária, a contextualização possui menos espaço do que na grande reportagem, que traz mais elementos para a tipificação do acontecimento em uma atualidade histórica. Brasiguaios; homens sem pátria demonstra para que se deve elucidar o singular em uma trajetória.

4.2 – A busca da singularidade dos brasiguaios

Todo conjunto de acontecimentos é novo em relação a uma realidade mais complexa, dentro de um universo bem mais amplo. Uma reportagem investigativa consiste na busca da singularidade destes fatos interligados para situá-los em seus desdobramentos particulares, de modo que concepções e valores do jornalista sobre questões que interessem a todos dentro de uma sociedade ficam implícitos.

Além de uma ida ao palco onde se desenrolou a trajetória dos brasiguaios, Wagner precisou em um segundo momento planejar e organizar seu texto, hierarquizando os diversos aspectos do problema. Não começou sua matéria com um lead convencional, mas sua primeira frase já apresenta uma faceta única no movimento dos agricultores. Uma explicação inicial se desenvolve no primeiro parágrafo e será reforçada pelos dados ao longo da reportagem. Eis o trecho citado:

‘A colonização das terras paraguaias pelos colonos brasileiros não foi um movimento populacional espontâneo. Ela foi minuciosamente pensada pelas autoridades dos dois países. Para o Brasil é interessante ter 10% da população do paraguai composta de brasileiros’ (p.13).

Observe-se que a singularidade se mantém como centro de toda a primeira parte da matéria. Quando Wagner explica como surgiu o termo ‘brasiguaios’, reproduz o diálogo entre um agricultor e o deputado federal, na época, Sérgio Cruz, no qual este diz que os colonos eram uma mistura de brasileiros com paraguaios sem pátria. O jornalista apresenta um movimento temporal delimitado que sintetiza com precisão a falta de direito daqueles homens, ressaltando mais uma vez de forma clara a dimensão singular do que viveram.

Esta mesma lógica explica os depoimentos do ‘negro José e do alemão Molar’. Os indivíduos, de carne e osso, concretos em suas angústias e vontades, contam o que viram e lembram. José Rodrigues e Molar Lang são a memória viva da colonização brasileira planejada no Paraguai. Wagner é mais uma vez feliz ao trazer para o leitor unicidades de um fato na saga que investigou.

‘Rodrigues lembra de uma mulher que ficou `doente da cabeça´ porque os seus moleques morreram. `Ela tinha quatro filhos; depois que o último morreu, ela conversava com eles. Xingava as crianças porque tinham sujado a roupa.´ Depois de contar esta história, ele entra em uma espécie de depressão emocional. Eu tento arrastá-lo para outros assuntos, para contornar a situação. Pergunto como vive hoje. Ele me olha e diz: `Vivendo, ora!´ Pois o Rodrigues continua como agregado e plantando hortelã a meias, para os japoneses’ (p. 2?).

Quando aborda o retorno dos brasiguaios ao seu país de origem, Wagner demonstra outra especificidade do caso: a falta de ajuda dos sindicatos de trabalhadores rurais brasileiros. O que ocorreu com o presidente da entidade de Foz do Iguaçu, Miguel Issor Sávio, um dos poucos a colaborar com os brasiguaios, comprova o quanto esta ação era perigosa:

‘(…) na noite do dia 2 de agosto de 86 (…) Sávio tinha ido visitar uns parentes com a esposa. Perto da meia-noite chega em casa e é recebido por um estranho. Este (…) ensaiou uma espécie de assalto. Sávio disse: `Pode levar tudo.´ O estranho sorriu e disparou os tiros’ (p.28).

Todo o esforço secreto, que culmina na formação de lideranças entre as famílias brasiguaias e no surgimento de uma rede de informações para que elas organizem seus acampa, mentos e suas articulações políticas, delineia no segundo capítulo a singularidade dos caminhos percorridos pelos colonos. O dossiê publicado resumido por Wagner sobre as violên cias comprovadas contra trinta e um deles resume de maneira contundente a dor deste grupo social.

Quando trata dos que ficaram no Paraguai, o repórter aponta como traço dos agricultores seu conformismo aparente. Um dos fatos escolhidos para aparecer no texto se revela cómico sem deixar de ser trágico. Através dele, ocli. ma de repressão no Paraguai encontra como resposta ingenuidade em um colono, característica que o salva de uma prisão. A história foi contada por um líder camponês, cujo nome Wagner preserva em sigilo:

‘Um colono foi parado na estrada pela polícia paraguaia. Eles lhe perguntaram se os seus documentos estavam em ordem. Eles não estavam em ordem. Daí um dos agentes perguntou se ele era Colorado. O colono disse sim. Foi mandado embora sem ser perturbado. Acontece que ele pensou que tinham perguntado se ele torcia para o time de futebol do Internacional (Colorado de Porto Alegre)’ (p.43).

O Partido Colorado, do general Stroessner, adquire mais importância na segunda parte do livro. Nela, Wagner se deterá com mais atenção no Paraguai enquanto contexto particular de uma América Latina dominada por ditaduras ou em fase de sua lenta superação ao mesmo tempo transformada pela existência dos brasiguaios e condicionante dos rumos a serem seguidos por eles.

A singularidade da questão brasiguaios é apreendida, portanto, como processo de exploração planejado por uma ditadura militar que assumiu determinadas perspectivas econômicas e políticas para seu país, e, assim, ensejou o surgimento de um conjunto de agricultores oprimidos e marginalizados sem pátria porque sem direitos nem no país para onde foram, nem no país de onde saíram. A lenta reação dos colonos a isso também é reconstuída como dimensão única desta trajetória, e as suas individualidades, por seus depoimentos e atitudes organizativas ou de perplexidade (como no diálogo onde aparece o termo ‘brasiguaios’), cumprem a função imprescindível para a enorme qualidade da reportagem. Este gênero jornalístico adquire um estatuto próprio em relação à pesquisa histórica não só pela repercussão da atualidade em sua elaboração, mas por ter a singularidade como ponto de partida e integrador dos acontecimentos, na contextualização destes. Qualquer historiador teria que examinar o ‘caso brasiguaio’ à luz de categorias universais próprias da ciência em que se especializou a partir do período vivido por Brasil e Paraguai para a análise da situação daqueles colonos. Isto não significa que as fronteiras entre o Jornalismo e a História não sejam derrubadas muitas vezes, porém,não se deve esquecer que elas existem.

4.3 – A materialização da reportagem

A reinversão da pirâmide, para que ela seja figura da construção do texto jornalístico, é um pressuposto aceito por Carlos Wagner. Segundo ele, o mais importante em uma reportagem investigativa consiste na adequada contextua, lização do acontecimento, a qual se encontra, utilizando-se a forma geométrica, na base da pirâmide com os pés no chão. Por sua vivência, Wagner aceitou intuitivamente a teoria miana.

Na última parte da reportagem, o centro do proble ma passa a ser o Paraguai. A tipificação deste país da América Latina, no que se refere às consequências do sistema econômico para sua população, explica o quadro enfrentado pelos brasiguaios. Quando aborda a economia do país governado por mais de 30 anos por Alfredo Stroessner, o jornalista lembra que até a chegada do general ao Poder, as atividades pro dutivas eram voltadas para as necessidades da população. O modelo agroexportador começa a ser implantado, e a reforma agrária se realiza para que se plantem produtos exportáveis, como soja e algodão. Por isso, além do fato de não terem como sobreviver no Brasil, os colonos brasileiros tornam-se o ‘público-alvo’ da propaganda elaborada pelas agências de colonização paraguaias.

Com o desabamento dos preços de mercadorias expor tadas, no inicio da década de 80, aliado à falta de uma pro posta de desenvolvimento industrial e à força do contrabando que conta com a conivência das autoridades, a crise da ditadura militar paraguaia se acentua. A oposição política se articula, assim como a ala progressista da Igreja Católica e o Movimento Intersindical de trabalhadores, que congrega os sindicatos independentes da federação de trabalhadores reconhecida oficialmente. A concentração de renda e a falta de direitos humanos se somam para que as pressões ao regime se tornem incontrolãveis. A mudança, entretanto, é de um general por outro, e este outro é confirmado pelo voto popular: Andrés Rodrigues venceu as eleições presidenciais em 1989.

Os problemas da posse da terra se agravam com a emigração dos colonos brasileiros. Wagner revela que mais de 30 mil famílias campesinas perambulam pela fronteira com o Brasil, depois da ida de mais de 30 mil brasileiros para o Paraguai. O dispositivo constitucional daquele país que assegura a cada família camponesa 25 hectares para a sobrevivência foi totalmente desrespeitado pelos comandantes da ditadura militar.

Termina, então a reportagem com a tipificação da saga dos brasiguaios como um plano autoritário dos militares paraguaios, que se somou à falta de uma vontade política do regime instalado no Brasil após 1964 de realizar uma reforma agrária no país. Carlos Wagner se preocupou com o contexto paraguaio. Abordam-se agora algumas condições sociais e econômicas brasileiras que contribuíram para a emigração dos camponeses, que o repórter poderia lembrar com mais ênfase, mas isto não diminui seus méritos.

Dados atualizados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apontam 21 milhões de agricultores sem terra. Os latifúndios, caracterizados como grandes propriedades improdutivas e ociosas, espalham-se por 85% das terras agriculturaveis. Sobram 9,5% destas para as pequenas propriedades. Estudos recentes da Organização das Nações Unidas mostraram que só Honduras e Serra Leoa concentram mais a renda do que o Brasil.

Dificuldades de comercialização de produtos agrícolas, como a oscilação de preços e o transporte sempre caro para as regiões urbanas, além do acesso restrito a métodos eficazes de plantio são alguns dos fatores responsáveis pelas migrações e emigrações das famílias brasileiras do cam po nas últimas décadas. Ao longo deste período, a mecanização chegou a lavouras de poucos agricultores: os que tinham maior quantidade de terras e podiam pagar salários a empregados. O desenvolvimento do capitalismo nas zonas rurais bra sileiras não tirou de cena trabalhadores que podem contar com um emprego apenas em uma estação do ano, por causa da cultura com que lidam, e sem as mínimas garantias do atendimento a necessidades básicas, como os ‘bóias-frias’. Eles são quase um terço dos 21 milhões de camponeses.

O leitor encontrará um panorama abrangente do quadro agrário brasileiro e suas conexões com o mercado externo, desde a época colonial, no livro os lucros da fome, de Miranda Neto. Este agrônomo reuniu várias informações importantes. Entre estas, a de que na América do Sul 17% dos proprietários controlam 90% da terra.

A obra de Wagner se materializou nesta realidade, que é resultado da consolidação de relações sociais entre os homens e deles com o mundo objetivo. A reportagem investigativa consiste na busca da singularidade da saga dos brasiguaios para revelar seus desdobramentos em uma parte da América Latina. O conjunto destes desdobramentos integra a tipificação do fato como imposição autoritária dos que comandaram o Estado paraguaio na Era Stroessner, com reflexos na luta por dignidade travada por camponeses de dois países.

As mediações organizativas e as ações planejadas pelos agricultores para assegurarem suas sobrevivências são contrapartida do autoritarismo. Elas conferem a exatidão geométrica do triângulo isósceles com a base no chão que simboliza a matéria de Wagner, pois também ficam elucidadas peIo jornalista nas suas singularidades e particularidades. E manam do livro de Carlos Wagner valores como o respeito à vida, o apoio à liberdade de expressão e a solidariedade. A reportagem os projeta como universais.

5 – Conclusão

A teoria adelmiana, que define o Jornalismo como uma nova forma de conhecimento cristalizada na singularidade dos acontecimentos, pode oferecer a possibilidade de apreensão do significado da reportagem investigativa. A fecundidade do que surge de novo, de diferenciado, no fluxo histórico-social, se torna plena neste gênero jornalístico quando o repórter é capaz de situar um fato, ou um conjunto de fatos que constitui uma trajetória, como parte típica de uma realidade.

O real se configura como processo delineado através da práxis, isto é, do conjunto de relações de um sujeito com a objetividade. A ação política é uma destas esferas, onde as perspectivas dos grupos e sub-grupos sociais se colocam em confronto dentro e fora do complexo de instituições estatais. Na América Latina, em países como o Paraguai, os interesses das oligarquias dominantes prevaleceram nas últimas décadas via ditaduras militares.

Fugiria dos limites do presente trabalho uma análise mais aprofundada de como se imbricaram os projetos dos militares, enquanto segmento responsável por moldar as condições políticas e de ‘segurança nacional’ paraguaia, e os rumos económicos favoráveis aos donos da terra no Paraguai. Coube, sim, demonstrar como a investigação de um resultado das imposições ditatoriais é exemplo de um jornalismo instigante, que leva os leitores à reflexão, sob um prima teórico.

A essência de uma trajetória a singulariza em relação a algo. A especificidade, ou a série de especificidades da saga dos brasiguaios, é situada como decorrência do caráter do regime comandado por Alfredo Stroessner por mais de trinta anos e da privação do direito à terra para os cara poneses brasileiros. Direito que deveria ser elementar em um país com mais de oito milhões de quilômetros quadrados.

Carlos Wagner, como repórter competente, souber dar com os níveis diferentes da realidade. É pouco importante se esta capacidade surgiu de sua intuição e das experiências concretas que ele viveu. Fundametal e entender que ele sabe que são os homens e mulheres que edificam as relações sociais e são por eles condicionados. Das mediações que eles constróem, nascem ou não modificações estruturais e radicais nessas relações.

O jornalista estabelece conexões sem que abdique das ideias e dos valores com os quais se identifica. Ele pode até explicitá-los, em uma reportagem investigativa de grande porte, quando os fatos com que lida propiciam sugerir a universalidade de questões permanentes. Dizem respeito a toda a humanidade a dignidade da vida, a liberdade de pensamento e expressão, a igualdade de direitos, enfim.

Da notícia diária, de sua forma textual, também emanam – aí quase sempre implicitamente – concepções filosóficas ou culturais do indivíduo que a elabora. Estas conceções não precisam se articular de modo sólido, mas se manifestam desde o momento em que se escolhe o ângulo de abordagem do acontecimento noticiado.

A sigularidade conforma o aspecto novo e único, enquanto diferenciador do fato, dentro do fluxo histórico do qual são retiradas as notícias e as grandes reportagens. As informações se tornam completas, levando o leitor à reflexão, quando inseridas em uma parte da realidade histórico-social que esclarece a significação do fato, sua tipicidade.

Todo este movimento processual fato (trajetória) – investigação do jornalista – notícia/reportagem é dotado de maior grandeza à medida que o profissional percebe o fato como ato. Os acontecimentos histórico-sociais possuem protagonistas, desde suas origens. Brasiguaios; homens sem pátria conduz a esta compreensão.

As contribuições de estudantes de Jornalismo e dos que o exercem sobre os assuntos analisados por certo continuarão. Como forma de conhecimento consolidada no mundo con temporâneo, suas potencialidades enquanto atividade informa, tiva permitem o desvendamento dos dramas e das perspectivas de homens e mulheres como os brasiguaios, das aventuras que em um verso o poeta Paulo Mendes Campos foi capaz de resumir.

******

Jornalista da Televisão Pública Educativa do Estado do Rio Grande do Sul