Monday, 02 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Vida, vidas

– Eu devo minha vida a você, professor.

Certo, entendo. Afinal, minha função é ser talvez um canal ou, sem exagero, um tubo de conexão de PVC, ou, pelo menos, um conta-gotas do imenso fluxo vital que, desde sempre, transporta e irriga a humanidade. Por via das dúvidas, pedi àquele aluno, calouro de Filosofia, para ser mais específico.

– É minha vida biológica mesmo. Se não fosse você, provavelmente eu não estaria aqui. Não faça essa cara, já explico.

Fiz essa cara, óbvio. Até então, nunca tinha visto esse rapaz. Será que… O terreno parecia pantanoso. Desembucha.

– Lembra de um jornal que você fazia aqui na PUC-SP, no século passado? Se não lembra, vou trazer um exemplar.

Dei corda. Claro que não esqueci do Porandubas, que fundei e que editei durante nove anos, uma das cinco estrelas a que tenho direito no currículo Lattes. Disse que trouxesse o tal exemplar, a que ele parecia atribuir o peso de uma certidão de nascimento, ou mais.

Na semana seguinte, antes da aula, ele chegou com uma folha amarelada dentro de um plástico. Reverente, abriu o invólucro; curioso ouvi sua história. Era uma edição especial de dezembro de 1978 com crônicas, contos, desenhos e poesias de uma comunidade universitária embalada pelo clima natalino.

– Está vendo esse poema aqui? Foi meu pai que escreveu, quando estudante.

Era um texto juvenil, intitulado ‘É hora’.

– Ele e a namorada foram seus alunos no primeiro ano de Medicina, em 1977. Parece que vocês se entendiam bem. Lembra deles?

Lembrava, sim, e até nos encontramos algumas vezes, como se verá. Mas me incomoda um pouco essa ênfase na memória, coisa de que não sou muito dotado. Mal consigo lembrar de nomes de alunos, embora guarde bem alguns episódios, rostos e detalhes físicos, embora, ai de nós, o corpo mude para todos. Prossiga.

– Pois bem, a coisa entre os dois foi ficando séria. De repente – quem sabe o que se passa no coração de uma garota? – ela avisou que se mudaria para o Nordeste e terminaria seu curso por lá. Seria o fim de um amor cheio de promessas… e incertezas. O jovem não se conformou, apelando para tudo quanto era argumento.

Acontece. Coitado do futuro pai deste menino: nessas horas, argumentar parece que não adianta. E como o Porandubas entrou nessa história?

– Desesperado, ele tentou uma última jogada. Mandou esse poema pra você publicar no jornal. Lembra…?

Como não? O sujeito me enchia a paciência todo dia, querendo saber ‘meu texto foi aprovado? – claro que aprovei, ué –, que bom, mas quando é que isso vai sair?’. Era difícil garantir exatamente quando isso chegaria da gráfica: era sempre aquela corrida de obstáculos quinzenal contra a lei de Murphy, para cumprir os prazos.

– Bem perto da partida da namorada, afinal saiu a edição com o poema de meu pai.

Fico imaginando uma cena de cinema. Ele sai correndo da redação com o jornal quentinho nas mãos, para mostrá-lo à amada. Meio desinteressada, ela vai folheando, folheando. Até que se depara com a obra-prima do seu apaixonado. Surpresa? Espanto? Irritação?

– Lê só.

Leio. Edição 17, página 5. ‘Partir: só partir/ Partir só. Partir por partir: pra deixar/ Deixar pra partir… Todas as noites o avião parte/ Todas as noites o sol parte, ou não?… partir mesmo por quê? Pra quê? Do quê?… Partir ou não: eis a questão!’. Ufa! Papel aceita cada coisa… Como é que coisas banais se tornam sagradas?

– Pois a namorada se encheu de ternura. Decerto já estava balançada e os dois desabaram nos braços um do outro. Reataram, ela cancelou a viagem e mais pra frente acabaram se casando.

Disso eu sabia. O casamento deles foi no mesmo dia que o meu, embora anos depois. Por coincidência, algumas vezes nos encontrarmos nessa data num restaurante de comida brasileira. Um dos filhos daqueles dois ex-alunos é este jovem que está diante de mim. Por meio dele, só agora tomo conhecimento dos desdobramentos de uma história familiar na qual me envolvi muito antes de ele nascer. À maneira do conto Irmãos, de L. F. Veríssimo, ele conclui.

– Entendeu? Se você não tivesse dado uma forcinha pro poema do seu aluno, a namorada dele, minha futura mãe, teria ido embora. Outros espermatozóides, outros óvulos, outros filhos. Outro queixo, eu podia ser uma menina. Mas os dois se casaram e olha eu aqui. Devo minha vida também a você, certo? Valeu aí.

Abraçamo-nos. Ah, a gratuidade da coisa!

– Gente, vamos começar a aula. Se você permite, tenho um caso incrível pra contar.

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Jornalista, professor do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP