O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (10/06) pela TV Brasil comemorou o bi-centenário do primeiro jornal do país, o Correio Braziliense. Impresso em Londres pelo jornalista Hipólito da Costa, o periódico circulou de 1808 a 1822, um período de profundas transformações na estrutura sócio-política do Brasil. Perseguido pela Inquisição, hoje Hipólito é o patrono dos jornalistas e da cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Participaram do programa ao vivo a historiadora Isabel Lustosa, no estúdio do Rio de Janeiro, e o escritor e professor Antônio Costella, em São Paulo.
No editorial que precede o debate ao vivo, Alberto Dines questionou a razão de a imprensa não ter valorizado os 200 anos do Correio: ‘Que pecado cometeu Hipólito da Costa para ser esquecido numa data tão gloriosa? O que há de errado na sua biografia para incomodar tanto os donos da verdade? Só porque era maçom, só porque combateu a censura e a Inquisição, deve Hipólito ser condenado ao esquecimento?’. O jornalista ressaltou que as duas exceções foram a Folha de S.Paulo e o Correio Brasiliense do Distrito Federal.
Também antes do debate, Dines comentou os fatos de destaque da semana. A estréia da jornalista Lílian Witte Fibe como âncora do programa Roda Viva, da TV Cultura, foi o primeiro tema da seção ‘A mídia da Semana’. Em seguida, o foco foi o papel da imprensa no monitoramento dos candidatos nas próximas eleições municipais. Para finalizar, Dines analisou a falta de continuidade da cobertura esportiva e o mote do comentário foi a polêmica do último jogo do Vasco da Gama contra o Cruzeiro.
A primeira grande missão de Hipólito
A reportagem exibida antes do debate ao vivo mostrou que Hipólito da Costa nasceu na colônia de Sacramento, uma povoação portuguesa que hoje pertence ao Uruguai, em 1774 e era filho de fazendeiro. Formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, em Portugal, em 1798. O diplomata e cientista político Paulo Roberto Almeida explicou que D. Rodrigo de Souza Coutinho, então ministro de D. João VI e futuro Conde de Linhares, encarregou Hipólito da Costa de uma missão que marcou a vida do jornalista: uma longa viagem de prospecção industrial e agrícola aos Estados Unidos.
O objetivo era recolher espécies e modelos e enviar relatórios a Portugal. O projeto tinha aspectos secretos, como a missão de recolher amostras da cochonilha, um inseto usado no processo de tingimento. Além da Filadélfia, onde passou a maior parte dos dois anos, Hipólito também conheceu Washington e Nova York.
Hipólito da Costa escreveu um relato desta ‘viagem antropológica aos Estados Unidos’, como definiu Paulo Roberto Almeida, o Diário da Minha Viagem para a Filadélfia. No livro, o jornalista tratou de assuntos como o sistema bancário americano, eleições, indústria, especulação financeira, democracia e liberdade de culto. Também se deteve sobre temas mais amenos, como festas, mulheres e cavalos. Para o jovem Hipólito da Costa, educado em Coimbra, o comportamento do presidente americano parecia ‘grosseiro’ e as festas locais, ‘caipiras’. Hipólito conheceu um mundo completamente diferente do Europeu.
O relato do jornalista, o primeiro americanista brasileiro, é ‘atual’ na opinião de Paulo Roberto Almeida. Provavelmente, foi nesta viagem que Hipólito da Costa foi iniciado na maçonaria e teve o primeiro contato com idéias liberais. ‘Foi uma espécie de mestrado prático que ele fez’, analisou o diplomata. Neste período, conheceu as idéias do pensador e jornalista americano Benjamin Franklin e solidificou suas convicções democráticas e liberais.
A Inquisição persegue Hipólito
Nomeado em 1801 para a Imprensa Real, Hipólito fez uma viagem oficial à Inglaterra e França. Quando retornou, foi preso, acusado de disseminar a maçonaria. Passou três anos nos cárceres da Inquisição. Fugiu para Londres em 1805, onde conheceu o duque de Sussex, filho do rei da Inglaterra e também maçom. Hipólito foi protegido por ele quando os portugueses pressionaram o governo britânico para que o jornalista fosse repatriado. Londres era uma espécie de metrópole universal do século XIX. Hipólito da Costa conviveu com diversos líderes latino-americanos como Simon Bolívar, Francisco de Miranda e San Martín.
Em 1811, Hipólito publicou o livro Narrativa da perseguição, sobre o cárcere e os procedimentos da Inquisição portuguesa. Na obra, expôs o regimento do Santo Ofício, até então inédito. Demonstrou indignação com a existência de um tribunal com o poder de prender e processar pessoas por culpas que não existiam no código criminal da nação.
Longe da censura dos reinos de Portugal, lançou o Correio Braziliense, em 1º de junho de 1808. Paulo Roberto Almeida considera Hipólito da Costa como ‘o primeiro jornalista absoluto’. Um cronista identificado com as novas idéias iluministas. Ao relatar o que ocorre em Portugal, na Europa e no Brasil, elabora uma crônica dos eventos correntes. Paulo Roberto Almeida aconselha que os jovens jornalistas leiam a ‘Introdução’ do primeiro volume do Correio Braziliense. Para ele, a mensagem de compromisso com a verdade e de defesa da liberdade que o Hipólito passa deve nortear a profissão: ‘Ele era um jornalista de sete instrumentos’.
A historiadora Tereza Cristina Kirshner afirmou que Hipólito foi crítico da administração do governo português. Censurava a inércia dos ministros e a corrupção, mas sempre poupou a figura do soberano. As reformas deveriam se conduzidas pela monarquia, e não pelo povo.
Um Armazém Literário em 175 edições
O público do Correio era restrito, cerca de quinhentos assinantes. De circulação mensal, tinha o formato de um livro, com cerca de 100 páginas. Dedicava-se ao jornalismo interpretativo e tinha como subtítulo Armazém Literário. No jornal, Hipólito defendia a liberdade de imprensa, segundo o modelo liberal inglês. Difundia os avanços da ciência e novas idéias culturais e artísticas. Brasileiros e portugueses podiam acompanhar pelo Correio fatos internacionais, tomar conhecimento de teorias iluministas e de novos conceitos de economia. O fim da Inquisição, da escravatura e da censura eram defendidos por Hipólito da Costa no jornal.
Paulo Roberto Almeida comentou que Hipólito da Costa agia como um jornalista moderno ao dividir o periódico em seções de economia, política, ciências, cultura e curiosidades. O jornal também publicava as cotações dos produtos brasileiros na bolsa de valores de Londres e por isso era essencial para o comércio da época. Hoje, historiadores podem usá-lo como fonte primária para pesquisa do período.
Por que Correio Braziliense e não ‘Correio Brasileiro’?
O professor emérito da UFF e integrante da Academia Brasileira de Letras, Domício Proença Filho, analisou a escolha do sufixo ‘ense’ o lugar de ‘ano’ ou ‘eiro’. ‘Brasileiro’ era o termo usado para designar os comerciantes de pau-brasil no início da colonização e o mais comum para designar os habitantes do país no século XIX. Ao optar por ‘Braziliense’, Hipóltio talvez quisesse marcar uma diferenciação, pois o sufixo empregado era mais erudito.
No debate ao vivo, Dines perguntou à Lustosa porque Hipólito da Costa é ‘injustiçado’ pela História. Lustosa explicou que o jornalista foi reconhecido como ‘uma força política e intelectual’ ainda em vida, mas que enfrentava grande oposição. Polêmico e prestigiado, Hipólito foi protegido pelo conde de Linhares, mas depois se distanciaram, provavelmente na época em que Hipólito esteve preso pela Inquisição. Em Londres, o jornalista aproximou-se do futuro marquês de Funchal, irmão de Linhares, mas posteriormente também romperam. ‘A História tem ondas’, disse.
Antônio Costella acredita que a apatia da mídia no bi-centeário da imprensa está ligada ao ‘deslumbramento’ que houve durante a comemoração dos 200 anos da vinda da família real para o Brasil, em março deste ano. Outro fator que teria contribuído, na opinião de Costella, foi a falta de informação dos jornalistas sobre Hipólito. Para ele, é fundamental relembrar a vida do jornalista. Costella foi amigo de um dos primeiros biógrafos de Hipólito da Costa, o pesquisador Carlos Rizzini. O escritor afirmou que a paixão de Rizzini pela vida do biografado o contagiou.
Rizzini começou a pesquisa sobre o tema para a obra O livro, o jornal e a tipografia no Brasil, editada na década de 1940, quando poucos dados da vida e obra do jornalista eram conhecidos. Em seguida, o pesquisador adquiriu uma coleção do Correio: ‘Rizzini reencontrou e encontrou um Hipólito da Costa que não conhecia. O jornalista além do que estava escrito no Correio Braziliense‘, afirmou Costella. Na década de 1950, Rizzini conheceu Gastão Nothman, adido do Brasil em Londres, que preencheu diversas lacunas sobre a vida de Hipólito da Costa e também foi contagiado pelo interesse na vida do patriarca da imprensa. Gastão localizou os herdeiros de Hipólito e diversos arquivos e documentos.
Isabel Lustosa explicou que Hipólito da Costa fez parte de um grupo que pretendia construir uma grande nação. Assim como outras personalidades da época, como José Bonifácio, imaginava um império luso-brasileiro. O fato de ambos terem vivido fora do país teria contribuído para que pudessem vislumbrar essa possibilidade, classificada por ela como ‘utópica’. Lustosa ressaltou que o jornalista passou muitos anos fora do Brasil, mas que escreveu continuamente sobre o país durante 14 anos. Para ela, Hipólito da Costa ‘idealizou e pensou o Brasil’. Influenciado pelo reformismo ilustrado, pretendia manter as bases da monarquia, mas ‘iluminar a estrutura’. Já em 1822, Hipólito da Costa pretendia preservar a unidade do Brasil.
O poder da maçonaria
Antônio Costella explicou que a maçonaria iniciou suas atividades no Brasil no século XVIII e que sua ideologia estava ligada ao liberalismo econômico e à garantia das liberdades individuais. No Brasil e em Portugal, a maçonaria funcionava como um ‘partido’ ligado aos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa. A maçonaria teria sido uma espécie de ‘gestora’ da Independência do país. Figuras importantes para o processo de emancipação como José Bonifácio e Gonçalves Ledo tinham ligação com a sociedade secreta. ‘Não se pode escrever a história da Independência do Brasil sem se reportar à maçonaria’, disse.
Hipólito da Costa morreu em 1823, depois de ser convidado para ser cônsul do Império Brasileiro em Londres. Só em meados do século XX foi reconhecido como o primeiro jornalista brasileiro. Em 2001, seus restos mortais foram transladados para o Brasil e, hoje, se encontram no Museu da Imprensa, em Brasília.
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Os enigmas e as injustiças na história da imprensa no Brasil
Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 465, no ar em 10/06/2008
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
A história da imprensa brasileira tem muitos enigmas. Alguns deles: o que levou um dos mais bem sucedidos tipógrafos de Lisboa, Antonio Isidoro da Fonseca, a vir para o Rio de Janeiro, montar uma tipografia numa colônia onde as tipografias estavam proibidas?
Outro mistério relaciona-se com os prelos comprados na Inglaterra: por que razão não foram desembarcados em Lisboa e ficaram nos porões da nau Medusa que os trouxe para o Rio?
Um terceiro mistério é mais recente e, por isso, ainda mais intrigante: por que razão a maior parte da imprensa brasileira ignorou tão ostensivamente a sua festa dos 200 anos, há 10 dias, no 1° de junho?
Que pecado cometeu Hipólito da Costa para ser esquecido em uma data tão gloriosa? O que há de errado na sua biografia para incomodar tanto os donos da verdade? Só porque era maçom, só porque combateu a censura e a inquisição, deve Hipólito ser condenado ao esquecimento?
Dois prestigiosos jornais, os únicos que não aceitaram o pacto de silêncio em torno dos 200 anos, poderiam oferecer alguma pista a respeito desta censura histórica ou histórica censura. Com a palavra, a Folha de S. Paulo e o Correio Braziliense do Distrito Federal.