Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Diga sim ao Nein

Navegar é preciso, viver não é preciso, teria insistido Fernando Pessoa, então se referindo à internet, possivelmente numa postagem do Twitter. Mesmo que não considerasse tuitar mais importante (ou necessário) que viver, Pessoa seria, desconfio, um adicto do Twitter. Não lhe faltavam vocação e embocadura, e seus avatares, diretos e indiretos (@casapessoa, @bookofdisquiet), corroboram diariamente essa predisposição, citando-lhe versos, confissões e aforismos.

Os poetas, sobretudo os concretistas, superam com mais facilidade a limitação dos 140 caracteres. “Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes” tem apenas 78 caracteres. E “Sou um doido que estranha a própria alma”, quase a metade. Pincei ao acaso esses dois tuítes recentemente psicopostados por Pessoa. Não costumo acompanhar seus avatares, bastante úteis como divulgadores e perpetuadores da obra do poeta, mas sem maiores atrativos para quem o leu na fonte original. Mais curiosidade me despertariam os parodistas e parafrastas do poeta e seus heterônimos, tuitando coisas do tipo “Tuitar é preciso”. Ou menos óbvia. “O sol por trás da torre faz a torre incandescente”, por exemplo. No original, a lua ocupava o lugar do sol e a torre ficava apenas “diferente”.

Tal forma de apropriação, se bem executada, é tiro e queda, desde que o parodiado ou parafraseado não seja um genial frasista como, digamos, Woody Allen ou Millôr. Seu espírito, sim, pode ser emulado, mas não o cerne do seu humor. Melhor encarnar numa figura circunspecta, tornando-a inesperadamente o seu avesso, ou seja, uma persona engraçada, gozadora. Já fizeram isso com Deus (@TweetofGod), a quem sigo sempre, e sempre às gargalhadas.

Esse avatar do Todo Poderoso é uma curtição, especialmente saborosa para agnósticos e ateus. Onipotente, mas confessadamente inseguro, o God do Twitter vive a desmoralizar a teodiceia, não se eximindo das desgraças do mundo e assumindo às escâncaras sua soberba misantropia. “Se cuidar dos outros é crime, eu clamo inocência”, tuitou algum tempo atrás. Debochado, revelou só ter inventado a religião pra manter a humanidade longe dele, já definiu suas orações como spams e aconselhou os fiéis “a consultarem outros deuses”. Dia desses, comunicou: “Continuo solteiro e adorando”.

Jogos de palavras

Meu tuiteiro favorito é um americano do Wisconsin que se passa por alemão e aderiu ao microblog há dois anos. Já postou mais de 30 mil tuítes e amealhou mais de 61 mil seguidores. Eric Jarosinski, professor assistente de alemão da Universidade da Pensilvânia, refugiou-se no Twitter para fugir de um livro sobre a transparência como metáfora na cultura alemã, que se comprometera escrever e não conseguia. Tomara enjoo da linguagem acadêmica, de suas “frases longas, complexas e densas de qualificativos”, a ponto de suar em bicas sempre que se sentava diante do computador. Para distrair-se e superar o bloqueio, começou a tuitar a partir do smartphone e deixou o livro a mofar no laptop. Tomou gosto. Se pudesse, só falaria em, no máximo, 140 caracteres, confessou a Jason Fagone, blogueiro da revista The New Yorker.

É uma das vozes mais singulares da tuitolândia: límpida, alusiva, lacônica, irreverente. Verifique por si mesmo em Nein@NeinQuarterly. O trimestral (quarterly) é uma boutade. Jarosinski assume a editoria do que identifica como “um compêndio de negativismo utópico” (ou, quem sabe, de uma utopia negativa), de “circulação” diária. Nein quer dizer não, em alemão. Seu avatar é a caricatura de um tedesco weimariano, de olhar duro e monóculo; ninguém menos que Theodor W. Adorno, sumo pontífice da Escola de Frankfurt, cujas teorias Jarosinski, que às vezes também posta em alemão e em germenglish, conhece de cor e salteado. Por trás de sua ironia cáustica, percebo mais a lâmina do austríaco Karl Kraus.

A proverbial falta de humor dos alemães é um de seus cães malhadiços. Idem o romantismo e as tolices do mundo moderno. Adora gozar Magritte e até a mídia social que lhe deu fama: “Antes do twitter tínhamos a impressão de que estávamos sós. Agora temos certeza”. Bom de jogos de palavras e neologismos bilíngues, é dele a expressão “flâneurd”, que é como, millorianamente, identifica um sem-teto com PhD em informática.

Do começo ao fim

A seguir, algumas pérolas do negativista Jarosinski:

>> Faço meus pedidos no Starbucks com o nome de Godot. E vou embora.

>> A primavera se aproxima. Por favor, não digam nada aos poetas.

>> A História está chegando ao fim. De novo.

>> Assim falou Zaratustra com um desconhecido. No ônibus. O cara mudou de assento.

>> Muitos escritores bebem à beça. Na Alemanha, são os leitores.

>> Aproveite este belo dia pra pôr sua alienação pra trabalhar.

>> Arrumando meus livros. Pelos que destruíram minha visão, pelos que destruíram meu futuro e pelos que destruíram minha visão do futuro.

>> Quanto mais aprendemos sobre política, menos queremos saber. Quanto mais aprendemos sobre ideologia, menos queremos acreditar.

>> Alguns chamam de decadência cultural. Outros, de tradição.

>> Vou aproveitar este fim de semana pra terminar aquela palavra em alemão que me gritaram na semana passada.

>> Twitter e Facebook entram num bar. Facebook vê um amigo e com ele troca uma foto de gato. Twitter sai à cata de um seguidor.

>> Só pra lembrar que qualquer coisa que você diga sobre Walter Benjamin foi provavelmente melhor dito por Walter Benjamin.

>> A falta de significado é mais difícil do que se pensa.

>> Teoria: 50 tons de Marx.

>> Dialética entra num bar. História sai de fininho. Luta de classes pede mais um chope.

>> Gin entra num bar. De ressaca. Pede uma tônica.

>> Magritte entra num cachimbo. Pede um bar.

>> Às vezes sonho com Roland Barthes. Comemos bife com fritas, vamos a uma luta livre ou a um strip-tease, ficamos apreciando os detergentes. (Este tuíte só é inteligível para quem leu Mitologias, de Barthes)

>> Hemingway, Joyce, Dorothy Parker, Faulkner e Bukowski entram num bar. Sobra pro Kafka pagar a conta.

>> Preciso sentar e ler um tuíte do começo ao fim. Dizem que às vezes vale a pena.

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Sérgio Augusto é colunista do Estado de S.Paulo