Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A cobertura dos primeiros meses de governo

Qual o saldo de cinco meses do governo Ana Júlia Carepa? Muita energia, tempo, crédito e imagem desperdiçados em crises secundárias: nepotismo, contratação irregular, relações duvidosas, disputas intestinas. A gestão do PT ainda não conseguiu chegar ao principal: as mudanças que podem melhorar a difícil situação do Pará; Para fazê-las é que foi eleito.


Eleita para mudar o Pará, uma tarefa tão necessária quanto difícil, depois de 12 anos de autocracia tucana, nos cinco primeiros meses do seu mandato de governadora Ana Júlia Carepa vai se engasgando com mosquitos. Enquanto os planos de reforma do Estado não saem das pranchetas ou da retórica dos seus principais secretários, o governo petista se enreda em confusões no varejo. Se um dia conseguir transformar em práticas positivas as suas intenções de corrigir as graves distorções que se incrustaram como ervas daninhas no segundo mais extenso e nono mais populoso Estado brasileiro, talvez até lá o governo já tenha perdido o crédito de confiança que o eleitorado lhe conferiu no ano passado.


Depois dos escândalos em torno da contratação de parentes, aderentes e compadres da governadora, a máquina voltou a ratear com o ‘caso Aeroclube’, um prato feito que o mais novo antagonista do governo, o grupo Liberal, está aproveitando à larga. Independentemente de saber quem tem razão, uma coisa é inquestionável nessa história: a inabilidade da administração petista. Se era preciso continuar a formação dos pilotos dos helicópteros da crescente frota estadual, todos os caminhos deviam passar ao largo do namorado de Ana Júlia, Mário Fernando Costa, que é piloto e é presidente do Aeroclube. Mas a solução foi dirigida exatamente para esse lado.


Aspecto moral


No mesmo momento em que cancelava o vergonhoso ‘convênio’ com a TV Liberal, que desviou dos cofres públicos 35 milhões de reais ao longo de 10 anos (onerando a Funtelpa em mais cinco milhões de reais de despesas operacionais, sem contar com a atualização financeira, que deve levar a conta de chegada para R$ 50 milhões), o governo decidiu fazer outro convênio – e justo com a instituição comandada pelo então namorado de Ana Júlia, que acabara de ser exonerado do comando do hangar do Estado, em nome do combate ao nepotismo e em meio a muitas denúncias sobre a condução dos negócios nesse setor. Um erro foi corrigido e outro erro iniciado. Um governo que começa torto, não tem jeito, morre torto: a sabedoria popular caberia ao caso?


Numa incômoda inversão de papéis, comparativamente ao ‘escândalo Funtelpa/TV Liberal’, a secretária de defesa social, Vera Tavares, que fez nome como defensora dos direitos humanos, atuando numa organização não-governamental, assinou uma nota oficial em defesa do indefensável, exatamente como faziam os tucanos em relação ao malfadado ‘convênio’ para a transmissão, pelo interior do Estado, de imagens geradas pela TV Globo.


Na nota, a secretária argumenta que o convênio, no valor de 3,7 milhões de reais, sairá muito mais barato, por ser realizado em Belém, através do Aeroclube, do que se continuasse a seguir o traçado da primeira parte da formação dos pilotos, ainda na gestão tucana. Mas ao fazer as suas contas, a secretária se esqueceu de abandar, do valor pago pelo PSDB (R$ 2.500 pela hora de vôo), as despesas com as passagens, estadias, refeições e diárias dos pilotos enviados a São Paulo e Minas Gerais, do custo do treinamento no Aeroclube (R$ 1.890). Como em Belém não haverá as despesas de deslocamento, o cálculo tinha que ser feito apenas com base no custeio direto do curso, já que os alunos do Aeroclube estarão baseados em Belém.


A partir dessa comparação, mais correta, é impossível não chegar à conclusão de que o novo curso sairá mais caro (a economia anunciada, de R$ 3,5 milhões, provavelmente seria consumida pelas despesas indiretas que havia no treinamento em São Paulo e Minas), sem falar em outros fatores, como a delicada situação financeira e operacional do Aeroclube do Pará, e do aspecto moral da operação. Sobre esta última dimensão diz tudo a decisão da governadora de romper a relação com o namorado, irritada por não ter sido informada sobre a real situação da instituição que ficaria responsável por uma formação tão especializada como a de piloto de helicóptero.


Valor máximo


Todos os desgastes já sofridos – e os que certamente ainda advirão – poderiam ser evitados se a administração estadual cumprisse o que proclama da boca para fora: rigor no uso do dinheiro público. Administrando um Estado tão grande como o Pará, que tem conflitos sociais em quase toda a sua extensão, de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, a governadora está certa em ampliar e fortalecer o Grupamento Aéreo Integrado (Graer), criado em março, que deverá receber dois novos helicópteros.


Com seu rápido deslocamento e operacionalidade, o helicóptero se tornou uma ferramenta indispensável da ação pública, em todos os sentidos. Mas R$ 3,7 milhões constituem um investimento considerável, sobretudo num Estado de caixa minguado. A aplicação do dinheiro devia ser medida e pesada; além de depurada de vícios que a contaminariam definitivamente, como a presença do companheiro da governadora na transação.


Ao invés de continuar a tapar o sol com a peneira e buscar paliativos para o incorrigível, o governo devia assumir publicamente seu erro, anulando mais esse convênio e iniciando um novo procedimento, a partir de tomada de preços e carta-convite, se realmente houver urgência no curso. Assim tiraria a principal arma que o grupo ‘Liberal’ passou a usar desde que rompeu com o governo, contrariado por perder os R$ 465 mil mensais que a Fundação de Telecomunicações do Pará lhe repassaria a partir de janeiro (R$ 2,3 milhões, quase dois terços do curso para os pilotos até agora). Não apenas foi sustado o pagamento como a fundação se comprometeu a co-patrocinar a ação popular pelo reconhecimento judicial da nulidade do ‘convênio’ e ressarcimento do dinheiro indevidamente pago.


Mas falta ao governo convicção no que diz e no que faz. Indignada com as seguidas matérias de críticas aos seus desastrados atos de varejo, a governadora determinou a suspensão da publicidade pela inauguração do centro de convenções, que seria publicada em O Liberal. Depois, aconselhada por um de seus auxiliares mais próximos, liberou a veiculação. Mas nessa indefinição abriu espaço para o principal executivo do grupo, Romulo Maiorana Júnior, se recusar a aceitar o anúncio, embora acolhendo a nota da Secretaria de Defesa Social, cobrando o valor máximo de tabela.


Ângulo positivo


Ana Júlia bem que podia aproveitar a retaliação dos veículos de comunicação da família Maiorana para estabelecer critérios técnicos bem claros para definir a aplicação da verba oficial de publicidade. O jornal O Liberal não tem o direito de reivindicar primazia na partilha dessa verba porque já não é o líder do mercado. Para definir a nova distribuição bastaria ao governo utilizar a última auditagem realizada pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC), quando ainda sob contrato de O Liberal, que apontou um excesso de pelo menos 50% na quantidade de exemplares vendidos pelo jornal. Se O Liberal não aceitar essa decisão, terá que arcar com as conseqüências, mas sem poder usar o discurso da discriminação.


Também podia tentar se livrar do mau hábito dos grupos que ocupam o poder, de reagir a denúncias atacando o denunciante, mas deixando de esclarecer seus motivos. Sem conseguir explicar satisfatoriamente todas as denúncias envolvendo o ex-namorado da governadora, o governo resolveu abrir o leque das apurações. A atitude é legítima, já que várias das irregularidades apontadas remontam ao período anterior. Essa atitude, porém, não exime a atual administração de fazer a assepsia em seus próprios quadros e corrigir os próprios erros, enquanto apura os dos outros.


Mais seriedade, firmeza, clareza, correção e competência na condução da máquina pública estadual, sem as constantes derrapagens éticas e morais por parte do governo de Ana Júlia, talvez permitisse ao Estado sair desse tricô para considerar os problemas mais importantes e submeter a administração pública aos testes de consistência que interessam.


No balanço que fez dos primeiros quatro meses do seu governo, Ana Júlia só pôde citar como realizações ‘de alcance social’ medidas como a isenção do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias para quem consome até 100 quilowatts/mês; o aumento da alíquota do ICMS para o boi em pé, que deve proporcionar a redução de preço da carne; o convênio com a Eletronorte destinado a promover inclusão digital; e o programa Bolsa Trabalho, que beneficiaria 50 mil jovens em 70 municípios.


Em boa medida, mesmo que pelo ângulo positivo, tudo isso também é varejismo. Mas, afinal, afastada a espuma da agitação, é só isso o que se pode esperar do governo do PT no Pará? Com a palavra (mas não por muito tempo), a arquiteta Ana Júlia Carepa.


Silêncio obsequioso


Das 11 notas principais publicadas na edição da coluna ‘Repórter 70’ do dia 18/5, em O Liberal, seis foram sobre o Grupamento Aéreo Integrado do Estado, com críticas e denúncias do jornal. Mais duas notas foram de críticas à administração estadual. Aí começou a ofensiva do grupo Maiorana contra o governo Ana Júlia Carepa, depois de algumas beliscadas nos três dias anteriores (quando a possibilidade de uma campanha do contra ainda era reversível).


Como sempre, a nova posição editorial resulta de interesses comerciais contrariados, a começar pela suspensão – seguida de anulação – do convênio da Funtelpa com a TV Liberal. Se houver nova combinação comercial, a posição editorial da empresa poderá ser corrigida outra vez, tão subitamente quanto a anterior, sem a menor explicação ao distinto público sobre as idas e vindas dos humores de Rominho & Cia.


Seria bom que o governo passasse a ter um acompanhamento crítico sério por parte da imprensa. com coragem e equilíbrio. Talvez assim os jornalistas pudessem contribuir para melhorar governos que se acostumaram à imprensa chapa branca, do tipo que o Diário do Pará agora incorporou. O americano Jack Anderson dizia que democracia silenciosa não é democracia. Seu funcionamento requer o barulho da crítica. Se a imprensa não late e nem morde os poderosos, que têm instrumentos para manipular e intimidar os outros, vai ver essa é a causa: está com focinheira.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)