Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jobs sem dó nem piedade

Mais que o desaparecimento de Khadafi ou as denúncias contra José Dirceu na capa da Veja, o que ficou na cabeça dos leitores no último fim de semana foi uma foto de Steve Jobs, nesse caso valendo por 1 milhão de palavras. Esquálido, com um saiote negro necessário por causa da sonda, as pernas pálidas de meninos de Biafra , as mãos crispadas, os olhos apertados e o rosto desviado do foco da câmera que fez o flagrante enquanto é segurado para não despencar, Steve Jobs foi para as páginas da principal imprensa nacional no fim de semana.

O Estado de S.Paulo inseriu a foto na manchete “Dois dias após a saída de Jobs, Apple volta a ser mais valiosa”. O Globo explicou melhor: a foto do site TMZ foi tirada dois dias depois da saída da Apple. “Jobs teve um câncer de pâncreas em 2004 e fez um transplante de fígado em 2009”. A Folha de S.Paulo deu na primeira página “flagrado em local não identificado”, ao lado da foto do belo Reynaldo Gianecchini depois da quimioterapia e de uma chamada para a disfunção erétil que impede o orgasmo.

Veja deu a foto de Jobs “amparado para ficar de pé” ao lado da foto do poderoso Jobs apresentando o iPhone, em 2007. E a Época reproduziu 12 Jobs desde 1972 , cabeludo, aos 17 anos, com todas as espetaculares invenções que revolucionaram o mundo, e a foto “Debilitado”, mas com uma sensível foto de abertura em página dupla da matéria de cinco páginas, “Sem Ele”, e sua mensagem de despedida, “ Infelizmente esse dia chegou”.

E agora?

Ironia, a velocidade que fez a foto correr o mundo foi em parte proporcionada pelas próprias invenções de Jobs, vítima da tecnologia e de um mal que contamina a imprensa, os reality shows. O macabro, o patético, o mau gosto, o indelicado, o insensível já não afetam tanto as pessoas. Nem a invasão da intimidade, a falta de privacidade e de respeito.

No mesmo fim de semana a imprensa estampava a foto do jornalista Rodolfo Fernandes, diretor de Redação do Globo, morto aos 49 anos vítima da esclerose lateral amiotrófica (ELA) que o mantinha numa cadeira de rodas sem qualquer movimento. Comandava a Redação e acionava a internet apenas com os olhos. No dia seguinte à foto de Jobs, o temido não aconteceu: as fotos publicadas mostravam um Rodolfo como ele certamente gostaria de ser lembrado.

Chamou a atenção dos leitores do El País uma foto no alto da página onde o rei Juan Carlos de costas abraçava, também de costas, Adolfo Suárez, primeiro presidente do governo (primeiro ministro) democrático da Espanha depois do generalíssimo Francisco Franco. Transfigurado pelo Alzheimer, Suárez já não reconhecia ninguém, nem sabia que cargos havia ocupado. Só respondia a estímulos afetivos como o que lhe fez na foto o rei Juan Carlos, ao caminhar numa longa e sugestiva estrada de costas, sem expor o político. A foto tem alguns anos. Mas o El País deste fim de semana publicou a matéria do “gigante informático” em página dupla e outra matéria “Se va El Maestro, ¿y ahora qué?” com fotos do “mago Jobs” como todos lembramos dele. Sem a última.

Sem protestos

Simone de Beauvoir provocou uma reação masculina ao lançar A Cerimônia do Adeus sobre os últimos dias do companheiro Jean-Paul Sartre, morto em 1980. Traduzida no Brasil pela Nova Fronteira em 1982, os protestos vinham de todas as partes, inclusive de escritores como Fernando Sabino, que atribuíam o livro a uma vingança de Simone pelas traições recebidas a vida toda.

As mulheres fizeram uma leitura diferente, e até terna, fiel e realista (antes dos reality show), mesmo quando Simone dizia que dois anos antes da morte Sartre continuava em contato “com muitas mulheres jovens”. Ou quando apesar das escaras, da gangrena, da cegueira e da bexiga funcionando mal (“foi preciso colocar-lhe uma sonda e, quando se levantava – o que agora era muito raro – arrastava atrás de si um saquinho plástico cheio de urina”), ela implorava aos médicos que ele não soubesse da extensão do mal, e que não sofresse. Melhor, ela relatava, apesar dos males físicos, o espanto dos visitantes com a “vitalidade indomável” de Sartre.

Foi um retrato de Simone, sem dúvida. Literário, poético, doído ao que muita gente reagiu. Contra esta impiedosa imagem de Jobs não houve protesto.

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[Norma Couri é jornalista]