Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O discurso da naturalidade

‘No mundo da internet, no começo era o verbo. Depois, vieram as imagens. E chegaram para cumprir a profecia de que no futuro todos seriam famosos por 15 minutos, ou pelo menos por 30 segundos.’ (Osmar Freitas Jr., IstoÉ, nº 1937, pág. 74)

O fulgurante rastro tecnológico do pós-guerra permite vislumbrar com maior amplitude a significação social-histórica do fenômeno das comunicações infoeletrônicas no século XX. Com o surgimento do computador pessoal junto a seus derivados intensifica-se ainda mais a transição comportamental dos seres humanos. É a tecnologia que se estende cada vez mais para a esfera da vida cotidiana.

Basta saber que, acionando apenas um sinal, informações e imagens se propagam para todos os lados, à semelhança de estilhaços de uma bomba despejada em um território, para que se tenha uma idéia da virtualidade em que vivemos. O conhecimento e a cultura se convertem em espectros, em informação, em dados (imagens, sons etc.) confinando-se no universo dos significantes, como se assim demonstrassem melhor a velha equivalência entre mundo e reino das aparências.

Não há como duvidar que estamos assolados na cibercultura. Amparada principalmente pela progressiva expansão da www, ela produz o advento do fenômeno de longevidade indeterminada. É um modelo tecnológico de cultura que se estende e se ramifica de maneira arrebatadora. Como tal, essa nova cultura caracteriza uma nova fase da civilização mediática, a fase pós-massificação cultural e/ou comportamental dos seres humanos.

Segurança e objeto de fetiche

Leibniz dizia que era por pouco que ele não seguia as regras de Descartes – não admiti coisa alguma que não seja verdadeiramente evidente (quer dizer, apenas aquilo que deveis admitir); dividi o assunto segundo as partes requeridas (fazei o que deveis fazer); procedei por ordem (a ordem segundo a qual deveis proceder); fazei enumerações completas (quer dizer, aquelas que deveis fazer) –, as quais conclui serem exatamente assim porque como tal procediam as pessoas que diziam ser preciso procurar o bem e evitar o mal. Mas faltavam os critérios do bem e do mal (Leibniz, Philosophischen Schriften, ed. Gerhardt, tomo IV, p. 329).

O progresso das redes e a proliferação das câmeras de vigilância colocaram os objetos tecnológicos das comunicações no centro da cena, ao mesmo tempo em que determinaram que a vida humana nunca mais seria a mesma. Basta uma rápida pesquisa na internet para se ter acesso ao conteúdo de milhares de câmeras de vídeo instaladas em residências, casas comerciais, escolas, ruas etc. Assim como é possível rastrear o sinal do celular, é relativamente fácil encontrar na internet, salvo os casos em que estão criptografadas, as imagens de milhares de câmeras espalhadas nos mais diversos lugares do planeta. E isso não é nem a ponta do fio do novelo. Podemos ser rastreados pelo cartão de crédito – revelando o que compramos, onde compramos e onde fomos –, pelo dispositivo de segurança do carro e, como já foi citado, pelo simples caminhar nas ruas – através dos diversos equipamentos de monitoramento instalados nos mais variados locais.

Segundo a revista IstoÉ, calcula-se que num único dia um cidadão pode ser fotografado ou filmado no mínimo 20 vezes. Em São Paulo, por exemplo, nas 52 estações de metrô, existem 600 câmeras instaladas e logo serão 900 para vigiar os passos dos usuários. É difícil projetar com exatidão a quantidade de câmeras instaladas nas vias ou locais públicos do país. Isso desmistifica o fato de que as câmeras indiscretas só apontam para chiques e famosos. Mas o que é invasão de privacidade para uns, se torna segurança e objeto de fetiche para outros.

Intimidade não é constrangimento

Diante de toda essa invasão tecnológica, as atitudes, modo de vida e comportamento das pessoas vêm se alterando cada vez mais. E o que se enxerga na mídia, de modo geral, é um argumento que busca muito mais a aceitação da sociedade do que uma crítica ou uma reflexão sobre o assunto.

Poucas vezes na história, as pessoas desejaram tanto se abrirem para o outro, arrancar as máscaras, mostrar os recônditos do corpo e da alma. A atitude é encarada com naturalidade desconcertante por quem quer ver e ser visto. Expor a intimidade não é mais sinônimo de constrangimento.

O principal argumento para justificar o monitoramento desenfreado da sociedade é a falta de segurança. Câmeras, microfones, escutas telefônicas, sistemas de computadores interligados, satélites e até – aparentemente inofensivos – telefones celulares são alguns dos aparelhos tecnológicos que podem ser utilizados para se obter informações sobre qualquer cidadão. Em busca de aumentar o controle sobre a crescente violência urbana, câmeras de monitoramento e modernos sistemas de vigilância estão hoje espalhados pelos mais diversos lugares, em grandes e pequenas cidades. Desde túneis, lojas de conveniência e grandes lojas, até pacatas ruas de cidades interioranas e corredores de bibliotecas, são monitorados para se coibir roubos ou mesmo o tráfego de carros com excesso de velocidade. Isso tudo sem falar nos satélites que captam imagens da Terra com resolução de até um metro.

1984 com uma cultura democrática

Ainda assim, costumo argumentar que as câmeras de monitoramento participam de uma forma de exercício do poder na atualidade, que focaliza fluxos e mobilidade em detrimento do indivíduo. Quando um advogado diz, por exemplo: ‘Recomendo sempre aos que vão se casar que evitem tirar fotos desinibidas ou filmar atos sexuais. Nunca se sabe onde esse material vai parar no futuro (IstoÉ, n.º 1937, p. 75).’ Reflete-se aí a vulnerabilidade íntima que se tornou o cotidiano. A sensação que fica é a de que se alguém estiver interessado em monitorar a sua vida e tiver recursos para isso, certamente o vai conseguir. As câmeras embutidas nas televisões, descritas por George Orwell na ficção 1984, estão, na verdade, espalhadas por todos os lugares, inclusive no espaço.

Numa sociedade onde a informação é tudo, a tecnologia se dispõe a fornecê-la em sua totalidade. Fazendo uma analogia com o romance de Orwell, a concepção atual da sociedade – e isso com a ‘grande’ influência dos meios de transmissão de massa – é 1984 banhado em uma cultura democrática, na qual a vigilância e a visibilidade não mais coagem, nem aprisionam (como no romance), mas, ao contrário, libertam da condição do anonimato rumo à celebridade, conferindo existência social aos participantes desse reality show.

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Estudante de Jornalismo em Multimeios na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Juazeiro, BA