Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O paradigma social do século 21

O jornalismo não vive num mundo à parte. O jornalismo online também não. Por isso há ocasiões em que é preciso olhar mais a floresta do que as árvores, como aconteceu na recente Conferência de Cúpula sobre Democracia, Segurança e Terrorismo , realizada em Madri, entre os dias 8 e 111/3.

A reunião foi organizada para marcar o primeiro aniversário do atentado terrorista de 11 de março de 2004, na capital espanhola, quando morreram quase 200 pessoas em 10 explosões em estações ferroviárias na hora do rush matinal.

Além do tradicional desfile de personalidades mundiais e de discursos carregados de jargão diplomático, a conferência incluiu também a discussão do relatório de grupos de trabalho, um dos quais tinha como tema ‘O fortalecimento da internet para um mundo mais seguro’. E foi justamente este grupo de discussão, formado basicamente por profissionais da comunicação que produziu a peça mais polêmica entre todos os relatórios submetidos aos organizadores do evento.

O motivo pelo qual foi criado o grupo de trabalho sobre internet era discutir como combater a proliferação dos 4.000 sites (número estimado) que, segundo a revista The New Atlantis estariam promovendo recrutamento de ativistas dispostos a cometer atos de terrorismo em qualquer parte do mundo.

Mas os debates tomaram um rumo totalmente inesperado na medida em que os participantes do grupo acabaram percebendo que sua convivência com a realidade cibernética os havia levado a adotar um enfoque da questão terrorista bastante diferente dos demais convidados.

Após quase 12 horas de discussão, o grupo chegou a conclusão de que a melhor forma de neutralizar as páginas web que estariam fazendo apologia do terrorismo é aumentar a liberdade de informação a respeito do tema por meio de um fluxo ainda maior de notícias sobre suas causas e conseqüências. Em vez de bloqueio ou censura, mais liberdade informativa.

O enunciado desta recomendação envolve um choque frontal com os valores da maioria dos participantes da conferência de Madri, na medida que a percepção dominante nas elites mundiais recomenda que o terrorismo deve ser combatido com medidas restritivas e nunca com maior abertura e liberdade.

Ficou evidente uma diferença fundamental entre duas formas de ver o mundo. A opção dos integrantes do grupo de trabalho não foi um ato impensado de rebeldia, mas sim uma conseqüência do tipo de ambiente em que eles estão mergulhados – o ambiente virtual também conhecido como espaço cibernético. Todos eles são respeitáveis senhores, sem nenhum antecedente de radicalismo político, e que ousaram propor mais liberdade simplesmente porque esta é fórmula que os internautas estão usando para desenvolver a chamada cultura digital.

O grupo de trabalho foi ainda mais longe ao proclamar que ‘a internet é um dos fundamentos da sociedade do século 21 porque os seus valores fundamentais estão intimamente vinculados aos da democracia’. Foi talvez, uma das primeiras vezes que este tipo de afirmação foi feito num evento diplomático internacional, refletindo a idéia de muitos formadores de opinião segundo os quais a web pode ser vista também como paradigma social e não apenas como uma ferramenta tecnologia.

Efeitos práticos

Outra sugestão que provocou celeuma na conferência foi a de que ‘os sistemas descentralizados como a internet (onde não há um controle central) são a melhor forma de combater inimigos descentralizados (células terroristas que agem autonomamente)’.

Mais uma vez as diferenças ficaram nítidas porque quase todos os organismos de segurança e governos do Ocidente partem da premissa de que o combate ao terrorismo só pode ser feito a partir de estruturas verticalizadas e centralizadas, como forças armadas e serviços segurança.

Nas discussões do grupo de trabalho foi dito que a única instituição que os terroristas não podem atacar diretamente é a internet, porque ela não tem sede, não tem dono e nem um comando único. Os participantes, escolhidos pelo Clube de Madri (presidido por Fernando Henrique Cardoso), um dos organizadores da conferência, também se manifestaram a favor da preservação do direito ao anonimato nas comunicações dentro da web.

Este ponto foi muito polêmico porque alguns membros do grupo afirmaram que é contraditório defender o anonimato e a privacidade na web quanto se sabe que tecnicamente é possível identificar qualquer internauta, da mesma forma que a individualidade não está 100 % protegida na internet.

O inevitável choque de percepções entre os membros do grupo de trabalho sobre a web num mundo mais seguro e os demais participantes da conferência, aparentemente levou os organizadores a não dar muito destaque ao relatório, na redação das conclusões finais do evento. Mas na chamada blogosfera (ambiente dos blogueiros) a discussão começou um dia antes do encerramento da conferência, na sexta feira (11/3), e entrou pelo fim de semana.

As propostas não verdade terão pouco efeito prático porque a cúpula antiterrorista de Madri era mais um evento diplomático do que uma reunião deliberativa. Mas o encontro deve entrar para a história como a primeira vez em que a internet foi discutida como fenômeno social e ideológico num grande evento internacional. Até agora, ela era vista basicamente como um aglomerado de byte e bits.

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Jornalista e pesquisador da mídia eletrônica