Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os próximos 200 anos do jornal impresso

Para os que nasceram nos idos anos 1930, Flash Gordon mais parecia uma ficção divertida; ‘apenas um desenho’, diriam. Não é raro, contudo, que os que daquele berço vieram percebam hoje que alguns utensílios desenhados naquele desenho animado passaram da ficção para o mundo real. Já nos anos 1960 os Jetsons mexiam com o imaginário futurístico dos fãs. Passadas algumas décadas, a história se repete: alguns dos designs e parafernálias eletrônicas hoje fazem parte do nosso dia-a-dia. Conclui-se, portanto, que até mesmo em um desenho animado, há um quê visionário.

Usando o mesmo sistema dos desenhos, cujo objetivo é exercitar o imaginário, além de entreter as pessoas, desenhar-se-á com palavras algo que para alguns pode parecer ficção, mas que já é parte da realidade. Ou seja, tratar-se-á de desenhar com as letras o rumo, o futuro e quem sabe a salvação do jornal – leia-se impresso.

Pintando o set

Fazendo uso da linha de comunicação dos desenhos, em que tudo é possível, imaginemos que somos uma personagem qualquer e que estamos interagindo nas cenas que compuseram a história que há 200 anos deu início à imprensa no Brasil. Se como suposto personagem pudéssemos viajar no tempo para falar sobre o futuro da imprensa, e nos encontrássemos com o Príncipe Regente Dom João, um provável diálogo seria este:

– Como vai? Vossa Alteza está muito elegante. Gostei da beca. De onde eu venho – ou seja, do futuro –, já não se fazem mais tecidos tão elegantes. Igualmente, Dom João, não estou passando para falar de futilidades e/ou modismo de época; estou de passagem para pintar a cena do futuro dessa imprensa que acaba de nascer. Tudo isto que para Vossa Alteza parece ser o must, na data de hoje [13 de maio de 1808], será de fato necessário para a evolução da história da imprensa. Esta há de se desenvolver, crescer, e pode ter certeza de que se tornará um grande poder. No futuro, muito distante do seu tempo, haverá o que a sociedade moderna chamará de obsolescência pré-programada e toda essa base da imprensa, que sua Corte tanto festeja como sendo o que há de mais moderno, não passará de alegoria de museu.

– Não me diga, minha cara. Parece-me que você bebeu.

– Não, Dom João. Não é preciso estar ébrio para entender que a própria história se fecha em ciclos e que tudo que nasce, após o seu apogeu ou morre ou se transforma.

– E como seria isso possível, minha cara?

– Tudo é possível Dom João. Vossa Alteza, por favor, olhe para esta folha de papel. Com o passar dos séculos, os homens, de beca bacana como a que exibe Vossa Excelência, vão destruir aos poucos as fontes primárias do mundo. Por volta do século 21 as folhas de papel serão coisa rara, bem como outras coisas como os alimentos e a água. Neste contexto, a imprensa precisará se reinventar para sobreviver. Ou seja, criar novas maneiras e fórmulas para a máquina não parar e não perder o seu poder.

– Ora, pois, que coisa interessante. Não consigo, no entanto, visualizar do que se trataria tamanha modernidade.

– Não se preocupe, Dom João. Nem mesmo os que vivem no futuro conseguem visualizar. O homem, é sabido, precisa ver e palpar para acreditar. Trata-se, no entanto, de algo muito especial. Deixando de lado a folha, aquela que dá sustentação ao negócio e ao corpo do jornal, no futuro o cidadão irá perambular por aí com uma única folha eletrônica na qual poderá ler o que acontece na sua comunidade, na sua cidade, no seu estado ou mesmo em todo mundo. É algo já conhecido no mercado futuro como e-paper. No bom português é o papel eletrônico. Consiste em uma folha bem parecida com a de papel, porém feita de uma espécie de fibra eletrônica, provinda do resultado de anos de pesquisas, feitas com a base em produtos químicos que Vossa Alteza ainda nem conhece: o petróleo, que é uma das matérias-primas do plástico. Vossa Alteza conhece? Não, né? Mas vamos adiante, essa tal fibra é dobrável como o papel, e tem o tamanho e quase o peso de uma folha de caderno. Vossa Excelência já viu um caderno neste século? Enfim, continuemos, todo o conteúdo, que aqui, no seu tempo, é feito no ‘mano-a-mano’, estará embutido numa coisinha chamada chip. Menor ainda e mais fino do que o botão da sua beca bacana. O leitor terá terminais espalhados pelas cidades para comprar o ‘chip do dia’; poderá optar por ter um miniterminal em casa e pagando com o cartão de crédito o consumidor poderá eleger as editorias que quer ler, montar seu próprio jornal e carregar o chip do dia. Poderá ainda eleger o tipo de leitura que gostaria de receber, por linha editorial e também por segmento e, por que não dizer, por idiomas. Este chip é então inserido na folha eletrônica, lembrando que é portátil e dobrável. Haverá ainda nesta folha eletrônica a opção de ler livros virtuais, fazer compras online etc… Ah, e o que, mais ou menos, os da sua época chamam de réclame, lá, no futuro, é chamado de publicidade. Os jornais eletrônicos também terão reclames, ou publicidades. Conforme a edição do dia, o leitor poderá comprar o produto ofertado na publicidade diretamente na folha eletrônica; e receberá o produto em domicílio. Sem contar que a galera mais jovem poderá se distrair jogando games também. Vossa Excelência nem imagina o que seja um game, não é mesmo? Em suma, Vossa Excelência entendeu ao menos metade do que disse?

– Sinceramente, minha cara, não entendi nada. E agora mais do que nunca tenho certeza de que você só pode estar embriagada. Sem contar as gírias. Se for verdade o que você conta, os homens do futuro, literalmente, acabaram com o nosso bom e velho português! Que colonização está sendo esta?

Da ficção…

Analisando o diálogo com ares de ficção, percebe-se que na realidade sempre haverá a dificuldade de substituir a coisa arcaica pela moderna, até mesmo no imaginário popular.

O diálogo é um simples apelo, uma estratégia literária. Serve para demonstrar como pode ser difícil para alguém que vive no hoje entender do que se trata algo que aparentemente está além do seu tempo. De fato, falar do futuro pode chegar bem próximo de uma conversa entre malucos, na qual misturam-se o que de fato é ficção com aquilo que está por ser uma realidade.

Na história, por mais que Dom João não pudesse visualizar, o que acontecerá com os jornais nos próximos séculos é exatamente o que a personagem a ele tentou ilustrar com palavras.

 …para a realidade

Embora não esteja disseminado ainda no mercado, o fato é que o e-paper já existe. Um dos modelos em teste no mercado [leia-se e veja-se ultrapassado] pode, inclusive, ser visualizado aqui.

Há mais de décadas o e-paper vem sendo testado e aperfeiçoado nos centros de pesquisas asiáticos e europeus; inclusive com excelentes índices de aceitação perante o público que participa dos testes.

Ocorre, no entanto, que mercados europeus e asiáticos estão a anos luz dos mercados latinos, em termos de comportamento do consumidor, aceitação de novas tecnologias, e até mesmo volume de consumo da cultura, entretenimento e informação.

Entre chips e bananas

Este produto do futuro objetiva globalizar a informação, dando ao usuário de serviços a opção de escolher o segmento e o tipo de conteúdo que quer ler. Deverá substituir a folha de papel, sem que para tanto deixe morrer a idéia que temos de jornal.

Com o advento da internet – que nasceu durante a guerra fria, como princípio de sistema militar de informações –, passando pela globalização, a tendência mundial nos leva a crer que a idéia do e-paper, enquanto novo modelo de ‘comunicação globalizada’, quando realmente começar a se expandir, terá tudo para dar certo.

Diante de uma possível crise mundial da ‘desinformação’ e colapso ambiental, há, claro, a responsabilidade das equipes envolvidas no projeto, bem como a consideração de que com a mudança de paradigma, o controle da informação mudará de mãos; o que, por sua vez, poderá causar desconfiança e resistência por parte daqueles que há 200 anos vivem agarrados ‘ao toco’ do negócio da comunicação de massa no Brasil.

Perfil de mercado

Há, também, é sabido e já considerado na dinâmica e planejamento do negócio, entraves do ponto de vista social e mercadológico que podem retardar a chegada da novidade ao Brasil e, por extensão, à duas cidades importantes do ponto de vista geopolítico na América Latina.

A começar pelo mercado brasileiro que tem uma alta concentração de famílias dominando o mercado de comunicação de massa. O mesmo ocorre em outros países latinos, como Argentina e México. Dominam tais mercados famílias reducionistas que temem perder a concentração de poder e assim sendo não medem esforços e nem contatos para barrar a entrada de toda e qualquer possível ameaça no sentido da modernização e da descentralização. No epicentro da realidade atual, os jogos de poder no Brasil, quando relacionados ao mercado de comunicação, são deveras burocratizados; para não dizer tão arcaicos quanto a imprensa que nasceu nos tempos de Dom João.

Do ponto de vista comportamental, é natural que famílias tradicionais no negócio de comunicação utilizem de suas articulações políticas para a manutenção do status quo, e, conseqüentemente, a detenção do poder sobre a informação. Outra barreira reside nos grupos da celulose que não querem largar o ganha-pão triliardário que hoje detêm.

Inevitável

O que não percebem, entretanto, é que o mundo não vai andar para trás ou parar – e muito menos a evolução da tecnologia será refratária por conta de um ou outro que não pretende largar o controle do ‘osso’ do negócio da informação. Previsível ainda é o fato de que por mais que nos agarremos a um passado com ares de presente, o futuro chegará e com ele a revolução que transformará os jornais impressos.

Hoje, por certo, vivenciamos a realidade e a guerra de foices de um mercado capitalista (modelo econômico que para alguns tende a ser pressionado e levado a uma reavaliação; e por que não projetar que chegue ao total caos e colapso?). Bem longe do conceito socialista, as esperanças residem, nas projeções como as de Karl Marx (homem e filósofo que sempre esteve bem à frente de seu tempo, que uniu pensamento à práxis, e que já prévia a morte e a transformação de todo e qualquer sistema). Em tradução simples, todo e qualquer sistema tende a ter um começo, um ápice e um fim.

Há, pois, de chegar um tempo, em especial no Brasil, que ou o mercado entende que é preciso mudar ou ele vai colidir e findar. No popular, não longe está o tempo daquela célebre frase do grande museu de novidades em que vivemos: ‘ Ou muda, ou morre’.

Em outras palavras, no Brasil, ou os barões apostam na verdadeira profissionalização ou – como já é previsível e cultural – os maiores mercados do mundo sairão na dianteira com seus chips, enquanto o Brasil, com sua buRRocracia e arcaísmo conceitual, vai ficar parado no tempo da produção de ‘bananas do coronelismo informativo’.

Com base em tendências mundiais, o inevitável é a chegada do futuro que abrirá portas para a revolução tecnológica, a qual ocorrerá primeiro nos mercados mais avançados e que ressonará no Brasil, talvez, décadas adiante. Resultado: quem sai por último, paga mais caro.

Paradigmas ultrapassados

Dentro desse jogo de poderes, no qual têm prioridade os pensamentos executivos, ultrapassados e egoísticos, outro fato é que há um verdadeiro pavor frente à mudança dos velhos e cômodos paradigmas.

O novo assusta, é fato. O novo é desconhecido, é outro fato. O novo, entretanto, ao contrário do que muitos analistas questionam ao avaliarem os projetos de e- paper, é ficção e é outro fato.

Peneira os melhores

Não necessariamente algo que nasce vem para causar prejuízo, mas sim para levar à evolução da imprensa, bem como à geração de mais empregos, em especial para a categoria profissional dos jornalistas que hoje agoniza frente às novas tecnologias.

Dentro do contexto que está por vir, o profissional multimídia que quiser se manter no mercado futuro, bem como os professores que preparam os jovens profissionais, devem ter em mente que investimentos em uma melhor adequação de grades educacionais, modernização da força de trabalho e acompanhamento do que há de mais moderno e pouco disseminado nas academias, além de acompanhamento dos processos de tecnologia da comunicação, são requisitos mais do que necessários para encarar e sobreviver na realidade que está por acontecer.

Ainda no âmbito da geração de novas frentes de trabalho, é claro que com a entrada do e-paper nos mercados algumas profissões se tornaram obsoletas. Embora a própria força da modernidade faça com que ‘a necessidade leve o sapo a pular’, aquela ‘maquininha’ dos parques gráficos – algumas ainda nem mesmo quitadas pelos seus donos – não deixarão de ter utilidade. Pelo contrário, os livros e outros produtos editorias não vão nunca deixar de existir. Até que o mercado editorial e os leitores se adaptem aos novos modelos, teremos décadas pela frente.

O que pode acontecer de pior é que a própria tecnologia exigirá do comunicador uma atualização constante de seus conhecimentos, quiçá até mesmo a abertura de novos campos de trabalho ou mesmo um upgrade tecnológico. Não há, porém, de se considerar que a tecnologia e o novo paradigma surjam para trazer o desconforto. Evoluir, andar para frente, requer e sempre requereu esforço, dedicação e persistência. E na peneira de um mundo cada vez mais exigente e com elevado volume de informações sobrará somente espaço para aqueles que se preparam hoje para estarem aptos a preencher a lacuna que haverá entre o homem e a máquina em um futuro próximo.

Por fim, ainda que seja de difícil aceitação, por vezes até de difícil visualização, um novo formato de negócios e um novo nascer do modelo de jornais está para acontecer. E aos que até aqui me acompanharam, que assim tomem este texto como uma realidade ‘d´escrita’ do futuro, e não como uma ficção impensadamente desenhada no hoje.

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Jornalista e acadêmica em Direito