Thursday, 02 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Respeito à natureza colaborativa da web

Regras de responsabilidade civil para provedores e usuários. Medidas para preservar a liberdade de expressão e a privacidade. Princípios e diretrizes para garantir o bom funcionamento da rede. Essa é, em linhas gerais, a temática do processo colaborativo para estruturar o Marco Regulatório Civil da Internet, lançado no dia 29 de outubro pelo Ministério da Justiça (MJ) em parceria com a Fundação Getulio Vargas.


O blog que concentrará essa construção coletiva está hospedado na página do Fórum da Cultura Digital Brasileira, no endereço www.culturadigital.br/marcocivil. O Fórum constitui uma rede permanente de formulação e construção de consensos por meio da qual atores governamentais, estatais, da sociedade civil e do mercado consolidarão diretrizes para uma política pública da área. Sua realização é propiciada por parceria do Ministério da Cultura com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP).


‘A opção do Ministério da Justiça em realizar o processo de formulação na rede social do Fórum sinaliza a sensibilização do governo para a importância de buscar novas formas de interlocução com a sociedade’, comenta o gerente de Cultura Digital do MinC, José Murilo Jr., da Secretaria de Políticas Culturais. ‘Fomentar esta reflexão ampla se valendo dos modelos de debate e colaboração nativos da rede pode viabilizar modelos de coordenação pública descentralizada capazes de criar soluções inovadoras para as questões apresentadas pelo século 21.’


A formulação do marco civil se dará em duas fases, previstas para durar 45 dias cada. Na primeira, a discussão parte de texto-base produzido pelo Ministério da Justiça, e em cada parágrafo os usuários do portal www.culturadigital.br podem inserir comentários e avaliar os postados por outras pessoas. Na segunda, a metodologia será a mesma, mas o debate ocorrerá em torno da minuta de anteprojeto de lei.


A discussão, segundo o MJ, não se aprofundará em temas que vêm sendo discutidos em outros foros ou que extrapolam as questões da Internet, como direitos autorais, crimes virtuais, comunicação eletrônica de massa e telecomunicações.


Existe hoje um descompasso entre o direito e as práticas estabelecidas na internet, avalia o coordenador do projeto de construção colaborativa, Guilherme Almeida de Almeida, da Secretaria de Assuntos Legislativos do MJ. O objetivo da proposta, explica ele, é superar a insegurança jurídica resultante e embasar políticas públicas, mantendo o caráter de espaço de colaboração da rede. Confira entrevista em que o coordenador fala sobre a consulta.


***


A Internet ainda é associada, para o bem e para o mal, à imagem de ‘terra sem lei’. Essa realidade está mudando, não? Várias propostas de legislação vêm tratando do tema, inclusive a reforma eleitoral, sancionada no fim de setembro…


Guilherme Almeida de Almeida – Sim. Sem entrar no mérito das decisões ou dos projetos recentes, a impressão geral é que a Internet afirma-se cada vez mais como um espaço público de interação entre indivíduos. O que acontece é que este espaço é estruturado a partir de uma série de regras tecnológicas (os protocolos, por exemplo) e de princípios (como a neutralidade, a liberdade de expressão, o livre acesso, a capacidade de que os indivíduos e as organizações inovem criando novas formas de comunicação a partir da estrutura já existente), e este espaço ampliado permite mais e novas formas de interação. Estas regras e princípios já existentes – a despeito da imagem de ‘terra sem lei’, ou talvez justamente por causa dela – nem sempre são compreendidos por aqueles que trabalham com o direito, ou por aqueles responsáveis por implementar políticas públicas.


Em que sentido?


G.A.A. – De certa forma, a Internet ‘amplifica’ a vida real. Tanto a capacidade de comunicação dos indivíduos quanto os impactos dessa comunicação ficam aumentados em comparação com nosso contexto off-line. Isso muitas vezes desorienta tanto os legisladores quanto os operadores do direito. O maior risco, na regulação da Internet, seria ignorar sua própria natureza e os princípios que a fizeram ser o que é hoje. É preciso preservar a dinâmica da Internet como espaço de colaboração, sob pena de, a médio prazo, anularmos as vantagens que esta nova forma de se comunicar trouxe à sociedade.


Que pontos devem ser abrangidos pelo marco regulatório civil?


G.A.A. – A proposta colocada para discussão orienta-se a partir de três eixos. O primeiro deles tem por objetivo afirmar os direitos dos indivíduos, bem como criar meios para que sejam efetivamente implementados e interpretados a partir desta nova realidade comunicacional. Isso implica, por exemplo, buscar meios legais para proteger o direito dos cidadãos à privacidade e à liberdade de expressão, assim como reconhecer o direito de acesso à Internet como evolução natural do direito à comunicação, à informação e à própria liberdade de expressão.


O segundo eixo tem por foco uma definição clara da responsabilidade dos intermediários envolvidos nos processos de comunicação via Internet. As regras atuais – de direito civil ou de direito do consumidor, por exemplo – nem sempre levam em conta a natureza, as regras tecnológicas e os princípios da Internet. Essa lacuna tem levado frequentemente a interpretações contraditórias. Uma mesma situação pode levar a decisões extremamente divergentes – um questionamento com relação a uma demanda de direito de imagem pode ser simplesmente ignorado por um juiz, ou pode levar ao fechamento por completo ou ao bloqueio de acesso a um portal, por exemplo. Essa insegurança jurídica é nociva para os indivíduos, para os empreendedores e para a sociedade como um todo.


Que efeitos negativos essa insegurança pode gerar?


G.A.A. – Ela desincentiva o potencial de criação, inovação, colaboração e participação da Internet, na medida em que os atores não têm consciência ou previsibilidade sobre as possíveis consequências de seus atos. Também é necessário pensar em formas extrajudiciais de solução de conflitos, e da determinação de eventuais obrigações aos intermediários para que garantam e sigam os princípios e a natureza da Internet – como a neutralidade da rede, fundada na não discriminação dos conteúdos que nela circulam.


O terceiro eixo busca identificar princípios de convergência, ainda que em nível abstrato, para a atuação estatal em relação à Internet. Essa tarefa já é feita, de forma propositiva e consultiva, pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil. O que pretendemos é dar força mais vinculante a estas diretrizes, para que elas possam fundamentar futuras iniciativas de regulamentação e de formulação de políticas públicas.


Como a discussão da proposta se relaciona com outras em curso, particularmente o Projeto de Lei (PL) 89 de 2003?


G.A.A. – As manifestações da sociedade em relação ao PL 89 demonstraram claramente que a sociedade realmente se importa com este tema, que existe um grande potencial de mobilização. Mostraram também algo óbvio, mas que estranhamente estava fora do debate: que o direito penal é uma forma de controle social extrema, a ser usada apenas como último recurso. Iniciar o debate ou a regulamentação sobre o tema pelo aspecto criminal, apesar de várias demandas nesse sentido, é inverter essa lógica do ordenamento jurídico. A proposta atual é a de seguir o caminho correto: definir e afirmar, primordialmente, os direitos dos cidadãos.


Quanto a demais propostas, a intenção do projeto é dialogar com elas. A ideia do marco civil é justamente construir uma base mínima de definição de direitos, responsabilidades e parâmetros para regulamentação da Internet no país. Temas específicos, como a publicidade eletrônica, poderão usar essas premissas para sua eventual regulamentação.


O Ministério da Justiça parte de experiências de outros países ao propor essa legislação?


G.A.A. – Sem dúvida. Uma das vantagens em nossa demora para definir normas mais claras a respeito do assunto é poder aprender com os resultados positivos e negativos de experiências internacionais. Um caso exemplar é o da privacidade. A União Europeia, por exemplo, possui já há um bom tempo diretrizes relativas à proteção de dados pessoais, inclusive em meios eletrônicos. Regulamentações posteriores, como aquelas relativas à retenção de dados de indivíduos para fins de investigação criminal, foram colocadas apenas depois, e partindo desse arcabouço prévio de respeito aos direitos individuais.


É preciso estar atento também a efeitos perversos de algumas iniciativas estrangeiras. A implementação de mecanismos extrajudiciais ou pré-judiciais de solução de conflitos nos Estados Unidos levou, no início, a algum cerceamento da liberdade de expressão. Na França, a tentativa de estabelecer uma legislação que punisse com restrição de acesso a pessoas que tivessem violado direitos de terceiros vem sendo fortemente questionada, por ferir o direito fundamental ao acesso. Estamos atentos a esses e demais casos na condução de nosso processo.


Com a decisão de formular o projeto de modo colaborativo, qual é a expectativa do MJ?


G.A.A. – Talvez esta seja a maior novidade e o maior desafio com relação a este projeto: respeitando a dinâmica da Internet como espaço de colaboração, resolvemos construir o marco civil juntamente com todos aqueles que tenham interesse em participar, numa espécie de consulta pública, num blog criado especialmente para o projeto. Estamos usando outras ferramentas, como o twitter e foros de discussão, para buscar dar maior alcance e densidade ao debate.


Pensamos que esta pode ser uma nova forma de implementar a democracia na prática, ao gerar canais não só de escuta, como também de participação e de interferência, abertos a cada cidadão. Caso a iniciativa tenha sucesso, a intenção é replicá-la para novos projetos, de forma cada vez mais aberta e colaborativa. A amplificação trazida pelas novas tecnologias pode significar também a amplificação da democracia. Essa é nossa maior expectativa.

******

SPC/MinC