Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Tecnologia pode reforçar cenários de desigualdade

A internet não vai salvar o mundo, prega Evgeny Morozov. Em meio à ladainha de que as novas tecnologias de comunicação disseminam e fortalecem a democracia, esse professor da Universidade Stanford (Califórnia) alerta que o louvor é arriscado.

Plataformas descentralizadas como blogs e redes sociais são mais suscetíveis à manipulação do que a mídia tradicional, diz.

Para Morozov, que estuda a relação entre a rede e a política, governos autoritários já usam a internet a seu favor. E governos democráticos falham em entender os efeitos da tecnologia em realidades distantes da sua.

A redenção, afirma ele nesta entrevista à Folha de S.Paulo, está no ceticismo e na melhor regulação da rede.

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A internet nos tornou mais vulneráveis?

Evgeny Morizov – Há quem pense que seu volume de informação nos permite achar soluções e transpor barreiras prévias, e há quem ache que ele nos deixa perdidos, falando só com quem pensa como nós e abertos a mensagens de governos e empresas.

Eu fico no meio. Alguns governos autoritários estão fazendo experimentos com propaganda ideológica e se tornarão muito ativos na internet. Nada na rede dificulta espalharem sua mensagem com mais ressonância do que nunca.

O uso da internet por esses governos é eficaz?

E.M. – Muito. O Kremlin e o [presidente iraniano Mahmoud] Ahmadinejad têm conta on-line, mas eu falo de operações sigilosas, em que se paga blogueiros ou se subsidia sites para tentar mudar a opinião pública. Em locais como a ex-União Soviética, tende-se a confiar mais na blogosfera, descentralizada, do que nos jornais, antes controlados pelo governo.

E em países democráticos?

E.M. – Muito depende da cultura de mídia, da estrutura do mercado e do histórico. Mesmo nos EUA as plataformas descentralizadas são vulneráveis à manipulação. É muito mais fácil subornar cem blogueiros do que o conselho editorial de um jornal.

A descentralização [da mídia] em si não leva a um debate mais razoável. Nem no contexto autoritário nem no democrático.

As novas mídias já têm a credibilidade da tradicional?

E.M. – Nem sempre se precisa de credibilidade para ser lido. Um partido ou uma empresa que queira ligar seu produto a uma ideia só precisa garantir sete ou dez blogs, que vão postar links uns dos outros, como bola de neve, até chegar à capa de algum jornal.

O ponto é quão viral é a mensagem. Com Twitter e Facebook, é fácil as pessoas postarem links. Mas quando a mensagem é chata, você quer garantir uns blogueiros. Empresas de divulgação oferecem serviços assim.

Pouca gente vê ou fala disso.

E.M. – É difícil julgar se o nível de propaganda e desinformação é maior do que antes da internet. O importante é a velocidade com que a informação se espalha e observamos se isso está criando pressão sobre políticos e servidores públicos, forçando-os a agir sem avaliar consequências.

A mídia tradicional pode se ver nessa situação?

E.M. – Vejo muitos exemplos no qual a urgência piorou a situação. O que ocorreu no Irã [nos protestos por suspeita de fraude na eleição presidencial de 2009], por exemplo. O único canal de acesso era o Twitter depois que os correspondentes saíram.

Isso levou a mídia a exagerar o papel da internet na cobertura. Gente que trabalhava para o governo americano confiou na mídia. Só depois viram que muitas informações não vinham de gente no Irã. É preciso observar a qualidade do jornalismo-cidadão em zonas de conflito.

Não se confia demais na ressonância universal da internet? O abismo digital ainda existe.

E.M. – É difícil medir o abismo nos EUA, mas, nas suposições que os diplomatas americanos fazem sobre o mundo, ele pesa. O advento dos celulares, por exemplo, desfez a desigualdade, permitiu às pessoas ganharem mais, serem mais livres?

Uma vez que você introduz tecnologia em cenários de desigualdade, ela não melhora as coisas. Muitas vezes, ela reforça o que existe.

Há essa crença nos EUA e na Europa Ocidental de que há algo mágico na tecnologia que vai dissolver todas as barreiras e desigualdades. É uma enganação.

O sr. então recomenda ceticismo.

E.M. – A única coisa que podemos fazer é ver se as decisões são as melhores, se não estamos bancando projetos que piorem a situação.

No Departamento de Estado dos EUA há especialistas em inovação que sabem tudo do Vale do Silício e nada do contexto cultural das regiões com que trabalham.

A campanha de [Barack] Obama e a fascinação dele com tecnologia criaram a presunção de que ela deve ser usada a qualquer custo e fará os problemas sumirem.

O sr. exalta a internet como ferramenta de democracia deliberativa. Os internautas querem se envolver em política?

E.M. – Há muito pouco que a democracia deliberativa possa fazer para mudar o debate sobre mudança climática ou regulamentação financeira, mas em temas locais ela pode impactar. Tentar incorporar mais gente no processo decisório, sobretudo em questões de tecnologia, como as políticas de privacidade do Facebook, faz todo o sentido.

Passamos do ponto em que se podia preservar a privacidade no Facebook?

E.M. – Não. Não vejo nada errado com quem quer dividir todas as suas informações, mas quero que as pessoas tomem decisões bem informadas.

Não há uma mudança cultural na geração mais jovem, mais disposta a se expor?

Não gosto dessa discussão, acho que foi orquestrada por empresas como o Facebook, que gostam de falar sobre inevitabilidade, dizer que só fazem as ferramentas, que se não fizerem alguém fará.

A internet deve ser regulada?

E.M. – Não é uma questão de ‘se’, é uma questão de como regulá-la.

As pessoas muitas vezes não percebem quantas leis existem para garantir sua liberdade de expressão.

Não queremos a regulação do Irã e da China, mas nem por isso não vamos ter nenhuma regulação.

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Obra questiona se internet amplia poder

Blogueiro prolífico e professor, o bielorrusso Evgeny Morosov é pouco otimista em The Net Delusion, the Dark Side of the Internet Freedom (A ilusão da rede, o lado negro da liberdade na internet), que lançará em janeiro.

No livro, ele questiona se a internet amplia o poder dos ditadores na mesma medida que dá voz a seus oponentes. Ou se há, como alguns creem, algo inerente à rede que a torne ferramenta de libertação.

Sobretudo, provoca se ela é mesmo um catalisador de mudanças sociais. ‘Não sendo, será que ela não pode ajudar a sustentar regimes autoritários?’

‘Muita gente acha que o comunismo caiu por causa de faxes e fotocopiadoras. Agora acham que blogs no Irã e na China terão o mesmo papel’.

Nos últimos anos Morizov abordou o tema em seu blog pessoal e no respeitado ‘The Net Effect’ (jogo de palavras entre efeito liquido/efeito na rede), da Foreign Affairs, além de em artigos cada vez mais frequentes em publicações internacionais como a Economist.

Professor-visitante em Stanford e bolsista da Universidade Georgetown (Washintgon) e do Open Society Institute, ele trabalhou em uma ONG focada em desenvolver a internet em países da ex-URSS.