Wednesday, 16 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Liberdade é alvo de hostilidade global

Inspirado em grande medida pelos governos das duas maiores potências econômicas, China e Estados Unidos, um clima de ódio à liberdade de expressão, em particular ao jornalismo independente, está se espraiando de modo inédito por quase todo o mundo.

O mais recente índice de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras mostra apenas 17 nações, entre 180 examinadas, em que a garantia ao exercício da profissão é plena, ou quase. O relatório revela que mesmo em países nórdicos, como Noruega e Suécia, que lideram a lista, têm sido registrados ataques a jornalistas ou veículos de comunicação por parte de políticos ou organizações, com variados níveis de agressividade.

O Brasil aparece em 102º lugar, com a legenda “mais inseguro do que nunca”. O relatório destaca no país ataques físicos contra repórteres em manifestações de rua, assassinatos, impunidade generalizada e ameaças à confidencialidade de fontes.

As últimas colocações estão com Coreia do Norte, Eritreia, Turquestão, Síria e China, mas isso não representa novidade. O assustador é que a situação se degrada em sociedades que até pouco tempo atrás eram consideradas democracias elogiáveis.

As agressões verbais e ameaças a jornalistas na França, por exemplo, chegaram ao seu ápice na polarizada campanha eleitoral de 2017, e a levaram ao 33º lugar no índice.

Em países onde líderes populistas e autoritários chegaram ao governo ou ampliaram sua margem de poder, como Áustria, Itália, Hungria, Polônia, Filipinas e Turquia, as coisas vêm se agravando muito e rapidamente.

A China está se especializando em exportar tecnologia de vigilância para controlar atividades de cidadãos que se opõem ao governo e principalmente jornalistas.

Tal expertise chinesa já está sendo usada por Tailândia, Vietnã, Sri Lanka, Irã, Zâmbia, Zimbábue. Os Estados Unidos, que caíram dois pontos na tabela (estão agora em 45° lugar), são um caso à parte, porque até 2016, apesar de seus próprios problemas com a liberdade de expressão nunca terem sido pequenos, seu governo costumava denunciar situações mais graves no mundo.

Na administração de Donald Trump, Washington deixou de se preocupar com violações de direitos humanos, mesmo as mais ostensivas, por parte dos outros, e vem cometendo as suas próprias em escala crescente, como o aprisionamento de crianças filhas de imigrantes que entraram ilegalmente no país.

Especificamente em relação à imprensa independente, Trump vem movendo campanha de ódio sem precedentes. O nível retórico de ofensas, injúrias, calúnias contra veículos e jornalistas que não o adulam não para de crescer.

O presidente passou a incitar seguidores a insultar com gritos, gestos obscenos e cartazes os profissionais desses veículos em comícios, o que às vezes inviabiliza o seu trabalho. Como a maioria dos fãs de Trump é também adepta do uso de armas, não é improvável que algum dia essa hostilidade se transforme em tragédia. Em junho, um homem armado invadiu a redação do Capital Gazette, em Annapolis, e matou cinco pessoas. A motivação do assassino não foi política ou partidária.

Aparentemente desequilibrado mental, o invasor não gostou do que o jornal escreveu a respeito dele anos atrás. Não se pode atribuir a Trump ou seus aliados esses homicídios, mas o clima de intolerância a informações veiculadas pode ter contribuído para a decisão do criminoso em agir.

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TURQUIA

Alegação de terror leva 24 jornalistas à prisão

O presidente turco Recep Erdogan é um dos piores inimigos da liberdade de expressão. Desde que uma suposta tentativa de golpe de Estado contra ele ocorreu em 2016, a repressão a veículos de comunicação independentes ou de oposição cresceu muito.

Um de seus principais alvos foi o jornal Zaman, que deixou de circular há dois anos, sob a acusação de ter ligações com um clérigo rival exilado nos Estados Unidos.

Quase todas as pessoas da redação são consideradas terroristas e 24 foram condenadas a sentenças de prisão de seis a sete anos, em março.

Há outros 17 jornalistas de meios de comunicação independentes processados por alegações similares e muito provavelmente terão o mesmo destino dos colegas do Zaman.

Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas, a Turquia é o país que tem maior número de profissionais de imprensa presos. Com os 24 deste ano, são 97, alguns dos quais cumprindo penas de prisão perpétua. Em junho, Erdogan foi reeleito presidente com poderes ampliados em relação aos que tinha antes.

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AFEGANISTÃO

Ataques a bomba em série matam dez em um só dia

Atentados suicidas em maio mataram nove jornalistas em Cabul e outro foi morto por um livre atirador na cidade de Khost. Foram os maiores atos de violência contra a imprensa desde
o fim do regime talibã. A imprensa afegã tem se fortalecido nestes anos.

Todos os repórteres vítimas eram afegãos, mas trabalhavam para veículos internacionais, inclusive a rede inglesa de TV BBC. A razão dos ataques foi a insatisfação de grupos que se digladiam pelo poder no país com a cobertura dos profissionais assassinados.

Esse foi o dia em que maior número de jornalistas foi morto no mundo desde janeiro de 2015, quando 12 morreram no ataque à redação do Charlie Hebdo em Paris.

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NÚMEROS FORTES

-11 jornalistas foram assassinados no México em 2017, o que o tornou o segundo país mais letal para a profissão, atrás da Síria

-43% dos filiados ao Partido Republicano nos EUA acham que Trump deve poder fechar redações por má conduta

-14% dos filiados ao Partido Republicano nos EUA diziam confiar na imprensa do país no final de 2017; em 2000, essa porcentagem entre os republicanos era de 45%

-4.229 foi o total de mentiras ditas pelo presidente Donald Trump entre o dia de sua posse (20/1/2017) e 5/7/2018, segundo tabulação do Washington Post

-27 mil empregos em redações foram eliminados nos EUA entre 2008 e 2018 (de 115 mil para 88 mil); a maioria em jornais impressos

-58% dos americanos adultos dizem ler notícias em telefones ou tablets, três vezes mais do que em 2013

-72% dos americanos dizem acreditar que as mídias sociais censuram intencionalmente pontos de vista políticos; entre os republicanos, são 86%

Fontes: Reporters Without Borders, Ipsos, FiveThirtyEight, The Washington Post, Pew Research Center.

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“Eles [jornalistas] de propósito causam grande divisão e desconfiança. Eles também podem provocar guerra! Eles são muito perigosos e doentes!”

(De um tuíte do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em 5 de agosto de 2018, ao final de uma semana em que ele insultou jornalistas em diversos comícios pelo país.)

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QUESTÕES ÉTICAS

Casos mostram problemas de relação com fonte

Intimidação policial

Em Minas Gerais, duas jornalistas de O Tempo tiveram de prestar depoimento em inquérito policial durante o qual lhes foi pedido que revelassem a identidade de fontes de reportagem sobre a Codemig, empresa estatal que explora nióbio no estado.

A Codemig acusa um ex-funcionário de ter vazado documentos para as repórteres sobre venda de ações e contratação de empréstimos para sanar dívidas do governo estadual. As jornalistas se recusaram a identificar suas fontes, direito que lhes é assegurado pela Constituição do Brasil, um dos poucos países que dispõem sobre esse assunto, vital para o bom exercício do trabalho da imprensa. O jornal O Tempo e o Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais repudiaram o ato de intimidação.

Questão de consciência

Nos Estados Unidos, onde o direito de confidencialidade da fonte não existe e vários jornalistas já cumpriram pena de prisão por resguardar identidade de quem lhes passou informações, uma blogueira revelou a sua à polícia federal alegando um dever ético. Marcy Wheeler mantém um conceituado blog sobre segurança nacional.

Uma de suas fontes lhe informou menos de 24 horas depois de terem sido fechadas as urnas da eleição presidencial americana de 2016 de reuniões de assessores do presidente eleito, Donald Trump, com agentes de inteligência da Rússia.

Ela resolveu transmitir ao FBI o nome da pessoa e o conteúdo de suas revelações porque achava que, com isso, ajudaria as autoridades a impedirem futuros atentados contra a integridade do processo eleitoral americano.

Violação de correspondência

A situação de Ali Watkins, repórter da sucursal do New York Times em Washington, foi oposta. Promotores públicos federais ordenaram o sequestro de suas mensagens por e-mail e telefone feitas durante anos para encontrar provas contra um ex-funcionário da comissão de inteligência do Senado acusado de vazar documentos secretos para a imprensa.
O caso é ainda mais interessante porque Watkins e o acusado, James Wolfe, mantinham relacionamento amoroso fazia três anos. Ela havia dito a seus editores que namorava Wolfe ao ser contratada pelo Times e assegura que ele não foi fonte de nenhum de seus textos para o jornal. Ela cobre temas de segurança nacional.

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SAÍDA PARA A CRISE?

Governo financia jornalismo

O governo do estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos, resolveu subsidiar com US$ 5 milhões um consórcio de universidades que terá a responsabilidade de alocar o dinheiro a veículos de imprensa para suas reportagens.

A quantia é pouca para as dificuldades econômicas de jornais e emissoras de rádio e TV, mas o precedente chama a atenção. Nova Jersey é considerado um dos estados mais corruptos do país. O conselho que vai dirigir o consórcio é composto de 13 pessoas escolhidas pelo governador entre indicados pelas universidades, jornais e pelo próprio governo.

A ideia de dinheiro público pagar pelo jornalismo é antiga, e tem entre seus defensores até o filósofo alemão Jürgen Habermas. Há precedentes nos Estados Unidos, como as redes de rádio NPR e de TV PBS. Mas a desconfiança de possível interferência política na destinação dos recursos está sempre latente em todas as situações.

A NPR e a PBS sobrevivem apenas em parte de recursos do governo federal. Sua principal fonte de receita são doações de cidadãos. A verba de Nova Jersey para seus veículos é mínima e não resolverá a crise vivida pelos veículos locais. De qualquer modo, é preciso estar atento para ver se não ocorrerão ingerências políticas.

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MÁ CONSCIÊNCIA?

Destruidor dos classificados patrocina estudos de jornalismo

Diz a lenda que Craig Newmark, na época um pobre nerd viciado em tecnologia, procurou em meados da década de 1990 o jornal The Washington Post para lhe oferecer uma tecnologia criada por ele para modernizar a oferta de imóveis no veículo, e saiu de lá com as mãos abanando e as orelhas ardendo.

O Post e outros grandes jornais metropolitanos tinham nos classificados sua galinha de ovos de ouro. Newmark seguiu seu rumo, fundou o website Craiglist, inicialmente apenas para a área da cidade de São Francisco e depois se espalhou pelo país e pelo mundo.

Os classificados em jornais morreram e com sua morte os jornais impressos viram acelerar-se a crise de seu modelo de negócios. Um estudo da Harvard University calcula que os jornais americanos perderam US$ 5 bilhões que poderiam ter recebido em classificados só entre 2000 e 2007.
Newmark, 65, acaba de fazer uma doação de US$ 20 milhões para a escola de jornalismo da City University of New York (Cuny) para pesquisa e ensino. “Nestes tempos, em que a notícia confiável está sob ataque, alguém precisa se levantar”, justificou.

Este é o maior, mas não o primeiro presente que Newmark oferece ao jornalismo. Ele já doara antes entre US$ 500 mil e US$ 1 milhão para a revista Columbia Journalism Review, o instituto de pesquisa Data&Society, a entidade International Center for Journalists e o produtor de reportagens investigativas ProPublica.

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OUTRA SAÍDA

Veículos sem fins lucrativos conseguem levantar bom dinheiro

Vinte anos atrás, praticamente não havia veículos jornalísticos estruturados sem fins lucrativos nos Estados Unidos. Atualmente, são cerca de 270, que têm encontrado cada vez mais e eficientes fontes de receita. De acordo com o Shorenstein Center, da Harvard University, só entre 2010 e 2015, os veículos sem fins lucrativos receberam dotações de US$ 1,8 bilhão de fundações e ONGs para desenvolver seus trabalhos.

Um dos mais recentes grandes negócios nesse setor foi a compra pelo empresário de TV paga Gerry Lenfest dos dois jornais diários da cidade de Filadélfia. Lenfest, que morreu em agosto, doou os títulos a uma fundação sem fins lucrativos que ele também criou e que agora vai gerir os negócios dos dois diários.

Enquanto os veículos que operam para gerar lucro prosseguem tendo prejuízos, demitindo pessoal (segundo o Pew Research Center, 35 mil vagas de jornalistas foram fechadas nos Estados Unidos desde 2006) e fechando as portas, algumas redações sem fins lucrativos
estão na trilha oposta.

Levantamento feito pelo Institute for Non profit News, que reúne 150 veículos, mostra que o ProPublica e o Center for Investigative Reporting levantaram em torno de 200 milhões de dólares para produzirem suas reportagens, muitas das quais acabaram recebendo
importantes prêmios.

No pequeno estado de Vermont, na Nova Inglaterra, o site VTDigger conseguiu em apenas três anos amealhar 300 mil assinantes, contratar 19 pessoas em tempo integral e faturar US$ 1,5 milhão, num dos melhores exemplos de sucesso do gênero em escala local.

Entre as fórmulas de sucesso do VTDigger, de acordo com sua fundadora e líder, Anne Galloway, está a de manter a máxima interação possível com o público (inclusive com eventos abertos para discussão de problemas da comunidade com políticos e governantes), manter estrutura enxuta para oferecer serviços a preços baixos, ter uma linha editorial apartidária, mas sempre fiel a alguns valores básicos compartidos com a audiência.

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Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente, doutor e mestre em comunicação; foi diretor-adjunto da Folha de S.Paulo e do Valor.