
(Foto: Desola Lanre-Ologun na Unsplash)
A proliferação de fake news e a consequente desinformação tornaram-se um desafio global que transcende fronteiras geográficas e sociais, afetando profundamente a maneira como criamos, consumimos, processamos e disseminamos informações. No Brasil, o fenômeno assume proporções alarmantes: uma pesquisa do Instituto Locomotiva de 2024 revelou que quase 90% dos brasileiros admitem ter acreditado em conteúdos falsos, enquanto apenas 62% confiam na própria capacidade de diferenciar informações verdadeiras das falsas. Esse número aumentou nos últimos anos, com o uso massivo de redes e mídias sociais, visto que essas transformaram o então consumidor de informação em produtor, consumidor, disseminador e influenciador.
A adesão a narrativas falsas nos conduz a uma espécie de “servidão voluntária” – conceito elaborado por Étienne de La Boétie no século XVI –, uma aceitação rápida e inconsciente de informações que enfraquecem nossa capacidade de pensar criticamente, processo que demanda tempo e esforço mental. La Boétie questionava como era possível que poucos dominassem muitos sem o uso da força, concluindo que a própria população colabora com sua submissão, criando uma pirâmide de poder onde cada nível reproduz a dominação aos níveis inferiores.
É fundamental fazer um adendo: a relação do ser humano com notícias falsas não é recente, nem começou com o advento das tecnologias digitais e das mídias sociais. Durante a República Velha brasileira, as eleições de 1922 já eram marcadas por fake news. Na guerra civil romana de 44 a.C., Cícero e Marco Antônio travaram o que historiadores chamam de “guerra de desinformação sem precedentes”. O caso da Escola Base, em 1994, demonstra como informações erradas podem destruir vidas: os proprietários Icushiro e Maria Aparecida Shimada foram falsamente acusados de abuso sexual infantil, tendo suas vidas devastadas por uma mentira que se espalhou pela mídia tradicional.
O que torna o fenômeno atual particularmente perigoso é como as plataformas e mídias digitais exploram (com nossa autorização) nosso sistema neurológico de recompensa. Enquanto professora e cientista da informação, observo que o ensino superior – historicamente bastião do conhecimento, da pesquisa rigorosa e do pensamento crítico – já enfrenta as consequências desse fato, de modo silencioso.
A desinformação tem uma interessante relação com o “infinite scrolling” das redes e mídias sociais que ativa áreas cerebrais similares às estimuladas por substâncias viciantes e que cria um ciclo de busca por gratificação instantânea. Pesquisas recentes mostram que quando visualizamos conteúdo personalizado por algoritmos, regiões como a área tegmental ventral são fortemente estimuladas, liberando dopamina de forma efêmera e criando dependência. Se deixa de confrontar as próprias ideias e “certezas” para reafirmar infinitamente os mesmos discursos e teorias.
Este mecanismo neurobiológico explica por que uma pesquisa com mil estudantes brasileiros revelou que 47% dos jovens utilizam o TikTok como principal rede social, passando em média 4,39 horas diárias conectados. O cérebro, acostumado a gratificações instantâneas, desenvolve tolerância dopaminérgica, necessitando de estímulos cada vez mais intensos e perdendo a capacidade de sustentar foco em atividades que exigem esforço prolongado. Habilidade necessária para se desenvolver como estudante e pesquisador de qualquer área. E sim! Isso demora, é chato, é cansativo, não é divertido como gravar um vídeo de 1 minuto roteirizado feito com tecnologia de IA.
Este modo de criar e consumir informação penetra salas de aula e laboratórios universitários. Uma pesquisa da Universidade Federal de Rondônia com estudantes ingressantes mostrou que o Instagram e YouTube são as principais fontes de informação no cotidiano universitário. Quando o grupo tem menor idade, a principal fonte passa a ser o TikTok.
Este cenário se materializa no ambiente acadêmico por meio de situações concretas, como trabalhos acadêmicos baseados em fontes não confiáveis, como blogs, fóruns e perfis de influenciadores não especialistas no tema em redes sociais; utilização em massa de textos gerados por IA sem qualquer revisão ou modificação posterior; argumentação com pseudociência, como “homeopatia quântica” ou “biologia da consciência” e o próprio negacionismo científico, onde narrativas políticas passam a questionar métodos, teorias e tratamentos cientificamente comprovados.
Além da responsabilidade individual de criação e uso da informação, a educação midiática é ferramenta essencial, mas precisa ser integrada de forma sistêmica no currículo universitário, indo além de palestras sobre identificação de Fake News e uso de mídias e redes sociais. É necessário capacitar os discentes a se tornarem profissionais das mais diferentes áreas, que procuram e usam informação de modo crítico, tendo responsabilidade com a sociedade.
Algumas universidades brasileiras, como a Universidade de Brasília, a Universidade Federal Fluminense e a Universidade Federal da Paraíba já começaram a reagir organizadamente, lançando comitês de enfrentamento à desinformação, centros de referência para o ensino do combate à desinformação e laboratórios de combate à desinformação. Outras universidades federais se uniram para produzir o programa “Comunicação Universitária em Rede”, que visa combater fake news sobre emergências climáticas, por exemplo. Outra iniciativa é a UFF que desenvolve algoritmos de inteligência artificial capazes de detectar notícias falsas com 86% de acurácia, enquanto a UFMG implementa projetos de educação midiática no ensino fundamental.
É preciso olhar para o combate desse tipo de informação nas áreas de Comunicação e Informação, mas também na área da Saúde, que nos últimos anos se tornou alvo fácil para disseminação de “barbaridades” em mídias e redes sociais em perfis de pseudoespecialistas e até mesmo de profissionais da saúde formados.
Esse fenômeno é consequência também da formação que esses profissionais tiveram em seu processo de formação nas faculdades e universidades. Uma pesquisa recente sobre pensamento crítico no ensino superior brasileiro revelou que o país ocupa posições baixas em rankings internacionais de criatividade e pensamento crítico, ficando na 44ª posição entre 57 países analisados no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). Estudos mostram que o uso excessivo de redes sociais também afeta negativamente o desempenho acadêmico, com 99% dos universitários utilizando redes e mídias sociais, mas apenas 5,66% dedicando mais de quatro horas semanais aos estudos. Um ponto preocupante, é que muitos desses discentes estão se formando em cursos da área de Informação e Comunicação.
O desafio é grande, mas a resposta deve ser articulada e demanda um movimento de diversos sujeitos. A universidade, em sua totalidade, precisa se reorganizar para novas ações, como desenvolvimento de criticidade dos discentes em relação às fontes de informação, avaliações que façam sentido para os novos contextos de aprendizagem e mercado de trabalho, alfabetização informacional e formações contínuas para o uso de tecnologias emergentes para docentes e discentes, e ainda, políticas institucionais que promovam divulgação científica de modo responsável.
Combater a desinformação e afastar esse “conforto cognitivo” de alguns discentes no ensino superior é mais do que proteger o espaço de criação de conhecimentos, é defender a capacidade de pensarmos, debatermos, olharmos para problemas reais e criarmos soluções a partir de um lugar que máquinas (ainda) não partem.
As tecnologias digitais de informação e comunicação são e continuarão sendo ferramentas valiosas no ambiente acadêmico. No entanto, é crucial que estas não subvertam nossa neurobiologia, especialmente diante da pseudociência que busca validação acadêmica. É imperativo preservarmos a liberdade intelectual, que depende da nossa capacidade coletiva de resistir a recompensas imediatas, soluções simplistas e ao “conforto cognitivo”. Em vez disso, devemos abraçar a complexidade e o esforço necessários para o desenvolvimento do pensamento crítico.
***
Georgia Ramine é professora e pesquisadora na área de Informação e Comunicação. Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Pernambuco, dedica-se a estudos de uso social da informação, letramento digital e informação estética.
