Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cristina, a dama do antagonismo

“Este é o pior momento para a liberdade de expressão desde a volta da democracia.” A frase é do historiador Luis Alberto Romero, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA), pesquisador do Conselho Nacional de Investigação, Ciência e Técnica (Conicet) e autor de Setores Populares, Cultura e Política e Breve História Contemporânea Argentina: 1916-2010. Romero considera que o governo da presidente Cristina Kirchner exerce constante pressão sobre todos aqueles que não estão alinhados totalmente com a Casa Rosada, o palácio presidencial. “Quem pensa diferente é rotulado de inimigo imediatamente”, afirma.

Nos últimos anos, o historiador viu diversos amigos terem de aderir, pelo menos aparentemente, ao kirchnerismo para não perder seus empregos públicos. Em entrevista ao Aliás em um café no bairro de Belgrano, Romero sustentou que a presidente Cristina Kirchner, que mantém um permanente confronto com a imprensa, intelectuais e setores da sociedade não alinhados, faz do antagonismo sua forma de governar. O historiador também avaliou os estranhos mecanismos psicológicos que muitos militantes kirchneristas usam para ignorar os casos de corrupção e de censura encoberta do governo.

“Os radicais identificavam o radicalismo com a nação”

Desde quando a história argentina é marcada pelos antagonismos políticos de grande magnitude?

Luis Alberto Romero– Esses antagonismos substanciais já ocorriam na época de Juan Manuel de Rosas (na primeira metade do século 19). Mas isto permanece no século 20. E tem a ver com o estilo de democracia que se estabeleceu na Argentina, o de uma democracia plebiscitária, que parte da ideia de que o povo, como ente indivisível, só deve dar ouvidos a um único líder. Como esse povo é visto como algo supostamente unânime, aquele que não concorda, que não pertence, é encarado como inimigo. E com o inimigo, de acordo com esse raciocínio, não se dialoga: ataca-se. Essa é uma posição muito comum no século 20 na Argentina, que fica forte com a eleição de Hipólito Yrigoyen, da União Cívica Radical (UCR), em 1916. Os radicais identificavam o radicalismo com a nação. E, assim, colocavam-se de lado as instituições republicanas. Além disso, os radicais daquela época denegriam permanentemente os opositores. Esse estilo se intensificou com o fundador do peronismo, Juan Domingo Perón, na segunda metade dos anos 1940 e início dos 50. No entanto, sob o governo Yrigoyen havia liberdade de expressão.

“O sistema funciona para intimidar”

No governo Perón a liberdade de expressão se deparou com problemas?

L.A.R.– Perón fechou, confiscou e estatizou jornais. Outros meios continuaram funcionando, mas graças à autocensura. Meu pai (o historiador José Luis Romero) colaborava com o jornal La Nación. E, quando lia o jornal, às vezes me dizia que o estilo jornalístico desse periódico estava muito imbricado, já que era a única forma de tentar falar as coisas elipticamente, sem ser explícito, para evitar problemas com o governo Perón, que já havia fechado o jornal La Prensa.

O antagonismo tornou-se uma forma de governar?

L.A.R.– Um dos mentores do kirchnerismo, o acadêmico Ernesto Laclau, indica, tal como Carl Schmitt (filósofo alemão que defendia um Estado que interferisse em todas as esferas da sociedade), que o antagonismo é politicamente muito produtivo, já que molda a unidade e acelera a iniciativa. Ora, há poucos dias, o secretário de Comércio Interior, Guillermo Moreno, comentou que enviou agentes da Afip (sigla da receita federal argentina) atrás de um empresário que havia feito críticas à política econômica do governo Kirchner. Ele comentou isso e se ufanou! Esse sistema funciona para intimidar, tal como o poder de um Estado mafioso, que opera assim até o dia em que fica fraco e aí os próprios aliados o atacam sem piedade. O governo está aprofundando essa forma de alternativa política. Se, por acaso, retrocedesse para algo mais “normal”, perderia. É uma combinação de convicções e de táticas.

“A rua está recuperando seu protagonismo”

Estar disposto a um cenário de diálogo seria, para o kirchnerismo, uma demonstração de fraqueza?

L.A.R.– Exato. Eles o encaram assim. Isso ficou claro no conflito com o setor ruralista em 2008.

No dia 13 de setembro, 200 mil pessoas foram às ruas de Buenos Aires para protagonizar um panelaço contra o governo da presidente Cristina. Outras dezenas de milhares foram às ruas nas principais cidades do país. Como avalia a reação da presidente Cristina a esses protestos?

L.A.R.– O ex-presidente Néstor Kirchner costumava dizer que tinha medo de duas coisas: o jornal Clarín (o maior da Argentina) e os panelaços. Quando ocorreram os panelaços de 2008, os Kirchners reagiram imediatamente. Uma guarda pretoriana liderada por aliados do governo varreu da Praça de Mayo os manifestantes que ali protestavam. A ideia de removê-los indicava que o governo pensava que se eles não fossem vistos, não existiriam. Mas, nesses últimos panelaços de setembro, a reação do governo não foi tão rápida. Não houve conflitos. Enquanto em 2008 houve violência física preventiva por parte da tropa de choque do governo, dessa vez houve violência verbal posterior. O fato é que a rua está recuperando seu protagonismo. Na história argentina há vários momentos em que ela foi cenário de disputas simbólicas. Hoje, nas ruas, estão em jogo duas ideias, duas vertentes da democracia: uma democracia republicana e uma plebiscitária.

“O uso intensivo da rede nacional de TV”

Ministros do governo Kirchner referiram-se aos manifestantes, convocados pelas redes sociais, como golpistas…

L.A.R.– Da mesma forma que ocorreu em 2008, o governo considera que uma manifestação com ideias diferentes tem intenções “destituintes”.

Qual foi o recado dos panelaços ao governo?

L.A.R.– Todos expressaram uma insatisfação com o governo e sua política atual. Foi uma espécie de sinal de trânsito: “Pare!” Alguns estariam ali para protestar contra as tentativas de segunda reeleição de Cristina. E muitos desses haviam votado na presidente em outubro do ano passado. Possivelmente ocorrerão outras marchas de protesto, mas com lemas mais definidos. E talvez o fator de união das próximas manifestações seja a oposição aos planos de modificação da Constituição que pretendem permitir reeleições indefinidas. Dessa forma, se ocorrerem novos protestos, poderiam estar juntas nas manifestações tanto pessoas que nunca gostaram de Cristina Kirchner como aquelas que, mesmo tendo votado nela no passado, consideram que a perpetuidade no poder leva a algum tipo de degeneração democrática.

Existe uma diferença no estilo de governar e de confrontar entre o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) e sua sucessora?

L.A.R.– A sensação é que Kirchner controlava os detalhes da política, que nada escapava a seu controle. A presidente Cristina substituiu essa forma artesanal de fazer política pelo uso intensivo da rede nacional de TV (Cristina recorreu à rede nacional de TV 18 vezes desde o início do ano). Mas a presidente, que foi uma ativa parlamentar quando deputada e senadora nos anos 1990 e início da década passada, mudou seu estilo. Agora, quando fala ao país, parece estar no meio de uma conversa num pátio de cortiço.

“Não estão sendo aplicados mecanismos totalitários”

O sr. considera que Cristina tentará mudar a Carta Magna para disputar uma segunda reeleição presidencial em 2015?

L.A.R.– Com certeza tentará a reeleição. Mas isso terá seu custo. Essa continuidade será terrível se estiver unida à manutenção do aparato político. A periodicidade das funções públicas é uma coisa saudável.

O sr. costuma afirmar que o país está em decadência…

L.A.R.– Nas últimas três décadas a Argentina está em decadência. Há menos aparato do Estado. Quanto menos Estado há, o governo tem mais força para utilizar o que resta dele para construir poder. Isso é o que ocorre no peronismo. Os peronistas pensam sobre como consolidar e reproduzir o poder. O governo Kirchner devorou o Estado argentino. E, como o Estado está deteriorado, a única forma de governar esse aparato é na base da pancada. É um estilo de confronto e de arbitrariedade que se usa para governar um país cujos mecanismos normais não funcionam bem.

Analistas e jornalistas afirmam que este é o pior momento desde a volta da democracia.

L.A.R.– Sim, é o pior momento. E, além disso, a Casa Rosada criou um sistema de empresas de mídia alinhadas com a presidente Cristina, alimentadas com a publicidade oficial do governo, que somente publicam notícias favoráveis à presidente e seus ministros. Mas, tirando a ação da receita federal para intimidar jornalistas e jornais, não estão sendo aplicados mecanismos totalitários, como seria o envio da polícia para prender um jornalista.

“Esse é crente ou é cínico?”

Como esse clima de tensão, pressões ideológicas e ameaças afeta o ambiente acadêmico?

L.A.R.– Convocamos, com o sociólogo Vicente Palermo, um grupo de intelectuais para debater a sociedade e política. Mas os colegas alinhados com o kirchnerismo evitaram participar. Uns, porque simplesmente não queriam. Outros, porque tinham medo de represálias do governo, inclusive o de serem demitidos de seus cargos. E antes do kirchnerismo eles eram amigos com os quais compartilhávamos espaços.

Há intelectuais que deixam de publicar paperspara evitar problemas com o governo?

L.A.R.– Temos colegas que estão em cargos no governo, e por isso evitam publicar coisas com seus nomes. Então… (faz uma pausa) recorrem a pseudônimos para publicar. Outros aderem ao governo, mas possuem sentido crítico e guardam suas críticas para si próprios, preferindo calar. E há outros que aderiram totalmente ao governo da presidente Cristina.

Seria, mutatis mutandis, como no século 17, quando Galileo Galilei teve que dizer ‘eppur si muove’ para salvar-se da Inquisição e de ser incinerado na fogueira, tal como havia ocorrido com Giordano Bruno?

L.A.R.– Às vezes, quando vejo alguns colegas, fico pensando: “Esse é crente ou é cínico?” Bom, espero que seja cínico. Pois, com um cínico, se a conjuntura muda, dá para dialogar de novo.

“Curioso como a fé funciona, não é?”

O governo Kirchner se orgulha de travar uma batalha contra os ex-integrantes da ditadura, mas diversos kirchneristas estiveram alinhados com ela. Esse é o caso do chanceler Héctor Timerman, que criou um jornal dias antes do golpe de 1976 para respaldar os militares. Ou do economista Aldo Ferrer, que foi ministro da Fazenda dos ditadores Levingston e Lanusse e agora é embaixador de Cristina em Mônaco.

L.A.R.– É também o caso da cunhada da presidente Cristina, Alicia Kirchner, ministra da Ação Social, que foi funcionária do regime militar na província de Santa Cruz. Isso me recorda que, no começo do século 20, o prefeito de Viena, Karl Lueger, fez do antissemitismo uma forma de arrecadar votos nos diversos setores racistas. Mas, ao mesmo tempo, Lueger tinha vínculos com empresários judeus. Então, para diferenciar quem deveria ser atacado e quem não deveria ser alvo, ele dizia: “Judeu é aquele que eu digo que é judeu.” E este governo decide quem é “acusável” e quem não é.

É como uma espécie de ponte de safena para esconder esses paradoxos da política, na expectativa de que a fé dos militantes resista aos fatos?

L.A.R.– Sim. Militantes deste governo devem pensar que, se a imprensa revela o passado sombrio de algum integrante do kirchnerismo, os jornalistas que protagonizaram essa revelação devem estar mentindo (faz uma pausa e sorri com ironia). Curioso como a fé funciona, não é?

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[Ariel Palacios, correspondente em Buenos Aires do Estado de S.Paulo]