Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

E no país do futebol…

E não foi que no país do futebol, o único pentacampeão do mundo, na pátria de chuteiras, em que o velho esporte bretão é o símbolo de uma idiossincrasia quase metafísica que nos redime perante o mundo e se amalgama com os signos identificadores da nacionalidade – logo neste país, durante a realização de um torneio internacional da Fifa, o futebol ficou em segundo plano, sumiu das primeiras páginas dos grandes jornais brasileiros, suplantado que fora por manifestações em centenas de cidades do Brasil contra o aumento das passagens, contra a corrupção e os desmandos do poder público no país, e a favor da educação, da saúde, dos serviços públicos de qualidade.

“Sem controle”, manchete que tomou toda a primeira página do Globo da sexta-feira (21/6), não era referência à defesa da modesta seleção do Taiti, que no dia anterior levara goleada histórica de 10 a 0 dos reservas da campeã mundial Espanha, no Maracanã. Mas, sim, alusão ao “Brasil nas ruas”, frase do cabeçalho do jornal, acima da manchete, no que isso tinha de melhor (a mobilização) e pior (o vandalismo). Por essa, nem o mais poderoso pitonisa seria capaz de esperar.

“Não é a Turquia, não é a Grécia, é o povo brasileiro saindo da inércia”, gritavam os manifestantes nas ruas, e os ecos desse e de outros tantos gritos, pelo ineditismo da situação, deixaram perplexos os políticos, os analistas políticos, os jornalistas nativos e internacionais, os intelectuais – os intérpretes deste Brasil, enfim. Que Brasil é este? Até o início de junho, o consenso era de que se tratava de um país conformista, cujo povo, acomodado, não se sublevava contra os mandatários do poder. Esteticista, o brasileiro só se mobilizava em eventos lúdico-catárticos, como futebol e carnaval, ou, quando havia movimento reivindicatório, baseava-se este em defesa de causas que reforçavam um padrão estético despolitizado de comportamento individual – como as paradas de orgulho gay ou as marchas pela discriminação da maconha.

Veio de um estrangeiro, o jornalista Juan Arias, correspondente do jornal espanhol EL País no Brasil, em artigo publicado no dia 7 de julho de 2011, a percepção aguda desta realidade. Perguntou ele por que a população brasileira não saía às ruas para protestar contra a corrupção e outras mazelas. “Que país é este que junta milhões numa marcha gay, outros milhões numa marcha evangélica, muitas centenas numa marcha a favor da maconha, mas que não se mobiliza contra a corrupção?” 

Agora, a velha esfinge transmuda-se noutra, e pede decifração: que país é este que, saindo da imobilidade, incendeia as ruas e parece concretizar a metáfora do gigante que, por séculos adormecido, desperta com a fúria de resgatar o tempo perdido? Muitas páginas haverão de ser escritas sobre estes já históricos dias de junho de 2013 no Brasil. Por hora, como estamos ainda no desenrolar dos acontecimentos, os perplexos observadores da cena nacional temos mais perguntas do que respostas: estará o gigante vivendo um surto de sonambulismo em que, pensando estar acordado, voltará ao sono profundo logo depois? A massa nas ruas exibindo bandeiras difusas, sem lideranças e repudiando a tradicional democracia representativa dos partidos e das instituições, é a variação de nosso esteticismo despolitizado, é indício de infiltração de grupos fascistas ou udenismo moralista de classe média? Ou, paradoxalmente, nova forma de conscientização política da sociedade em rede, diferente dos velhos paradigmas da sociologia e da ciência política?

Rastilho aceso

Um dos aspectos mais interessantes nessa sublevação brasileira é o momento em que o futebol, de símbolo da alienação, torna-se objeto de reflexão que está levando as massas às ruas e até à proximidade das “arenas” não para comemorar a vitória de um time e da seleção – mas para contestar os gastos exorbitantes com a construção de estádios e a promiscuidade de dirigentes e entidades esportivas. O deslocamento é significativo: desde que os gritos de gols daquela fantástica seleção de 1970 sufocaram os gritos dos torturados do milagre econômico, tendo servido ideologicamente à ditadura militar como justificativa ufanista de suas grandes realizações, setores da esquerda brasileira passaram a ver, no futebol, tudo o que a cultura popular de massas representava de mais alienante, de panis et circenses.

Não é preciso um estudo científico muito rigoroso para saber que, da multidão de manifestantes, a maioria adora futebol. No entanto, quando adota como palavras de ordem que o dinheiro destinado à Copa do Mundo seria mais bem empregado em hospitais e escolas, dá o recado de que, no Brasil, há coisas mais importantes do que o futebol, e que este não está, ou não deveria estar, à margem da lei.

Assim como o carnaval, na Europa do Antigo Regime, deixava de ser uma válvula de escape para fazer as vezes de centelha que desencadeava sangrentas batalhas e revoluções, o futebol, no país que melhor o representa, acendeu o rastilho de uma revolta com consequências incertas. E isso não é pouco. 

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Bruno Filippo é jornalista